Estado
de Direito Político
Vinício
C. Martinez
RESUMO:
O texto procura abordar (indicando algumas pistas) a idéia de
que, do século XVII em diante, a política passou definitivamente
a ser a fonte primeira e primária do direito (jurisdicização).
Ao que se seguiu, como desdobramento quase natural, a geração de
direitos políticos e, com eles, a própria expectativa de que o
poder político seria julgado, agora a partir do século XX (judicialização).
Por fim, dada esta expansão da judicialização do poder político,
agora o que temos em tela é a judicialização dos juízes, isto
é, do Poder Judiciário.
PALAVRAS-CHAVE:
jurisdicização; judicialização; política; Estado de Direito.
SUMÁRIO:
1. Jurisdicização da política; 2. Judicialização da Política;
3. Judicialização do Poder Judiciário; 4. Política e Direito;
5. Visibilidade do Tema; 6. Bibliografia.
STATUS
OF POLITICAL RIGHT
Abstract:
This paper is intended for making an approach (and also giving
some hints) to the idea that the Politics was definitely the first
and foremost source of Right (jurisdictionalization)
from the 17th century on. Afterwards, in an almost
natural development, there was the generation of political rights
and the expectation that the political power would be judged from
the 20th century on (judicialization). At last, given
the expansion of the political power, it is discussed the
judicialization process among judges, i.e., in the Juridical Power.
Keywords:
jurisdictionalization,
judicialization. Politics, status of Right
Summary:
1. Politics jurisdictionalization;
2. Politics judicialization; 3. Juridical Power
judicialization; 4. Politics and Rights; 5. View of theme; 6.
Bibliography
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1ª
Fase: Jurisdicização da política
Nosso
tema remonta aos séculos XVII e XVIII, mais precisamente à fase inicial
do Estado de Direito – em que o próprio Direito Moderno é embrionário,
primário e originário – e que, de certa forma, também corresponde ao
Estado Constitucional: da constitucionalização da atividade política.
O Estado Constitucional nasceu na Revolução Americana e na Revolução
Francesa e se sedimentou nas suas Constituições.
É uma fase privilegiada para a análise que propusemos porque se trata da
geração de direitos provinda diretamente da interface política, ou
seja, foi nesse período histórico que deslancharam os direitos políticos.
Por
isso, essa fase também costuma ser designada como a primeira tentativa
(com sucesso) de “racionalização da política”, de instauração de
amplo e ilimitado Poder Constituinte Popular (um verdadeiro Estado de
Direito Constituinte Revolucionário ou Originário), da primeira e séria
tentativa de positivação constitucional da vontade política do povo
(Negri, 2002).
Em
outras palavras, nesta fase inicial de criação/afirmação dos direitos
políticos, estamos tratando da conhecida jurisdicização da política
e do poder. O que ainda remete para a idéia fixa e central de que
há uma transformação da política em lei – sendo que a lei também é
entendida como ato organizado (que deriva da vontade e da soberania
popular) e racional (quando se torna ou passa a fazer parte de uma
instituição representativa do poder político).
Especificamente
no período revolucionário apontado, a racionalização e a
institucionalização da política estiveram a cargo da Assembléia
Nacional Constituinte legal e legítima (não só representativa, como
hoje em dia – pois, muitos dos constituintes foram combatentes). A
Assembléia foi consentida e produtora, ao mesmo tempo, de um novo
consentimento, consenso, demonstrando ampla capacidade de normar, sem
ser normada. Então, a lei (já como produto derivado da política)
constitui-se em meio de contenção dos efeitos (violentos e de transformação)
dessa mesma política que lhe deu vida, origem.
Assim,
neste sentido, a lei equivale à vontade do povo constituinte em
ver a relação política ser transformada em sentido expresso,
descritivo, narrativo (e mesmo que conciso). Com isso, entramos na era da
política publicada em texto e ao alcance de todos: (a lei é) a política
reduzida a termo.
De
modo similar, foi uma tentativa honrada e bem intencionada dos revolucionários
(um Maquiavel a favor da soberania popular e não só estatal) em
circunscrever suas ações políticas em legado escrito, objetivo, uma espécie
de domesticação ou esterilização da violência política própria
desse período revolucionário. Neste aspecto, o direito corresponde à
busca do equilíbrio, entre a força política desperta pela revolução e
a razão que leve à construção do novo Estado, da Federação e do
Estado de Direito agora derivado, uma vez que já se materializou na própria
Constituição: um contrato de paz ou trégua estabelecido pelo vencedor.
A
lei, portanto, surge dessa fase histórica como transformação da política,
do seu jogo e das regras inatas a esse tipo de “realismo do poder”
(que vença o mais astuto e de maior virtú), na palavra escrita
postada no novo contrato social.
Até porque a palavra falada tem o calor da hora, do discurso e
também se esvai com o vento e com o tempo – e a escrita é o documento
em que se sintetiza um espírito, as intenções mais fortes, os ideais
prevalecentes. Enfim, a Constituição documenta a nação, a cultura jurídica,
o apego popular e democrático ou não. Em seguida, a lei (re)converte-se,
ou melhor dizendo, gera os direitos políticos de primeira geração.
De lá (séc. XVIII) para cá (séc. XXI), outras gerações ou dimensões
de direitos políticos já estão à prova da realidade e da apreciação
popular.
Como
resumiu Teixeira (2001), os principais direitos políticos trazidos e
assegurados pela nossa atual Constituição refletem certa segurança jurídica
conferida especialmente ao chamado Princípio Democrático – como
sinalizado nas cláusulas pétreas no art. 60, § 4º, I a IV, da CF.
