Fonte:
REALE, 1997 O caminho da redução de danos associados..
** “Alta ou Baixa exigência”
refere-se a serviços com critérios de inclusão no tratamento com graus
distintos de exigência ampliando a aceitação para pacientes interessados em
cuidar de algum aspecto da saúde sem necessariamente tratar-se da
dependência de drogas em si.
# “busca ativa” de
usuários de drogas em seu meio [agentes saúde, “redutores de danos”]
Consideramos que a emergência deste novo modelo indica um
início da transformação de um modo de apreensão maniqueísta do
problema-droga, tipo tudo ou nada [o modo proibicionista], para um novo
modo com matizes “transicionais”
[o modo redução de danos]. A racionalidade
que impera no proibicionismo descreve uma realidade sem matizes, fazendo-nos
acreditar que pares opostos regulam certos problemas sociais diretamente
atribuídos às drogas em si: dependência [doença] x abstinência [saúde]; uso
[crime] x não-uso [ausência de crime]; droga [violência] x não droga
[ausência de violência].
Da resposta reativa à resposta
criativa; ou da exclusão à inclusão
Neste trabalho vamos considerar as respostas clínicas e
preventivas típicas do modelo proibicionista como sendo proposições com um
caráter reativo e não criativo [portanto não
elaborado suficientemente] diante das falhas constitutivas que os
dependentes de drogas-tipo apresentam em seu desenvolvimento emocional.
Estas falhas constitutivas são reconhecíveis nestas pessoas pelas
características da relação com o objeto droga: uma relação compulsiva cuja
finalidade parece ser ocultar uma falta intolerável; este uso de objeto
corresponde a uma resposta do sujeito diante de falhas ambientais graves o
suficiente para impedir ou dificultar seriamente a constituição de um espaço
transicional. Tais falhas evidenciam-se também pela precariedade da
inscrição na realidade compartilhada. Nas palavras de Abadi (1998, p.24):
“Também os fracassos e alterações deste espaço nos permitirão
compreender e explicar certos transtornos psíquicos relacionados com a
persistência de estados narcísicos, a dificuldade na construção dos limites
do eu ou ainda a concretização dos vínculos com a realidade. [...] Assim, a
função da análise se vai ampliar em direção à criação e expansão das
experiências transicionais, quando estas estejam ausentes ou
empobrecidas. [...] Por sua vez, o uso compulsivo de certos objetos, a
inibição da originalidade individual, os
preconceitos e arbitrariedades do pensamento coletivo poderão ser
considerados como fracassos na construção dos fenômenos transicionais.”
Portanto, dentro desta perspectiva a dependência de drogas é
considerada como uma patologia da transicionalidade.
Consideramos que o modelo redução de danos que nasceu da
necessidade de formular uma resposta ao novo problema de saúde pública
trazido pela problemática imbricação entre uso de drogas e AIDS - acabou por
representar um desenvolvimento do modo de enfrentamento do
problema-droga do tipo reativo para um agir criativo.
Diante da conhecida baixa taxa de adesão dos dependentes de
drogas aos tratamentos convencionais, havia anteriormente simplesmente uma
omissão. Cabia aos dependentes se adaptarem aos programas ou permanecerem
excluídos. O potencial risco de transmissão do HIV tornou os dependentes
ariscos um “problema nosso”. A nova necessidade de saúde mobilizou
autoridades de saúde pública a conceberem o que era óbvio, mas até então
inconcebível: era preciso aumentar a adaptação dos programas de tratamento
incluindo acesso a modalidades distintas de atenção à saúde. Não podíamos
continuar a ignorar aqueles que não se submetiam, pois eram constituíam um
número bastante significativo [entre 65 a 70% dos pacientes não aderiam na
primeira vez que procuravam tratamento].
