Por RENATO MOSCATELI

Mestre em História Social pelo Programa Associado de Pós-Graduação em História UEM/UEL. Autor de O Senhor das Letras: O Antigo Regime e a Modernidade na literatura voltaireana. Maringá: Eduem, 2000.  

 

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A narrativa histórica em debate: algumas perspectivas

 

Renato Moscateli

 

Resumo

O presente texto busca tecer algumas considerações éticas, estéticas e epistemológicas a respeito da disciplina histórica, sobretudo em face do impacto que certas proposições do “pós-modernismo” têm causado nas atividades dos historiadores. O artigo aborda a escrita da História sob a perspectiva da criação de narrativas, e discute as principais características dessa modalidade textual a fim de comparar determinados aspectos – sobretudo os estéticos – das obras produzidas por historiadores e daquelas de autoria dos literatos. A partir de tal confronto, discute-se algumas questões polêmicas nos domínios da historiografia, como a oposição entre História narrativa e História analítica, bem como a possibilidade de o discurso do historiador “representar” a realidade do processo histórico. Para concluir, o artigo aborda as conseqüências éticas decorrentes da redução da narrativa histórica a mero artefato literário, redução que pode ocorrer graças aos ataques “pós-modernos” contra os estatutos epistemológicos da História.

Palavras-chave: História; Narrativa; Pós-modernidade.

Abstract

This text weaves some ethical, aesthetic and epistemological considerations on the History, over all in face of the impact that certain proposals of the “postmodernism” have caused in the activities of the historians. The article approaches the writing of History under the perspective of the creation of narratives, and discusses the main characteristics of this textual modality in order to compare certain aspects – especially the aesthetic ones – of the works produced by historians and of those written by literats. From this confrontation, one discusses some polemic questions in the domains of the historiography, as the opposition between narrative History and analytical History, as well the possibility of the historian’s speech “to represent” the reality of the historical process. To conclude, the article approaches the ethical consequences decurrent of the reduction of the historical narrative to a mere literary device, reduction that can occur thanks to the “postmodern” attacks against the epistemological statutes of History.

Key words: History; Narrative; Postmodernity.

 

Clio e Polimnia, respectivamente as musas gregas da História e da RetóricaDe onde vem a ênfase, tão difundida atualmente, nos aspectos lingüísticos dos diferentes saberes modernos, das ciências da natureza à disciplina histórica? Em grande parte, isto se deve aos desenvolvimentos da lingüística no século XX, especialmente àqueles ligados ao estruturalismo – em suas variadas correntes – surgido com Ferdinand de Saussure, Roman Jakobson e Roland Barthes, entre outros (Dosse, 1993; Piaget, 1979). Muito embora a linguagem já fosse um objeto de estudo presente nos horizontes da Modernidade há um tempo considerável, foi a lingüística recente que colocou em primeiro plano a proposição de que as palavras não podem ser tomadas como ícones transparentes, ou seja, como instrumentos neutros capazes de representar as coisas. Ao comentar as reflexões de Michel Foucault sobre as ciências humanas, que se baseiam justamente nessa crença na opacidade da linguagem, Hayden White escreve que tal crença advém da crítica ao estatuto ontológico privilegiado que fora conferido à linguagem e que fizera desta um “ser” separado dos demais, como se as palavras possuíssem atributos específicos suficientes para diferenciá-las das coisas sobre as quais elas pretendem falar.

O que a moderna teoria lingüística demonstra é que as palavras não passam de coisas entre outras coisas no mundo, que elas sempre haverão de obscurecer tanto quanto aclarar objetos que pretendem significar, e que, portanto, todo sistema de pensamento elaborado com a esperança de idear um sistema de representação neutro está fadado à dissolução quando a área de coisas que ele remete à obscuridade emerge para insistir em seu próprio reconhecimento. (White, 1994, p. 255)

Certamente, para Foucault a constatação da opacidade das palavras remete à própria impossibilidade de existência das ciências humanas, dado que o homem, como objeto de estudo, seria apenas uma “dobra” no saber moderno que “desaparecerá quando este houver encontrado uma forma nova” (Foucault, 1981, p. 13). Enfim, a arbitrariedade das opções epistemológicas que produzem um paradigma dito científico, na perspectiva foucaultiana, reflete a arbitrariedade da ligação entre significantes e significados no interior dos signos lingüísticos, e indica a falta de uma base perene sobre a qual um saber poderia ser estabelecido.

Segundo Roger Chartier (1994), outro ataque aos saberes modernos, também fundamentado na lingüística saussuriana, tem origem nos Estados Unidos e busca eliminar os vínculos entre a História e as Ciências Sociais. Para compreender corretamente essa ofensiva, antes é preciso lembrar uma das idéias-chave da teoria de Saussure, ou seja, a de que a linguagem é um sistema dotado de grande autonomia diante de seus portadores singulares, os quais são os sujeitos de suas respectivas falas, mas não da própria língua como um todo[1], uma vez que esta se constitui numa estrutura eminentemente impessoal. Ora, radicalizando esse pressuposto de que toda enunciação discursiva possui, em sua estrutura, características que extrapolam a vontade de seu autor individual, os adeptos do chamado linguistic turn consideram importantes unicamente os aspectos lingüísticos do discurso, e centram sua análise no modo como os mecanismos da língua responsáveis pela produção de sentido atuam em cada caso particular. O corolário disto tudo pode ser resumido na idéia de que os discursos são, por mais estranho que pareça, enunciados sem sujeitos. Nas palavras de Roger Chartier, os responsáveis pelo lingustic turn propõem que

a construção do sentido é assim separada de qualquer intenção ou controle subjetivos, já que ela é atribuída a um funcionamento lingüístico automático e impessoal. A realidade não mais deve ser pensada como uma referência objetiva, exterior ao discurso, pois que ela é constituída pela e dentro da linguagem. (Chartier, 1994, p. 104)

Desse modo, a autoreferencialidade da linguagem implicaria que são os discursos que “falam” por meio de seus enunciadores, e que só é permitido apelar para a noção de sujeito caso se tenha em mente que ela diz respeito a um mero artifício gerado pela “maquinaria” da língua, pois, em suma os “atos lingüísticos [dos usuários da linguagem] podem apenas exemplificar as regras e procedimentos das linguagens que eles habitam mas não controlam” (Toews, citado por Chartier, 1994, p. 104)[2].

