Por DIVA REALE

Psiquiatra, psicanalista, Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina USP, São Paulo.

 

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“Drogas, redução de danos, e direitos humanos: transitando com Winnicott”

Diva Reale

 

Resumo:

Partimos de conceitos chaves [teoria do desenvolvimento emocional primitivo] de Winnicott: submissão x onipotência, ação criativa/reativa; ressaltamos também o “sentir-se real”. Analisaremos aspectos de programas de prevenção e de atenção à saúde de dependentes de drogas. Destacamos formas de aproximação/propostas relacionais entre profissional [saúde/educador] e usuário [paciente/ aluno]. Hipótese: determinadas formas são mais apropriadas para promover a mudança almejada [psíquica, atitudinal, comportamental]. Esperamos demonstrar que a ênfase [ou não] dada à subjetividade daqueles a que se destinam estes programas pode contribuir para a maior [ou não] qualificação da obtenção da mudança almejada: doença para saúde, viver reativo para viver criativo, marginalização para inserção. Aproximamos “importância dada à subjetividade” à adoção explícita e concreta de princípios de direitos humanos, ao reconhecimento da cidadania do dependente de drogas/do adolescente, ao cuidado dispensado à demanda/oferta de serviço, à presença de discursos/ações que reconheçam a diversidade individual da população focada.

Unitermos: redução de danos, direitos humanos, riscos, saúde pública, psicanálise, prevenção a drogas, drogas, tratamento, psicanálise relacional.

Abstract

Taking into consideration the key concepts of Winnicott (Primitive Emotional Development): submission X omnipotence; creative x reactive actions; and the concept of "been real", this study analyzes some aspects related to health care of drug addicts and drug prevention programs. Particularly those concerning relational strategies and approaching ways between health professional/educator and the user/student. The hypothesis is that some forms are more adequate than others in order to promote a desired change (psychic, attitudinal or behavioral). It hopes to demonstrate that an emphasis on the subjectivity of the target population may contribute to a better qualification of the desired response. From disease to health, from a reactive to a creative life, from social marginalization to integration, the respect and importance of the subjectivity can be indicated by: the clear and concrete adoption of the human rights principles; the recognition of the citizenship of both drug addicts and adolescents; the degree of attention given to the relationship of demand and supply of health services; the presence of speeches/actions denoting recognition of the individual diversity within the focused population.

Key-words : harm reduction, human rights, risk, public health, psychoanalysis, drug prevention, drug treatment, relational psychoanalysis.

 

Winnicott (Fonte: www.giorgioantonelli.it/art24win.htmlUm recorte da história das práticas e saberes voltados para enfrentar o problema social da dependência de drogas no século XX pode ser descrito como um caminho que vai da construção do estigma– a criação da figura do drogado [junkie] – à emergência da solidariedade à pessoa que adoeceu pelo uso de drogas [o dependente] e à aceitação do uso de drogas como aspecto indissociável da história da condição humana. [Reale, 1997].

Com o advento da AIDS determinados danos à saúde associados ao uso de drogas ilícitas tornaram-se intoleráveis, tal como a contribuição dos usuários de drogas (UDs), sobretudo pela via injetável, para o crescimento da epidemia da AIDS. O controle da disseminação do HIV/AIDS através de práticas de usos de drogas injetáveis, ou através de práticas sexuais entre membros das redes sociais de usuários de drogas injetáveis (UDIs) passou a ser considerada uma prioridade de saúde pública. Reconhecendo esta prioridade alguns países passaram a reformular suas políticas de drogas cujo reflexo se faz sentir não apenas em medidas diretamente voltadas à saúde dos UDIs, como também na reformulação do sistema de atenção à saúde voltado para UDs, como também envolvendo mudanças de atitudes e prioridades das ações repressivas, voltadas para a população dos UDs ilícitas, ou ainda pela adoção de novas modalidades de ações preventivas no âmbito da educação formal para população de estudantes (Bastos, Mesquita, 2001). Desta forma passa a existir uma nova aproximação do “problema droga”, que progressivamente se distancia de posições hegemonicamente vigentes representadas pela política de “guerra às drogas”; esta política inclui campanhas reconhecidas por slogans como “diga não às drogas” ou pela busca de uma “sociedade livre das drogas”, dentro do campo da atenção à saúde existe uma predominância de serviços de tratamento voltados exclusivamente para a obtenção da abstinência visando os sintomas atribuídos ao uso dependente. A esta visão dominante chamamos de proibicionismo; este apresenta concepções ao mesmo tempo autoritárias e ingênuas, pois simultaneamente constroem uma imagem distorcida e estigmatizada dos UDs ilícitas, e apregoam crédula e contraditoriamente a possibilidade de se eliminar todo e qualquer uso de droga. À nova aproximação que reformula as crenças e práticas do proibicionismo denomina-se redução de danos. O quadro abaixo ressalta as principais diferenças entre o modelo ainda hegemônico, chamado de proibicionista, e o modelo emergente da redução de danos.