A racionalidade própria da redução de danos, presente no
primeiro programa considerado pioneiro [modelo de Mersey/Inglaterra em
1985], introduz na abordagem de saúde dos dependentes de drogas a idéia de
metas escalonadas oferecidas para segmentos distintos de dependentes
de drogas. Onde há aceitação de escalonamento passa a ser aceitável a idéia
de progressão, de movimento. Nas palavras de um de seus propositores O’Hare
(1994), a proposta de redução de danos “pode ser entendida segundo uma
hierarquia de objetivos” (p. 70):
1.
evitar o compartilhamento de seringas;
2.
substituir o uso de injetável pelo uso não
parenteral;
3.
reduzir globalmente o uso de drogas e
4.
interromper o uso de drogas.
As metas do conjunto de serviços que
passaram a atuar para reduzir danos sociais e à saúde, incluíam estabelecer
contato com usuários de drogas; preservar este contato e promover mudanças
de comportamento. Para cumprir tais metas os serviços precisaram adquirir
determinadas características que os tornassem “mais acessíveis aos
usuários”, “mais atraentes” e “user friendly”[2].
O modelo proibicionista reproduz socialmente os aspectos não
suficientemente desenvolvidos na forma de lidar com as questões suscitadas
pelo uso de drogas. O prazer que a droga produz é negado, ocultado
rapidamente pelo alarde com que se denunciam os prejuízos e riscos
associados ao uso, como se houvesse uma relação tão imediata com o
dano/risco [que na maioria absoluta dos usos eventuais, trata-se só de uma
possibilidade] que é como se o prazer não pudesse existir de fato.
O “diga não às drogas” é o estribilho dos programas de
prevenção de cunho proibicionista. O público a que ele se destina é
convidado a esquecer suas próprias experiências e opiniões e submeter-se
a um pensamento único. Ao invés de propiciar um espaço para os jovens
confrontarem suas idéias com adultos vivos, honestos em
suas opiniões e reais porque não ocultam ou distorcem a realidade
compartilhada, os programas proibicionistas apostam no força do medo, da
moral e da informação científica. A distorção da realidade, com a finalidade
de provocar medo, é um tipo de manipulação das emoções, que configura uma
proposta relacional desrespeitosa da pessoa do
jovem. E onde há distorção proposital da realidade há desrespeito à condição
adolescente levando à quebra de confiança e redução da chance de ampliar os
horizontes.
Quando a aposta é feita num reforço externo da moral, também
há uma concepção equivocada, pois senso moral não se deposita no
sujeito. A proposta relacional é do tipo bancária (como
denomina Paulo Freire); acredita-se que a mudança almejada se
faz pelo depósito de algo que o professor (agente de prevenção) valoriza – a
única resposta moralmente aceitável - na mente do jovem [provavelmente
considerada vazia!].
E, em terceiro lugar, há um equívoco quando se aposta
exclusivamente no valor da informação científica. Esta proposta
relacional revela a crença de que o conhecimento racional da realidade
é considerado suficiente para influir na adoção de comportamentos e atitudes
de menor risco. Para os psicanalistas a passagem do pensamento ao ato é uma
operação mental de maior complexidade que depende mais de uma capacidade
desenvolvida pelo jovem para integrar graus distintos de estímulos internos
e externos, às vezes sob o controle direto exercido pela instância que
introjetou e constituiu valores positivos e negativos, outras vezes pela
capacidade de conter os impulsos despertados pelo desejo de se fundir aos
demais, agradando-os ou confrontando-os, enfim reagindo às
provocações explícitas ou não.
A possibilidade de um jovem tornar-se uma pessoa menos
reativa e menos vulnerável, dependerá também de ser possível criar
condições para instaurar um espaço onde ocorra criatividade, permitindo que
ele sinta sua realização como fruto de um si mesmo mais potente e real, e
não apenas obediente e submisso a uma realidade opressora.
Nestas situações postas pelos programas educacionais de
prevenção proibicionistas os jovens são tratados (tal como os Uds) como
pessoas de segunda categoria. São subestimados pessoalmente bem como sua
capacidade de observação, suas próprias experiências, sua capacidade
intelectual; mas, além de tudo, se subestima a necessidade que o jovem tem
de lutar para definir seus caminhos. A concepção proibicionista considera
jovens como explosivos cujo pavio se acende com o experimento da droga.