Mesmo para aqueles que não endossam plenamente as assertivas foucaultianas – que estão entre as bases do pensamento pós-moderno – ou as proposições do linguistic turn, elas permanecem como um desafio constante a exigir por respostas que não se limitem a somente negá-las sem levar a sério os problemas que elas colocam a todos que se ocupam, de alguma forma, com a linguagem. Em se tratando da História, que tem de lidar com os elementos discursivos presentes tanto em seus documentos quanto na forma de exposição de seus resultados, as preocupações com os componentes lingüísticos têm se manifestado de diversos modos, sobretudo nas reflexões acerca do caráter da narrativa histórica, a respeito da qual muitas questões foram levantadas: o que ela representa? Qual é sua capacidade explicativa dos fatos e processos que busca descrever? Sua relação com a narrativa ficcional é de igualdade em todos os sentidos ou unicamente de similitude estrutural?

O presente texto não pretende fazer um inventário completo das respostas dadas a tais indagações, o que seria impraticável nos limites de um artigo, mas apenas discutir algumas delas a fim de demarcar seus pontos mais importantes[3]. Assim, os trabalhos de determinados autores que se ocuparam do assunto servirão como um fio de Ariadne para esta reflexão sobre a História como narrativa e as conseqüências de uma tal forma discursiva para a construção e a viabilidade do saber histórico.

A História como narrativa

A visualização da História como sendo eminentemente narrativa não é nova, uma vez que pode ser encontrada até mesmo na obra fundadora de Heródoto, no século V a.C. Entretanto, foi apenas nos últimos séculos que os indivíduos que se dedicavam aos estudos históricos procuraram delimitar com mais clareza a singularidade do discurso da História em oposição à narrativa literária.[4] Assim, o século XIX assistiu ao esforço dos historiadores para institucionalizar sua área de estudos por meio de uma ruptura da História em relação à arte e à filosofia. Para afastar-se desta última, considerada pelos historiadores como fonte de interpretações apriorísticas, idealistas e a-históricas, buscou-se conferir à História um status científico fundamentado no recurso ao material empírico representado pelas fontes e na perspectiva objetivista do pesquisador (Reis, 1996). Quanto à arte, mais especificamente a literatura, o empenho de muitos historiadores foi marcado pela tentativa de livrar seus escritos dos elementos retóricos habitualmente utilizados em textos literários. Como afirma Dominick La Capra, “esta tendência, que define a ciência como a adversária ou a antítese da retórica, foi freqüentemente associada com uma defesa do ‘estilo direto’ que acredita ou pretende ser inteiramente transparente quanto a seu objeto” (La Capra, citado por Iggers, 1996, p. 122). Todavia, apesar do empenho colocado nessa pretendida ruptura dupla, a disciplina histórica continuou sendo influenciada em termos teóricos pela filosofia e, nos aspectos formais, pela literatura, o que tornou os textos dos historiadores um território sui generis cuja amplitude estende-se através das fronteiras entre a arte, a ciência e a filosofia.

Não é nosso objetivo aqui discutir como, considerando as diversas correntes historiográficas dos séculos XIX e XX, a tensão entre metodologias científicas e princípios filosóficos afetou os historiadores em suas atividades de pesquisa. Tal análise pode ser encontrada em outros lugares.[5] Nosso interesse recai, sobretudo, nos laços que continuam ligando a História e a literatura. Sendo assim, é necessário definir como a narrativa histórica se constitui como um gênero, uma vez que este é um dos principais, se não o mais importante, elo entre essas duas áreas. Antes de tudo, então, precisamos de uma definição mínima do que seja uma narrativa. Fazendo referência ao pensamento de W. B. Gallie a este respeito, Paul Ricoeur expõe desta forma a essência desse tipo de relato:

Uma história descreve uma seqüência de ações e de experiências feitas por um certo número de personagens, quer reais, quer imaginários. Esses personagens são representados em situações que mudam ou a cuja mudança reagem. Por sua vez, essas mudanças revelam aspectos ocultos da situação e das personagens e engendram uma nova prova (predicament) que apela para o pensamento, para a ação ou para ambos. A resposta a essa prova conduz a história à sua conclusão. (Ricoeur, 1994, p. 214)