 

MODELOS

Problema enfocado

PROIBICIONISTA

o uso de droga em si

REDUÇÃO DE DANOS

Danos/ usos de drogas

Política de drogas

“guerra às drogas”

Tolerante/ pragmática

Prioridade

Repressão ao uso de drogas ilícitas e tráfico

Redução de danos à saúde individual e coletiva

Postura em relação droga

Moralismo: estigmatização  UD:

Realística/ pragmática*

Papel/posição do Estado

Controle abusivo do cidadão

- Provê serviços p/ UDs

- Apóia organizações  UD

- Prega direitos dos Uds

Prevenção de drogas

“sociedade livre de drogas”

Dano/risco assoc. abuso

Sistema atenção à saúde

Serviços

Atendimento médico individual

 “alta exigência”

Objetivo: abstinência

vários tipos de serviços

“baixa exigência” **

“busca ativa” #

Prevenção AIDS entre Uds/UDIs

dificultada por restrições legais

articulada como prioridade de saúde pública

Fonte: REALE, 1997 O caminho da redução de danos associados..

** “Alta ou Baixa exigência” refere-se a serviços com critérios de inclusão no tratamento com graus distintos de exigência ampliando a aceitação para pacientes interessados em cuidar de algum aspecto da saúde sem necessariamente tratar-se da dependência de drogas em si.

# “busca ativa” de usuários de drogas em seu meio [agentes saúde, “redutores de danos”]

 

Consideramos que a emergência deste novo modelo indica um início da transformação de um modo de apreensão maniqueísta do problema-droga, tipo tudo ou nada [o modo proibicionista], para um novo modo com matizes “transicionais”[1] [o modo redução de danos]. A racionalidade que impera no proibicionismo descreve uma realidade sem matizes, fazendo-nos acreditar que pares opostos regulam certos problemas sociais diretamente atribuídos às drogas em si: dependência [doença] x abstinência [saúde]; uso [crime] x não-uso [ausência de crime]; droga [violência] x não droga [ausência de violência].

Da resposta reativa à resposta criativa; ou da exclusão à inclusão

Neste trabalho vamos considerar as respostas clínicas e preventivas típicas do modelo proibicionista como sendo proposições com um caráter reativo e não criativo [portanto não elaborado suficientemente] diante das falhas constitutivas que os dependentes de drogas-tipo apresentam em seu desenvolvimento emocional. Estas falhas constitutivas são reconhecíveis nestas pessoas pelas características da relação com o objeto droga: uma relação compulsiva cuja finalidade parece ser ocultar uma falta intolerável; este uso de objeto corresponde a uma resposta do sujeito diante de falhas ambientais graves o suficiente para impedir ou dificultar seriamente a constituição de um espaço transicional. Tais falhas evidenciam-se também pela precariedade da inscrição na realidade compartilhada. Nas palavras de Abadi (1998, p.24):

“Também os fracassos e alterações deste espaço nos permitirão compreender e explicar certos transtornos psíquicos relacionados com a persistência de estados narcísicos, a dificuldade na construção dos limites do eu ou ainda a concretização dos vínculos com a realidade. [...] Assim, a função da análise se vai ampliar em direção à criação e expansão das experiências transicionais, quando estas estejam ausentes ou empobrecidas. [...] Por sua vez, o uso compulsivo de certos objetos, a inibição da originalidade individual, os preconceitos e arbitrariedades do pensamento coletivo poderão ser considerados como fracassos na construção dos fenômenos transicionais.”

Portanto, dentro desta perspectiva a dependência de drogas é considerada como uma patologia da transicionalidade.

Consideramos que o modelo redução de danos que nasceu da necessidade de formular uma resposta ao novo problema de saúde pública trazido pela problemática imbricação entre uso de drogas e AIDS - acabou por representar um desenvolvimento do modo de enfrentamento do problema-droga do tipo reativo para um agir criativo.