Nos programas preventivos compatíveis com o modelo de redução
de danos diverge-se desta concepção. Isto não significa aprovar ou omitir-se
em relação ao que se sabe acerca de riscos (alguns deles mensuráveis através
de estudos epidemiológicos). Acredita-se que a tarefa [de pais e
professores] é acompanhar o desenvolvimento do adolescente simultaneamente
confrontando-o, oferecendo-se como baliza, portanto interditando-o em muitas
ocasiões, mas também aceitando o inevitável: transferir progressivamente o
controle para o próprio adolescente nas situações onde ele só poderá contar
consigo mesmo. Se o percurso rumo à independência que é a meta do
desenvolvimento emocional humano não for experienciada ou vislumbrada nas
situações nas quais pode e deve ser experimentada, como adquiri-la? De
sopetão quando se completa 18 ou 21 anos?
Ao mesmo tempo o adolescente necessita de moratória,
reconhecendo a necessidade dele viver por um certo período sua inevitável e
salutar imaturidade (Winnicott, 1999). Suas escolhas neste período oscilarão
entre maturidade e imaturidade, entre ousadia e reserva, entre retração e
impulsão, e agressividade e docilidade.
Prevenção dentro da redução de danos pressupõe: que todos os
jovens são sujeitos de direitos iguais, mas também reconhece que são
diferentes entre si nas suas capacidades individuais já desenvolvidas;
pressupõe que a construção de sujeitos mais saudáveis se dá no âmbito social
em paralelo à construção de uma sociedade mais justa e tolerante, e não mais
excludente e discriminatória (Soares, 1997). A teoria da “maçã podre”
justificou historicamente as arbitrariedades de regimes e organizações
autoritárias no exercício da exclusão [ou até eliminação dos membros “contaminantes”].
Aliás, não é por acaso, que, em nosso meio, dentre as
práticas de atenção à saúde dos dependentes de drogas, as comunidades
terapêuticas paradigmáticas do modelo proibicionista, sejam responsáveis
por algo em torno de 80% das vagas para tratamento de dependentes de drogas.
Elas trabalham com períodos longos de internação [em média de 6 a 12 meses],
são dirigidas por entidades beneficentes (religiosas em sua maioria) e,
freqüentemente, não contam em seu staff com técnicos diretamente envolvidos
com o tratamento. Predomina um modelo que utiliza variantes dos “12 passos
do AA”: calcado numa concepção de dependência como doença incurável. Tal
crença paralisa ou reduz muito a chance do dependente prosseguir no seu
desenvolvimento (emocional) rumo à independência relativa, pois é convidado
a crer que algo em si é irreparavelmente defeituoso. Que uma organização
formada desde o seu nascimento por pessoas que sofreram de dependência de
drogas [o AA foi fundada nos anos 30 por um médico alcoólatra] albergue um
pensamento dogmático e pessimista é compreensível. Mas que a atenção à saúde
do dependente de drogas seja fundamentalmente calcada nestas instituições só
revela que a sociedade tem relegado o drogado “à sua própria sorte”.
Já os serviços públicos especializados com técnicos treinados
para este atendimento eram escassos até o final dos anos 90 (Bucher, 1992).
Dentre estes, destacam-se centros ligados à universidade, mas apenas uma
minoria destes afina-se com pressupostos do modelo de redução de danos. Em
poucas linhas são serviços com porta de entrada estiolada: ou porque as
vagas são restritas aos interesses ditados pela pesquisas que no momento
estão em andamento, ou porque para serem atendidos os dependentes precisam
estar dispostos a tratar-se da dependência!
Deve soar estranho para terapeutas que o modelo de redução de
danos que aqui defendo como mais humano apregoe serviços de tratamento para
dependentes de drogas que não queiram tratar-se. Lembremos que um dependente
de drogas [com um quadro não excessivamente grave] pode trabalhar, pode
estudar, ter relações de amizade, sexuais e afetivas; lembremos também que
aqueles que usaram droga injetável puderam contamina-ser com HIV. Eles têm o
direito a serem tratados daquilo de que adoecerem, incluindo a AIDS, mesmo
que não queiram [ou não estejam aptos naquele momento a] parar de usar a
droga.