Essa definição mínima deve incluir também a conceituação do ato responsável pela geração da narrativa: “O ato de narrar (...) repousa na presença de um narrador ou de um meio narrativo (ator, livro, filme, etc.) e na ausência dos eventos narrados. Tais eventos estão presentes como ficções, mas ausentes como realidades” (Scholes, citado por Cardoso, 1997, p. 11). Uma definição genérica como esta, é claro, pode abranger tanto as narrativas ficcionais quanto os textos produzidos por um historiador. Seguir uma estória ou uma história, para o leitor, implica realizar um mesmo movimento de compreensão do enredo, não importando, em princípio, que este seja formado por acontecimentos extraídos de fontes documentais ou produzidos pela mente do escritor. Em ambos os casos, trata-se de acompanhar a exposição feita por aquele que narra – uma pessoa ou um meio narrativo qualquer – e torna visível o fio que liga os fatos de uma ponta a outra, ou seja, do evento inicial que desencadeia o processo até o ponto em que ele atinge um desfecho (definitivo ou meramente provisório). A escrita da História, como a de um texto literário, passa pela tessitura desse fio que deve juntar os acontecimentos, mesmo aqueles aparentemente desconexos, a fim de conferir sentido a um todo maior que não é um simples agregado de elementos, mas sim um quadro coerente no qual se pode ver uma imagem inteligível. Os personagens que compõem essa imagem podem ser de ordens diversas, uma vez que o historiador narra os feitos tanto de indivíduos quanto de coletividades maiores, como Estados e classes sociais. Todavia, de acordo com Ricoeur, para o desenrolar de uma história isto não faz diferença, pois

a referência oblíqua do fenômeno societal aos indivíduos justifica a extensão analógica do papel de personagens às entidades de primeira ordem da história. Em virtude dessa analogia, as entidades históricas de primeira ordem podem ser designadas como os sujeitos lógicos de verbos de ação e de paixão. (...) Dizer que a França faz isto ou sofre aquilo não implica absolutamente que a entidade coletiva em questão deva se reduzir aos indivíduos que a compõem e que suas ações possam ser destinadas distributivamente a seus membros, considerados um a um. É preciso dizer da transferência de vocabulário do indivíduo às entidades de primeira ordem da historiografia, que ela é ao mesmo tempo somente analógica (e portanto não implica nenhum reducionismo) e bem fundamentada no fenômeno do pertencer participativo. (Ricoeur, 1994, p. 283)[6]

Ainda segundo Ricoeur, mesmo quando o objetivo do historiador é falar de tendências e correntes, “é o ato de seguir a narrativa que lhes confere uma unidade orgânica” (1994, p. 217), de modo que tais tendências e correntes também figuram como personagens de uma história que deve ser acompanhada ao longo da sucessão de acontecimentos que a constitui.

 É nesse sentido que a idéia de Paul Veyne de que a escrita da História passa pela armação de uma intriga encontra respaldo. Para Veyne:

Os fatos não existem isoladamente, no sentido de que o tecido da história é o que chamaremos uma intriga, uma mistura muito humana e muito pouco “científica” de causas materiais, de fins e de acasos; numa palavra, uma fatia de vida, que o historiador recorta a seu bel-prazer e onde os fatos têm as suas ligações objetivas e a sua importância relativa”. (Veyne, 1983, p. 48)

Ao pensar a História em tais termos, Veyne não está apenas chamando a atenção para a forma narrativa da mesma; ele está apontando a responsabilidade do historiador, como sendo aquele que tece a intriga, na escolha daquilo que deve figurar como parte do enredo, e isto contra todas e quaisquer pretensões “positivistas” de que toda a história já esteja contada nas fontes. Por outro lado, dizer que há um recorte ao “bel-prazer” realizado pelo historiador/narrador pode dar margem a acreditar que ele inventa a sua história na medida em que as ligações entre os eventos relatados estariam apenas na própria narrativa, e não na estrutura do real extradiscursivo. Assim, Veyne descreve a História como um “romance verdadeiro”, embora esta expressão polissêmica não implique exatamente que a tarefa do historiador seja impor aos fatos algum tipo de configuração totalmente desvinculada – e por isto arbitrária – deles. Ao contrário, quando o pesquisador coloca-se diante de suas fontes, precisa extrair delas indícios das relações que encadeiam os acontecimentos para, a partir disto, fornecer algum tipo de interpretação. Por essa razão, E. P. Thompson condena a idéia de que a História seria apenas uma “narração fenomenológica consecutiva” – visto que não fornece causas suficientes para os fatos que busca explicar – dizendo que “a explicação histórica não revela como a história deveria ter se processado, mas porque se processou dessa maneira, e não de outra; que o processo não é arbitrário, mas tem sua própria regularidade e racionalidade; que certos tipos de acontecimentos (políticos, econômicos, culturais) relacionaram-se, não de qualquer maneira que nos fosse agradável, mas de maneiras particulares e dentro de determinados campos de possibilidades; que certas formações sociais não obedecem a uma ‘lei’, nem são os ‘efeitos’ de um teorema estrutural estático, mas se caracterizam por determinadas relações e por uma lógica particular de processo” (Thompson, 1981, p. 61).

Ocorre que, no momento em que a tarefa interpretativa é desenvolvida pelo historiador, ele se põe diante da necessidade de adotar certos procedimentos estéticos relativos à forma da narrativa que está escrevendo, o que significa escolher, entre os modos existentes de se contar uma história, aquele mais adequado ao material com o qual está trabalhando. Hayden White (1994 e 1995) chama esta prática de urdidura do enredo. É ela que permitiria a superação da mera crônica (relato cronológico dos acontecimentos) em direção à História propriamente dita. Nas palavras de White:

O modo como uma determinada situação histórica deve ser configurada depende da sutileza com que o historiador harmoniza a estrutura específica de enredo com o conjunto dos acontecimentos históricos aos quais deseja conferir um sentido particular. Trata-se essencialmente de uma operação literária, criadora de ficção. (...) a codificação dos eventos em função de tais estruturas de enredo é uma das maneiras de que a cultura dispõe para tornar inteligíveis tanto o passado pessoal quanto o passado público. (White, 1994, p. 102)