Diante da conhecida baixa taxa de adesão dos dependentes de drogas aos tratamentos convencionais, havia anteriormente simplesmente uma omissão. Cabia aos dependentes se adaptarem aos programas ou permanecerem excluídos. O potencial risco de transmissão do HIV tornou os dependentes ariscos um “problema nosso”. A nova necessidade de saúde mobilizou autoridades de saúde pública a conceberem o que era óbvio, mas até então inconcebível: era preciso aumentar a adaptação dos programas de tratamento incluindo acesso a modalidades distintas de atenção à saúde. Não podíamos continuar a ignorar aqueles que não se submetiam, pois eram constituíam um número bastante significativo [entre 65 a 70% dos pacientes não aderiam na primeira vez que procuravam tratamento].

A racionalidade própria da redução de danos, presente no primeiro programa considerado pioneiro [modelo de Mersey/Inglaterra em 1985], introduz na abordagem de saúde dos dependentes de drogas a idéia de metas escalonadas oferecidas para segmentos distintos de dependentes de drogas. Onde há aceitação de escalonamento passa a ser aceitável a idéia de progressão, de movimento. Nas palavras de um de seus propositores O’Hare (1994), a proposta de redução de danos “pode ser entendida segundo uma hierarquia de objetivos” (p. 70):

1.      evitar o compartilhamento de seringas;

2.      substituir o uso de injetável pelo uso não parenteral;

3.      reduzir globalmente o uso de drogas e

4.      interromper o uso de drogas.

As metas do conjunto de serviços que passaram a atuar para reduzir danos sociais e à saúde, incluíam estabelecer contato com usuários de drogas; preservar este contato e promover mudanças de comportamento. Para cumprir tais metas os serviços precisaram adquirir determinadas características que os tornassem “mais acessíveis aos usuários”, “mais atraentes” e “user friendly”[2].

O modelo proibicionista reproduz socialmente os aspectos não suficientemente desenvolvidos na forma de lidar com as questões suscitadas pelo uso de drogas. O prazer que a droga produz é negado, ocultado rapidamente pelo alarde com que se denunciam os prejuízos e riscos associados ao uso, como se houvesse uma relação tão imediata com o dano/risco [que na maioria absoluta dos usos eventuais, trata-se só de uma possibilidade] que é como se o prazer não pudesse existir de fato.

O “diga não às drogas” é o estribilho dos programas de prevenção de cunho proibicionista. O público a que ele se destina é convidado a esquecer suas próprias experiências e opiniões e submeter-se a um pensamento único. Ao invés de propiciar um espaço para os jovens confrontarem suas idéias com adultos vivos, honestos em suas opiniões e reais porque não ocultam ou distorcem a realidade compartilhada, os programas proibicionistas apostam no força do medo, da moral e da informação científica. A distorção da realidade, com a finalidade de provocar medo, é um tipo de manipulação das emoções, que configura uma proposta relacional desrespeitosa da pessoa do jovem. E onde há distorção proposital da realidade há desrespeito à condição adolescente levando à quebra de confiança e redução da chance de ampliar os horizontes.

Quando a aposta é feita num reforço externo da moral, também há uma concepção equivocada, pois senso moral não se deposita no sujeito. A proposta relacional é do tipo bancária (como denomina Paulo Freire); acredita-se que a mudança almejada se faz pelo depósito de algo que o professor (agente de prevenção) valoriza – a única resposta moralmente aceitável - na mente do jovem [provavelmente considerada vazia!].

E, em terceiro lugar, há um equívoco quando se aposta exclusivamente no valor da informação científica. Esta proposta relacional  revela a crença de que o conhecimento racional da realidade é considerado suficiente para influir na adoção de comportamentos e atitudes de menor risco. Para os psicanalistas a passagem do pensamento ao ato é uma operação mental de maior complexidade que depende mais de uma capacidade desenvolvida pelo jovem para integrar graus distintos de estímulos internos e externos, às vezes sob o controle direto exercido pela instância que introjetou e constituiu valores positivos e negativos, outras vezes pela capacidade de conter os impulsos despertados pelo desejo de se fundir aos demais, agradando-os ou confrontando-os, enfim reagindo às provocações explícitas ou não.

A possibilidade de um jovem tornar-se uma pessoa menos reativa e menos vulnerável, dependerá também de ser possível criar condições para instaurar um espaço onde ocorra criatividade, permitindo que ele sinta sua realização como fruto de um si mesmo mais potente e real, e não apenas obediente e submisso a uma realidade opressora.