A diversidade de serviços de atenção à saúde aos UDs
propostos pela redução de danos inclui garantir a sobrevivência dos mesmos:
salas de injeção segura, máquinas e postos de troca ou distribuição de
seringas, programas de atendimento em clínica geral a Uds/UDIs com HIV/AIDS,
programas de prescrição médica de drogas anteriormente só adquiridas em
pontos de tráfico ilegal etc. (Mesquita & Bastos, 1994). Não discutirei aqui
se todos estes programas deveriam ou poderiam ser implementados em nosso
meio. Mas afirmo que a emergência destas iniciativas revela que junto ao
pragmatismo no enfrentamento à disseminação de HIV/AIDS algo novo surgiu no
cenário das políticas de drogas. Pela primeira vez em muitos países, desde
que “a guerra às drogas” declarada nos anos 60 por Nixon se tornou a base da
política internacional de drogas, surgiu uma visão que deixou de condenar a
riscos letais crescentes aqueles UD/UDIs incapazes de acessar ou aderir aos
programas tradicionais de tratamento da dependência. Este gesto de inclusão
e tolerância alargou a amplitude de UDs/UDIs acessados pelo sistema de
saúde, ampliou a chance deles se manterem vivos, cuidando de sua própria
saúde e sobretudo enviou uma mensagem de esperança à sociedade: houve uma
ampliação da margem de tolerância social estendida àquela parte não
desprezível da juventude que estabeleceu uma relação problemática ou
dependente com as drogas. E quando isso acontece, a sociedade em sua
totalidade desenvolve uma responsabilidade maior pela sua fração adoecida,
reduzindo as forças que contribuem para o adoecer. Para ampliar estes
recursos o aprimoramento técnico e humano dos terapeutas das instituições
que atendem os dependentes de drogas é necessário.
Olievenstein (1985) denomina momento fecundo o
encontro entre o dependente e o profissional de acolhimento que redunda no
início de um percurso terapêutico; trata-se daquela circunstância que
se segue à chegada de alguém se dirige à instituição porque se reconhece um
dependente de drogas [“je suis toxico”]; nas consultas seguintes se opera
uma transformação da afirmação inicial de uma afirmativa acerca da
identidade [para a qual na há nada a oferecer...] em uma fala que demanda
ajuda psíquica. Todo modelo de atenção à saúde de dependente de drogas
consistente tem formulações quanto à especificidade da forma
de chegada do mesmo e à necessidade de manejar aquilo que
institui e justifica um tratamento de base psicanalítica (ou psicodinâmica)
(Bucher, 1992; Olievenstein, 1983; Le Poulichet, 1987): a forma [em geral
ausente] de demanda (Sudbrack, 2001). Por isso diferencio, qualitativamente
de maneira favorável, os programas que reconhecem a importância desta
forma de aproximação inicial.
Olievenstein, criador do modelo de cura francês, ao
longo dos anos 80/90 contribuiu para a formação de profissionais e
implantação de instituições de tratamento para dependentes em nosso meio
(Reale, 1997). Em poucas palavras, tal modelo foi concebido como uma rede de
instituições voltada para dependentes de drogas dispostos a trilhar o
caminho rumo à independência, enfrentando a abstinência das drogas.
Winnicott é um dos autores citados por Olievenstein que inspiraram suas
teorizações originais.
Ao lado do pragmatismo e tolerância próprios do modelo de
redução de danos, é preciso acrescentar no âmbito das práticas de saúde,
relações terapêuticas que reconheçam a importância do encontro terapêutico
ocorrer entre duas pessoas que irão contribuir, cada uma segundo sua
capacidade, para a construção de um espaço relacional em direção à cura. O
modelo terapêutico de Winnicott nos parece especialmente fecundo para fazer
face à dependência de drogas. Seu profundo humanismo e maestria política na
apresentação de suas inovações que, eu diria, foram silenciosamente
revolucionárias para seu tempo, nos ensina a insistir pacientemente em
percorrer o caminho que consideramos o nosso: reconhecer e discriminar
dentre saberes e práticas vigentes quais estão contribuindo para ampliar o
tratamento humano, digno e tecnicamente qualificado para os usuários e
dependentes de drogas.
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