Sendo próprias de cada cultura, essas estruturas de enredo variam de caso para caso, sendo que o romance, a comédia, a tragédia e a sátira são os arquétipos narrativos apontados por White como aqueles disponíveis em nossa cultura e que têm servido aos historiadores quando estes buscam engendrar uma exposição significativa dos processos que analisam. A este respeito, é preciso acrescentar duas observações. Em primeiro lugar, quanto à escolha de um arquétipo narrativo, ela nem sempre é fruto de uma decisão totalmente consciente por parte do pesquisador. Pois nem todo historiador reflete tão longamente sobre as características estéticas de sua narrativa quanto sobre o conteúdo da mesma, e o modo como um “enredo historiográfico” é urdido muitas vezes depende mais de princípios éticos ou ideológicos do que de opções artísticas. Hayden White, por exemplo, cita quatro modos fundamentais de implicação ideológica – anarquismo, conservadorismo, radicalismo e liberalismo – que, no processo de construção de uma narrativa histórica, influenciam os modos pelos quais os pesquisadores urdem os enredos e explicam os acontecimentos. Em segundo lugar, o fato de que os textos históricos sejam escritos de acordo com modelos narrativos pré-existentes não implica que as próprias narrativas, em todas as suas dimensões, estejam determinadas de antemão como se o trabalho do historiador fosse apenas preencher um formulário padrão com os dados de sua pesquisa. Assim como os escritores, que têm à sua disposição um amplo leque de gêneros e estilos a partir dos quais realizam suas obras singulares e originais – gêneros e estilos cujos limites são constantemente desafiados –, o historiador também opera tendo como referência certos modelos narrativos que, entretanto, não são máquinas destinadas a produzir a mesma coisa segundo fôrmas imutáveis. Cada saber possui estruturas discursivas para a exposição de seus resultados que, embora atuem como condicionantes lingüísticos sem os quais a divulgação de uma pesquisa seria inviável, não produzem sozinhas esses resultados. A singularidade e a originalidade de uma obra histórica está justamente na articulação estabelecida pelo autor entre todos os elementos de sua narrativa, o que inclui o conteúdo, o tipo de explicação dos fatos, os pressupostos ético-ideológicos, bem como o gênero do enredo.

Obviamente, causa um certo desconforto para a maioria dos historiadores a idéia de que haveria alguma parcela de ficção em seus trabalhos, especialmente em se tratando dos críticos de White. O historiador brasileiro Ciro Flamarion Cardoso está entre eles. Num texto em que discute o já mencionado conceito de narrativa de Robert Scholes (Cardoso, 1997), segundo o qual no ato de narrar os eventos estão presentes como ficções, mas ausentes como realidades, Cardoso escreve que nesse caso se deveria dizer: presentes como ficções ou representações. Isto porque ele não acredita no caráter ficcional da História, mesmo reconhecendo que a narrativa histórica é formada por um conjunto de representações. A questão toda está em se definir o quão criativa é a constituição de uma intriga – ou de um enredo, se se preferir – pelo historiador: admitindo-se que a elaboração do discurso historiográfico sempre passa pela re(a)presentação, na forma de uma narrativa, de eventos que não existem mais “em si”, é correto não fazer distinção entre uma representação que se pretende “realista” e outra que se declara abertamente ficcional?

O que a História representa?

No estágio atual das discussões sobre esse problema ainda não há – e talvez nunca venha a haver – um consenso a respeito. A polarização das opiniões coloca em posições extremas os historiadores mais suscetíveis ao apelo das proposições pós-modernas e que vêem seu ofício com bastante ceticismo no tocante ao grau de veracidade de suas representações, e os outros que condenam veementemente a subsunção da narrativa histórica ao status de simples artefato literário.[7] Não há argumentos totalmente definitivos em nenhum dos lados, embora a posição mais interessante pareça ser uma que evite o dogmatismo e esteja aberta ao diálogo com ambos, não para se permanecer num cômodo lugar em cima do muro, mas para absorver o que há de produtivo nos pontos não-conflitantes das duas posturas. Assim, não é necessário negar que a História tenha certos aspectos literários e ficcionais para afirmá-la como um saber válido sobre a sociedade. Afinal, toda forma de conhecimento, mesmo o dito científico, repousa na construção de representações sobre as coisas e, por mais fiéis aos “fatos objetivos” que tais representações possam parecer, nunca deixarão de ter sido produtos da capacidade inventiva do homem de apreender mentalmente o mundo que o rodeia. No caso da narrativa histórica, o importante é não perder de vista que os termos “literário” e “fictício” não são sinônimos de “mentiroso” ou “irreal”. Quando o historiador narra os acontecimentos, ele está ao mesmo tempo dando uma explicação dos mesmos, e essa explicação não está pronta e acabada nos próprios documentos; ela precisa ser inventada pelo pesquisador usando a matéria-prima disponível, o que inclui não apenas as informações contidas nas fontes – as evidências –, mas também os paradigmas interpretativos existentes em sua cultura, sejam eles teórico-científicos ou estético-literários. O resultado dessa operação não é nem um reflexo do real histórico nem uma quimera, e surge, portanto, daquele diálogo entre conceito e evidência reivindicado por Edward P. Thompson (1981) como fundamento da própria lógica da pesquisa histórica. Dessa forma, retomando a questão sobre o que a História representa, podemos responder com Hayden White que

considerada como um sistema de signos, a narrativa histórica aponta simultaneamente para duas direções: para os acontecimentos descritos na narrativa e para o tipo de estória ou mythos que o historiador escolheu para servir como ícone da estrutura dos acontecimentos. A narrativa em si não é o ícone; o que ela faz é descrever os acontecimentos contidos no registro histórico de modo a informar ao leitor o que deve ser tomado como ícone dos acontecimentos “familiares” a ele. (WHITE, 1994, p.105)

Essa é, pois, a natureza da ficção na História.