Nestas situações postas pelos programas educacionais de prevenção proibicionistas os jovens são tratados (tal como os Uds) como pessoas de segunda categoria. São subestimados pessoalmente bem como sua capacidade de observação, suas próprias experiências, sua capacidade intelectual; mas, além de tudo, se subestima a necessidade que o jovem tem de lutar para definir seus caminhos. A concepção proibicionista considera jovens como explosivos cujo pavio se acende com o experimento da droga.

Nos programas preventivos compatíveis com o modelo de redução de danos diverge-se desta concepção. Isto não significa aprovar ou omitir-se em relação ao que se sabe acerca de riscos (alguns deles mensuráveis através de estudos epidemiológicos). Acredita-se que a tarefa [de pais e professores] é acompanhar o desenvolvimento do adolescente simultaneamente confrontando-o, oferecendo-se como baliza, portanto interditando-o em muitas ocasiões, mas também aceitando o inevitável: transferir progressivamente o controle para o próprio adolescente nas situações onde ele só poderá contar consigo mesmo. Se o percurso rumo à independência que é a meta do desenvolvimento emocional humano não for experienciada ou vislumbrada nas situações nas quais pode e deve ser experimentada, como adquiri-la? De sopetão quando se completa 18 ou 21 anos?

Ao mesmo tempo o adolescente necessita de moratória, reconhecendo a necessidade dele viver por um certo período sua inevitável e salutar imaturidade (Winnicott, 1999). Suas escolhas neste período oscilarão entre maturidade e imaturidade, entre ousadia e reserva, entre retração e impulsão, e agressividade e docilidade.

Prevenção dentro da redução de danos pressupõe: que todos os jovens são sujeitos de direitos iguais, mas também reconhece que são diferentes entre si nas suas capacidades individuais já desenvolvidas; pressupõe que a construção de sujeitos mais saudáveis se dá no âmbito social em paralelo à construção de uma sociedade mais justa e tolerante, e não mais excludente e discriminatória (Soares, 1997). A teoria da “maçã podre” justificou historicamente as arbitrariedades de regimes e organizações autoritárias no exercício da exclusão [ou até eliminação dos membros “contaminantes”].

Aliás, não é por acaso, que, em nosso meio, dentre as práticas de atenção à saúde dos dependentes de drogas, as comunidades terapêuticas paradigmáticas do modelo proibicionista, sejam responsáveis por algo em torno de 80% das vagas para tratamento de dependentes de drogas. Elas trabalham com períodos longos de internação [em média de 6 a 12 meses], são dirigidas por entidades beneficentes (religiosas em sua maioria) e, freqüentemente, não contam em seu staff com técnicos diretamente envolvidos com o tratamento. Predomina um modelo que utiliza variantes dos “12 passos do AA”: calcado numa concepção de dependência como doença incurável. Tal crença paralisa ou reduz muito a chance do dependente prosseguir no seu desenvolvimento (emocional) rumo à independência relativa, pois é convidado a crer que algo em si é irreparavelmente defeituoso. Que uma organização formada desde o seu nascimento por pessoas que sofreram de dependência de drogas [o AA foi fundada nos anos 30 por um médico alcoólatra] albergue um pensamento dogmático e pessimista é compreensível. Mas que a atenção à saúde do dependente de drogas seja fundamentalmente calcada nestas instituições só revela que a sociedade tem relegado o drogado “à sua própria sorte”.

Já os serviços públicos especializados com técnicos treinados para este atendimento eram escassos até o final dos anos 90 (Bucher, 1992). Dentre estes, destacam-se centros ligados à universidade, mas apenas uma minoria destes afina-se com pressupostos do modelo de redução de danos. Em poucas linhas são serviços com porta de entrada estiolada: ou porque as vagas são restritas aos interesses ditados pela pesquisas que no momento estão em andamento, ou porque para serem atendidos os dependentes precisam estar dispostos a tratar-se da dependência!

Deve soar estranho para terapeutas que o modelo de redução de danos que aqui defendo como mais humano apregoe serviços de tratamento para dependentes de drogas que não queiram tratar-se. Lembremos que um dependente de drogas [com um quadro não excessivamente grave] pode trabalhar, pode estudar, ter relações de amizade, sexuais e afetivas; lembremos também que aqueles que usaram droga injetável puderam contamina-ser com HIV. Eles têm o direito a serem tratados daquilo de que adoecerem, incluindo a AIDS, mesmo que não queiram [ou não estejam aptos naquele momento a] parar de usar a droga.