No entanto, se existe essa homologia entre a escrita da História e a da literatura, isto não quer dizer que ambas possuem os mesmos atributos. Em primeiro lugar, quanto ao conteúdo, há de se lembrar que enquanto o objetivo do historiador é apresentar um relato sobre eventos pertencentes ao processo histórico, o escritor, e isto em certos casos específicos, preocupa-se apenas em produzir um quadro verossímil do que poderia ter ocorrido. De fato, o recurso obrigatório às fontes imprime restrições “realistas” à escrita do pesquisador, uma vez que não lhe é permitido inventar personagens ou eventos históricos com a mesma liberdade que a desfrutada por um literato; por outro lado, os escritores podem buscar, e buscam constantemente, inspiração para a construção do universo artístico configurado em sua obra na mesma “realidade” estudada pelo historiador. Na verdade, caso um autor produzisse um texto “totalmente ficcional”, talvez ele não encontrasse leitores sequer capazes de compreender o resultado de seu trabalho inventivo, com exceção, quem sabe, da literatura surrealista. É justamente porque existe um vínculo entre o texto e o contexto - usando a terminologia convencional -, isto é, uma reelaboração do real no fictício, que a obra literária pode permanecer não apenas nos limites da inteligibilidade, como também no rol dos documentos históricos. Contudo, por mais realista que o relato de um texto literário pareça, isto se deverá sempre ao efeito de verossimilhança provocado mais pelo talento do autor do que por um compromisso com a “verdade dos fatos”. Em segundo lugar, quanto à forma, muito embora os recursos narrativos utilizados por historiadores e escritores sejam iguais, permanece uma diferença de atitude diante desses recursos que é essencial. Segundo Paul Ricoeur, este é justamente o ponto que distingue o historiador de um simples narrador: pois o historiador

dá as razões pelas quais considera tal fator, mais que tal outro, como causa suficiente de tal curso de acontecimentos. O poeta cria uma intriga que também se mantém em virtude de seu esqueleto causal. Mas este não constitui o objeto de uma argumentação. Nesse sentido, Northrop Frye tem razão: o poeta procede a partir da forma, o historiador em direção à forma. Um produz, o outro argumenta. E argumenta porque sabe que se pode explicar de modo diverso. E o sabe, porque está, como o juiz, numa situação de contestação e de processo e porque sua defesa nunca está terminada: pois a prova é mais conclusiva para eliminar candidatos à causalidade, como diria William Dray, que para coroar um só para sempre. (Ricoeur, 1994, p. 266)

No mesmo sentido, White escreve que a forma do enredo de uma história não está predeterminada nos acontecimentos, posto que eles não são necessariamente trágicos, cômicos, românticos ou satíricos em si mesmos. É o historiador que os urde de uma maneira especial, que ele sabe não ser a única possível. Graças a essa consciência da multiplicidade interpretativa do processo histórico é que o pesquisador não fica preso à forma de sua narrativa, mas está livre para discutir seu objeto de estudo usando os recursos estéticos como instrumentos.

Dizer, como White, que não são os próprios acontecimentos que, por sua essência, definem a forma do enredo da narrativa, visto que na verdade não existiria neles um sentido único a ser adotado pelo historiador, é fazer uma afirmação que exige maiores explicações. Isto porque é questionável propor que os únicos responsáveis pelo caráter de um dado acontecimento são os historiadores que, a posteriori, confeririam a cada evento um significado no interior das narrativas que escrevem. Há também um outro nível de atribuição de sentido aos acontecimentos que, não obstante, deve ser levado em consideração pelos pesquisadores: o nível em que os agentes históricos envolvidos nos eventos produzem um entendimento de sua própria ação. As reflexões de David Carr (1986) são valiosas para se abordar essa questão.[8] Carr preocupou-se em refutar a proposição – atribuída por ele a Louis Mink, Hayden White e Paul Ricoeur, entre outros – de uma descontinuidade entre a narrativa histórica e a realidade, proposição baseada na idéia de que os acontecimentos reais não possuem nenhum tipo de ordem semelhante àquela que os escritores e os historiadores estabelecem quando contam suas histórias. Para tanto, o historiador ressaltou a existência de uma prática narrativa que se dá na vida de qualquer indivíduo e por meio da qual as experiências cotidianas são compreendidas dentro de uma estrutura temporal. Segundo ele, em nossas vidas

Consultamos de maneira explícita as experiências passadas, prevemos o futuro e contemplamos o presente como um trânsito entre ambos. O que quer que encontremos dentro de nossa experiência funciona como um instrumento ou como um obstáculo a nossos planos, anseios e esperanças. O que quer que seja a “vida”, dificilmente é uma seqüência sem estrutura de eventos isolados. (CARR, 1986, p. 18)

Em nossas ações, sustenta David Carr, estamos sempre “no meio de” algo, na medida em que relacionamos nossa situação atual como a anterior e tentamos antecipar os resultados futuros de nossas atitudes. Obviamente, lembra o autor, há uma diferença entre a posição privilegiada do narrador, que possui uma visão retrospectiva de toda a história que está contando, e a dos indivíduos que estão vivendo a própria história. Entretanto, mesmo que o esforço destes últimos para compreender seus atos dentro de uma seqüência do tipo começo-meio-fim seja frustrado pela não concretização de seus planos, ainda assim eles terão criado, para si mesmos, um relato de suas próprias vidas, uma narrativa em que os eventos vividos recebem significados quando se reflete sobre eles. Assim, escreve Carr que “[os relatos] são contados ao se vivê-los, e são vividos ao se contá-los. As ações e os sofrimentos da vida podem ser vistos como um processo de narrarmos histórias a nós mesmos, escutarmos essas histórias, atuarmos nelas, ou as vivermos” (1986, p. 22).

Se tudo isso vale para os indivíduos, David Carr acredita que também possa ser aplicado às coletividades. Apesar de todos os problemas teóricos envolvidos na afirmação de que uma entidade social tem atitudes semelhantes às de uma pessoa, é difícil negar que os membros de um grupo possuem certas características em comum que os fazem ver a si mesmos como parte de algo maior e os levam a usar o pronome “nós” para falar de si. Segundo Carr, a condição de habitar um território, de organizá-lo política e economicamente, de enfrentar ameaças físicas ou humanas socialmente, cria laços entre as pessoas de tal forma que elas atribuem sentidos às suas ações não apenas pelo que significaram para elas como indivíduos, mas também por meio de suas experiências como coletividade. Por isso é correto dizer que

nós temos uma experiência em comum quando nós compreendemos uma seqüência de fatos como uma configuração temporal de tal maneira que sua fase presente derive seu significado de sua relação com um futuro e um passado comuns. Comprometer-se em uma ação comum é como constituir uma sucessão de fases articuladas como passos e etapas, subprojetos, meios e fins. O tempo social humano, assim como o tempo individual humano, está construído sobre seqüências configuradas que integram os fatos e os projetos de nossa ação e de nossas experiências comuns (Carr, 1986, p. 24).

E se as entidades sociais criam para si uma compreensão dos eventos que leva em consideração uma articulação temporal entre eles, igualmente produzem, na perspectiva de Carr, narrativas no interior das quais tais eventos recebem seus significados.[9]

O corolário das reflexões de David Carr reside, pois, na proposição de que a função narrativa é prática antes de ser cognitiva ou estética, e que não faz sentido opor de forma absoluta a coerência estrutural das narrativas históricas e ficcionais a uma pretensa falta de conexão e de ordem nos eventos da vida individual e social. Todavia, é preciso ressaltar que Carr não afirma uma simetria perfeita entre os relatos produzidos pelos agentes históricos e aqueles escritos por historiadores e literatos.

O processo narrativo prático de primeira ordem que constitui uma pessoa ou uma comunidade pode converter-se em uma narração de segunda ordem cujo assunto é o mesmo, mas cujo interesse se encontra de maneira fundamental no cognitivo ou no estético. Esta mudança no interesse também pode acarretar uma mudança no conteúdo – por exemplo, um historiador pode contar a história de uma comunidade que seja muito diferente da história que é contada pela própria comunidade (por meio de seus dirigentes, jornalistas e outros). A forma, entretanto, não muda. (Carr, 1986, p. 26)

Em outras palavras, pode-se dizer que as narrativas de primeira ordem são passíveis de se tornarem fontes para os pesquisadores, na medida em que, materializando-se em algum tipo de documento – seja escrito, oral, imagético ou outro –, elas manifestam os significados que seus autores, individuais ou coletivos, conferiram à história que viveram. Como Carr reconhece, nem sempre as narrativas de segunda ordem coincidem com as que lhes servem de referência primária. Tomadas como representações de mentalidades, de culturas, de visões de mundo ou de ideologias, as narrativas de primeira ordem são apenas um elemento entre outros a ser levado em consideração pelos historiadores, os quais podem e devem abordar criticamente tais relatos sem se limitarem a reproduzi-los como se fossem descrições transparentes da realidade. A incorporação do conteúdo desses relatos a uma narrativa histórica depende, em última instância, das opções temáticas e teórico-metodológicas feitas pelos historiadores. Além disto, há uma segunda maneira por meio da qual as narrativas de primeira ordem lhes servem de referência. Sendo eles mesmos sujeitos históricos, também realizam aquela atividade narrativa prática apontada por Carr e, por isto, sua compreensão do mundo e o conhecimento histórico que compõem são influenciados, em maior ou menor grau, pelas narrativas individuais e coletivas que eles ajudaram a produzir.

Concluindo, enfim, e retomando algo que já foi dito, é primordial enfatizar que os acontecimentos não possuem significações unívocas “em si”: são as narrativas sobre eles, tanto as formuladas pelos sujeitos históricos quanto as elaboradas pelos historiadores, que dão origem às múltiplas interpretações a respeito dos eventos.

Narrar é o mesmo que explicar?

Como foi dito, o objetivo do historiador ultrapassa a descrição pura e simples dos acontecimentos, pois busca atingir algum nível de explicação daquilo que está sendo relatado. No entanto, em que consiste o ato de explicar em História? Como a narrativa escrita pelo pesquisador é capaz de produzir um entendimento por parte do leitor? De certo modo, estas perguntas já foram parcialmente respondidas quando se tratou de mostrar que o enquadramento da narrativa histórica em um determinado arquétipo procura promover uma aproximação entre o leitor e o conteúdo da história, ou seja, uma familiarização. Isto significa que a estrutura narrativa, em si mesma, pressupõe um princípio de explicação. Tal é a opinião de Paul Veyne a respeito, segundo o qual a explicação histórica

não se distingue muito do gênero de explicação que se pratica na vida de todos os dias ou em qualquer romance onde se conte essa vida; ela não é mais do que a clareza que emana duma narrativa suficientemente documentada; ela oferece-se de si própria ao historiador na narração e não é uma operação distinta desta, não mais do que o é para o romancista. Tudo o que se conta é compreensível, visto que o podemos contar. (Veyne, 1983, p. 118)

Uma narrativa suficientemente bem desenvolvida deveria, desse ponto de vista, ser auto-explicativa. Ainda de acordo com Veyne, se se quer explicar a razão de alguma coisa ter acontecido – a Revolução Francesa, por exemplo –, basta que se faça a narrativa dos antecedentes desse acontecimento, pois “a palavra causa designa esses mesmos acontecimentos: as causas são os diversos episódios da intriga” (Veyne, 1983, p. 119). Assim, tem-se que o esquema representado por “isto depois daquilo”, característico do desenvolvimento temporal da narrativa, não se distingue absolutamente de “isto por causa daquilo”. Conseqüentemente, para compreender o porquê da conclusão de uma história é preciso acompanhá-la não como se se tratasse de uma argumentação lógica cujo desfecho é, pelo próprio mecanismo silogístico, obrigatório; pelo contrário, deve-se seguir todos os episódios que compõem a intriga em direção a um final não-previsível que se explica retrospectivamente por meio dos eventos que o precederam (Ricoeur, 1994, p. 215).