A diversidade de serviços de atenção à saúde aos UDs propostos pela redução de danos inclui garantir a sobrevivência dos mesmos: salas de injeção segura, máquinas e postos de troca ou distribuição de seringas, programas de atendimento em clínica geral a Uds/UDIs com HIV/AIDS, programas de prescrição médica de drogas anteriormente só adquiridas em pontos de tráfico ilegal etc. (Mesquita & Bastos, 1994). Não discutirei aqui se todos estes programas deveriam ou poderiam ser implementados em nosso meio. Mas afirmo que a emergência destas iniciativas revela que junto ao pragmatismo no enfrentamento à disseminação de HIV/AIDS algo novo surgiu no cenário das políticas de drogas. Pela primeira vez em muitos países, desde que “a guerra às drogas” declarada nos anos 60 por Nixon se tornou a base da política internacional de drogas, surgiu uma visão que deixou de condenar a riscos letais crescentes aqueles UD/UDIs incapazes de acessar ou aderir aos programas tradicionais de tratamento da dependência. Este gesto de inclusão e tolerância alargou a amplitude de UDs/UDIs acessados pelo sistema de saúde, ampliou a chance deles se manterem vivos, cuidando de sua própria saúde e sobretudo enviou uma mensagem de esperança à sociedade: houve uma ampliação da margem de tolerância social estendida àquela parte não desprezível da juventude que estabeleceu uma relação problemática ou dependente com as drogas. E quando isso acontece, a sociedade em sua totalidade desenvolve uma responsabilidade maior pela sua fração adoecida, reduzindo as forças que contribuem para o adoecer. Para ampliar estes recursos o aprimoramento técnico e humano dos terapeutas das instituições que atendem os dependentes de drogas é necessário.

Olievenstein (1985) denomina momento fecundo o encontro entre o dependente e o profissional de acolhimento que redunda no início de um percurso terapêutico; trata-se daquela circunstância que se segue à chegada de alguém se dirige à instituição porque se reconhece um dependente de drogas [“je suis toxico”]; nas consultas seguintes se opera uma transformação da afirmação inicial de uma afirmativa acerca da identidade [para a qual na há nada a oferecer...] em uma fala que demanda ajuda psíquica. Todo modelo de atenção à saúde de dependente de drogas consistente tem formulações quanto à especificidade da forma de chegada do mesmo e à necessidade de manejar aquilo que institui e justifica um tratamento de base psicanalítica (ou psicodinâmica) (Bucher, 1992; Olievenstein, 1983; Le Poulichet, 1987): a forma [em geral ausente] de demanda (Sudbrack, 2001). Por isso diferencio, qualitativamente de maneira favorável, os programas que reconhecem a importância desta forma de aproximação inicial.

Olievenstein, criador do modelo de cura francês, ao longo dos anos 80/90 contribuiu para a formação de profissionais e implantação de instituições de tratamento para dependentes em nosso meio (Reale, 1997). Em poucas palavras, tal modelo foi concebido como uma rede de instituições voltada para dependentes de drogas dispostos a trilhar o caminho rumo à independência, enfrentando a abstinência das drogas. Winnicott é um dos autores citados por Olievenstein que inspiraram suas teorizações originais.

Ao lado do pragmatismo e tolerância próprios do modelo de redução de danos, é preciso acrescentar no âmbito das práticas de saúde, relações terapêuticas que reconheçam a importância do encontro terapêutico ocorrer entre duas pessoas que irão contribuir, cada uma segundo sua capacidade, para a construção de um espaço relacional em direção à cura. O modelo terapêutico de Winnicott nos parece especialmente fecundo para fazer face à dependência de drogas. Seu profundo humanismo e maestria política na apresentação de suas inovações que, eu diria, foram silenciosamente revolucionárias para seu tempo, nos ensina a insistir pacientemente em percorrer o caminho que consideramos o nosso: reconhecer e discriminar dentre saberes e práticas vigentes quais estão contribuindo para ampliar o tratamento humano, digno e tecnicamente qualificado para os usuários e dependentes de drogas.

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1 Transicionalidade é um termo que vem do conceito de objeto e espaço transicional cunhados por Winnicott  [1975]; objeto transicional refere-se ao uso que o bebê [e posteriormente a criança] faz de um primeiro objeto [como a ponta do lençol ou ursinho] ao qual são atribuídas qualidades tranqüilizadoras. O espaço transicional [é um espaço psíquico] que não é nem interno nem externo ao bebê, é uma zona intermediária entre o dentro e o fora.

2 expressão usada em informática para indicar programas de uso mais fácil ,“amigável ao usuário”.

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Bibliografia

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Publicada em 03.12.04 - Última atualização: 26 abril, 2005.