Concordando-se com as afirmações de Veyne, a questão da causalidade na História, motivo de longas discussões, estaria facilmente solucionada. Afinal, Veyne resume o assunto aos aspectos constitutivos da narrativa:

“Procurar as causas”, é contar o fato duma maneira mais penetrante, é trazer à luz do dia os aspectos não-acontecimentais, é passar da banda desenhada ao romance psicológico. É vão opor uma história narrativa a uma outra que teria a ambição de ser explicativa; explicar mais é contar melhor, e de qualquer modo não se pode contar sem explicar (Veyne, 1983, p. 121-123).

O bom historiador seria, portanto, aquele capaz de incluir em sua narrativa todos os fatos necessários para que o leitor apreenda o fio da intriga que, nele mesmo, já conteria sua explicação e dispensaria maiores comentários. Apesar de reconhecer que a historiografia atual tem se preocupado em incluir interferências analíticas em seus relatos dos eventos, Veyne acredita que mesmo assim ela continua passando pela tessitura de intrigas, havendo apenas um aprofundamento da narrativa. Isto é correto pelo menos em parte, visto que é válida a crença de que a explicação procede do discurso narrativo. Contudo, como Paul Ricoeur alerta, nem sempre o encadeamento dos elos de uma história é coerente o bastante para proporcionar uma compreensão satisfatória. O recurso ao instrumental analítico-explicativo de outros saberes permite ao historiador suprir as falhas presentes em sua narrativa, apresentando algum tipo de generalização como meio para reatar o fio interrompido da intriga. “Se pois toda narrativa explica-se por si mesma, num outro sentido, nenhuma narrativa histórica se explica por si mesma. Toda narrativa histórica está em busca da explicação a ser interpolada, porque fracassou em se explicar por si mesma.” (Ricoeur, 1994, p. 221) Graças a alianças com as Ciências Sociais[10], a História pôde desempenhar melhor aquilo que Hélio R. Cardoso Jr. (1996) chama de tarefa teórica, isto é, a elaboração conceitual, que junto com a tarefa narrativa leva à constituição do discurso do historiador.

Problemas éticos da História na pós-modernidade

Visto tudo isso, é interessante concluir este texto levantando um problema que não é somente de ordem teórica e tem causado inúmeras polêmicas entre a comunidade dos historiadores: quais são as implicações éticas de se considerar a narrativa histórica tão próxima da literatura? A crise da noção de representação que, como já foi mencionado, levou muitos a questionarem os estatutos epistemológicos da História, conduz à situação extrema da afirmação da equivalência entre todas as narrativas em termos de veracidade. Os críticos de White, inclusive, condenam suas proposições por verem nelas uma redução da explicação histórica aos efeitos estéticos do uso de tropos literários, de modo que qualquer forma de interpretação dos acontecimentos seria viável. Nesse sentido, o discurso do historiador não apenas teria perdido seu potencial crítico – já que não haveria mais critérios válidos para julgar se uma história é mais ou menos correta quanto à referência que faz aos eventos relatados – como assumiria o papel de mero artefato literário cujo objetivo é somente entreter seus leitores. Se um mesmo processo histórico é passível de ser narrado de diferentes modos e a documentação que lhes serve de fonte não basta para atestar o grau de veracidade das narrativas, as ameaças do esquecimento e da “falsificação” rondam perigosamente a oficina da História.

Ora, em um texto no qual contrapõe a história à memória, Edgar Salvadori de Decca diz que “a característica mesma da história é a de ser um conhecimento em permanente construção e sujeito a contestações, ao passo que a memória depende da valorização monumental dos vestígios do passado para a sua permanência” (2001, p. 31). Enquanto a memória, individual ou coletiva, está sempre sujeita ao esquecimento, a História perpetua o conhecimento do passado na medida em que prima por revisitar constantemente seus objetos de estudo por meio do questionamento das fontes, as quais podem ser ampliadas ou analisadas sob novos pontos de vista. De Decca acredita que não se pode deixar de lado o fato fundamental de que a História, como saber, constitui-se desde o início como uma narração sob o primado de uma investigação, uma investigação baseada sempre em documentos. Para a História, escreve ele, “é a exigência documental que funda o acontecimento e não o contrário, isto é, a sua narrativa” (Decca, 2001, p. 30). Em outras palavras, a origem da História está em primeiro lugar no estudo das fontes, e não na narração dos eventos.

Essa argumentação teórica feita por de Decca é efetivada como introdução a uma discussão sobre um dos pontos da História do século XX que vem causando polêmicas acirradas dentro e fora das academias: o Holocausto. Visto como um acontecimento-limite que pôs em cheque as concepções políticas, éticas e mesmo epistemológicas em vigor antes de sua ocorrência, o genocídio industrialmente organizado realizado pelos nazistas mostrou-se um desafio tanto para os historiadores “realistas” quanto para os “pós-modernos”. Para os primeiros, trata-se de enfrentar os problemas causados pela destruição sistemática dos documentos relativos ao Holocausto, visto que os nazistas quiseram eliminar, junto com suas vítimas, também as provas de seus atos. Para os segundos, a questão é responder às acusações de que sua falta de critérios probatórios para as narrativas históricas autorizaria, inclusive, a negação da existência do próprio Holocausto, já que se poderia escrever uma história da época sem levar em consideração os vestígios do genocídio, mas apenas as afirmações dos defensores do nazismo. De Decca diz que os chamados “revisionistas” têm tentado argumentar contra o Holocausto a partir de documentos, o que, pelo menos, mantém o campo aberto a discussões pelos historiadores, garantindo o não-esquecimento da História. Neste caso, é a prova documental que tem o poder decisório. Entretanto, se a questão é reduzida a seus aspectos puramente narrativos, onde as referências extradiscursivas não importam muito, o que pode ser feito para que a História não se torne terreno para todo o tipo de falsificações?

Francisco J. C. Falcon resume em um texto sobre representações (Falcon, 2000) as controvérsias a respeito do Holocausto que permeiam as teorias narrativistas pós-modernas. Sintetizando as principais idéias contidas nos ensaios de Investigando os limites da representação, livro organizado por Saul Friedlander, Falcon mostra os impasses a que chegam os autores como Hayden White quando as conclusões de suas teorias são confrontadas com situações-limites como o Holocausto. Tamanhas seriam as implicações éticas de se negar a veracidade da história do Holocausto, que White, escrevendo a respeito, chega a questionar suas próprias idéias, afirmando, assim como Dominique LaCapra, a necessidade de

novas categorias de análise histórica uma vez que as abordagens positivas e as suas técnicas tornaram-se insuficientes a um ponto tal que se poderia até mesmo pôr em dúvida os próprios pressupostos da historiografia. Em face de “acontecimentos-limite”, como o Holocausto, as técnicas convencionais são inadequadas, já que nestes casos a linguagem pode esfacelar-se e cabe ao historiador perceber o processo significante e expressivo desse esfacelamento. (Falcon, 2000, p. 69)

Esse é, enfim, um problema sério enfrentado pela disciplina histórica e um desafio inegável a seus praticantes. A ampliação dos horizontes teóricos ajudou os historiadores a ter uma consciência muito maior das características epistemológicas e estéticas de seu discurso, mas, ao mesmo tempo, chegou a ponto de ameaçar cortar o vínculo da História-conhecimento com a História-processo. Eticamente, isto pode significar o fim de qualquer compromisso dos historiadores com o esclarecimento da sociedade a respeito de seu passado, e, de uma forma geral, um empobrecimento lamentável da História se esta vier a se tornar um mero objeto de entretenimento para seus leitores. Contra essa tendência, que de modo algum é inevitável, é preciso lembrar que nos domínios da literatura existiram, e ainda existem, inúmeros exemplos de escritores que fizeram de sua arte uma verdadeira arma para combater em nome de causas que transcenderam as discussões puramente estéticas, tornando-as dessa forma questões de crucial importância para as sociedades em que tais batalhas foram travadas. Os nomes de Voltaire, Zola, Brecht e Sartre são apenas alguns dos mais conhecidos entre os literatos-intelectuais que trilharam os caminhos da arte engajada, assumindo um pacto ético e político com os rumos da história. Cabe então aos historiadores de hoje e do futuro inspirar-se nesses exemplos, lembrando-se sempre da vocação investigativa de seu ofício, para não se perder na contemplação estética de sua obra, bem como para não se tornar prisioneiros nas teias de suas próprias narrativas.

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[1] Sobre a distinção entre língua e fala, ver Saussure (1997).

[2] Para uma abordagem mais ampla do linguist turn e de sua influência sobre a historiografia, ver Iggers (1996).

[3] Recomenda-se aos leitores que desejarem ver o assunto sob outros enfoques, a leitura dos textos de L. Stone (1979) e de E. Hobsbawn (1979), os quais realizaram um interessante debate sobre a questão do chamado “retorno da narrativa”.

[4] No século XVIII, por exemplo, um inovador no campo da pesquisa histórica, o filósofo francês conhecido pelo pseudônimo de Voltaire, definiu a História como “narração de fatos considerados verdadeiros, ao contrário da fábula, narração de fatos considerados falsos” (1988, p. 119).

[5] Ver, por exemplo, o trabalho de José Carlos Reis (1996) que trata de quatro importantes escolas historiográficas, a saber, a metódica (dita “positivista”), a historicista, a marxista e a dos Annales.

[6] Tal fenômeno refere-se ao laço de pertinência que une os indivíduos no interior de uma sociedade na qual são partilhados códigos simbólicos (normas, costumes, ritos, etc.) por meio dos quais eles se reconhecem como membros de uma coletividade (Ricoeur, 1994, p. 281-282).

[7] Para uma visão geral dessa polêmica referente à “crise da noção de representação”, ver Cardoso e Malerba (2000).

[8] Para uma abordagem das reflexões de David Carr no contexto de uma crítica ao anti-realismo epistemológico contemporâneo, ver Cardoso (1998).

[9] Enfatizando o caráter dialético da construção das identidades sociais por meio da prática narrativa, Eliane S. Rapchan escreve que “as experiências constroem as narrativas da mesma forma que as narrativas constroem as experiências. A vida social é construída na prática da narração e a narração adquire vida e sentido na vida social”, de modo que “o sujeito constitui sua identidade no ato de narrar (construindo, assim, a si mesmo) e, neste sentido, sua própria existência e realidade, através da narrativa” (1997, p. 353).

[10] Para uma discussão mais detalhada de tais alianças, ver Reis (1994 e 1996)

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Publicada em 03.12.04 - Última atualização: 26 abril, 2005.