Vejamos como ele recorta a Constituição:
Direitos
políticos (art. 14 a 16); direito a questionar a constitucionalidade das
leis e dos atos dos governantes (art. 103) (...) direitos (...) como vítima
de desigualdades regionais e sociais (...) direitos do cidadão face à
administração pública, no que diz respeito a cargos, empregos e funções
públicas, aos concorrentes a obras, serviços e compra e alienações da
administração pública, aos serviços públicos, à responsabilidade
civil das pessoas jurídicas de direito público e de direito privado
prestadoras de serviços públicos; direito de responsabilizar o
presidente da República por atos que atentem contra o exercício dos
direitos políticos, individuais e sociais; direitos humanos e direito de
responsabilizar o Estado pela sua violação; direitos dos anistiados e
das pessoas punidas com perda dos direitos políticos; direitos dos
servidores públicos, ativos, inativos e pensionistas (atualização dos
benefícios) (pp. 169-170).
Aliás,
neste sentido, faço apenas uma ressalva: é necessário
ressaltar/contextualizar os direitos políticos em fases ou gerações.
Vejamos resumidamente algumas dessas fases, dimensões ou gerações de
direitos
(não estando totalizadas):
1.
direito de resistência (no caso de o soberano atentar contra o povo);
2.
direito de petição (para inquirir abuso de poder ou requerer novos
direitos junto ao soberano);
3.
direito de participação e de reunião (além das corporações de ofícios);
4.
direito de voto (ainda censitário);
5.
direito de associação (em partidos, sindicatos);
6.
sufrágio universal (em que entre 80 e 90% da população têm condições
de intervir nos rumos do Estado);
7.
direito de voto e de assembléia (democracia plebiscitária: decisão política,
com aceitação ou reprovação popular, sobre políticas públicas por
meio de referendos e plebiscitos);
8.
direitos da democracia radical (exercício vigoroso da soberania popular
como controle do poder político);
9.
direitos da democracia virtual (o uso da rede como interface
entre cidadãos e governo).
Em
suma, trata-se tão somente do Princípio Democrático aplicado a toda
Administração Pública, conforme nos ensina Canotilho (pp. 285-325),
e não só ao direito de votar e de ser votado (como se pensa no
dia-a-dia). O Princípio Democrático nem mesmo se resume aos direitos políticos
de participação, como aos já referidos referendos ou plebiscitos. Como
indica Canotilho, trata-se do princípio democrático como norma jurídica
constitucionalmente positivada, para em seguida complementar: “é um
princípio jurídico-constitucional com dimensões materiais e dimensões
organizativo-procedimentais” (s/d, p. 285).
Corresponde
à fase dos direitos políticos concernentes ao Estado Democrático de
Direito e aos mais plenos direitos da cidadania democrática: a exemplo do
fato de que o cidadão deve fiscalizar o poder público, uma vez que a CF
o trata como agente ativo (e não passivo) do Estado, da República, da
Federação e da Administração Pública. E já que iniciamos o
tratamento da Administração Pública, vejamos em que sentidos a
jurisdicização se transforma em judicialização da política, no
tocante à responsabilidade pública (art. 37 e 38 da CF).
2ª
Fase: Judicialização da Política
Como
dissemos, este é um processo que se inicia no século XX, ao mesmo tempo
como reflexo e como alavanca do Estado Democrático (ao final da 2ª
Guerra Mundial) e depois, entre a década de 70 e 80, como marca que
selaria o perfil do Estado Democrático de Direito (com as Constituições
Portuguesa e Espanhola).
Do
que vimos, a racionalidade da lei, num sentido mais preciso, deve seguir
e/ou induzir ao controle social da política – tornando o poder e
a política mais amarrada, estando mais contidos, justamente porque
ficaram mais visíveis e transparentes. E com isso a lei ainda pode ser
vista como luneta ou como microscópio, para quem abre ou então fecha o
foco, se requer o macro ou distante ou se prefere o próximo e mais recôndito,
de acordo com o campo de visão histórico ou cotidiano, social ou momentâneo,
se opta pela ótica da classe e do grupo ou só dos indivíduos, se quer o
todo ou se bastam as parcelas.
De
lá para cá, diante dos incontáveis efeitos decorrentes desse processo
de jurisdicização da política, deve-se acrescentar a noção e a
prática posterior da judicialização da política e do poder (e
que reputamos da mesma natureza, mas de outra ordem). Trata-se do período
em que a política e os políticos vão parar nos fóruns, nas barras dos
tribunais, no banco dos réus.
Equivale
à passagem da primeira fase da jurisdicização (deliberação com base
na vontade política popular) a um segundo estágio, em que o julgamento
agora se dá a bem do interesse público e é coordenado por
magistrados especializados. A transição se dá do popular ao
especialista, do político ao técnico – uma transição que
consubstancia o conhecimento técnico acumulado pelo Poder Judiciário
como disponibilidade (nem sempre disposição) para punir e reparar
os desvios dos atos administrativos e políticos. Como diz Teixeira
(2001):
No
Brasil (...) tanto os juízes de primeiro grau quanto o Supremo Tribunal são
autorizados constitucionalmente ou podem ser requisitados a intervir no
processo de elaboração e de implementação de políticas por meio da
sua atuação limitadora da ação dos outros poderes, ou seja, desde que
representando seus partidos, os políticos bem como os atores sociais
representando entidade de classe de abrangência nacional, na forma
prescrita pela Constituição e de acordo com a interpretação do STF, têm
legitimidade para solicitar a declaração de inconstitucionalidade em
processos concretos ou de revisão abstrata da norma. A identificação
desse fundamento no sistema político é critério crucial para se
verificar a possibilidade de haver ou não judicialização em relação a
todas ou a determinadas políticas públicas
(p. 73).
De
forma direta, do julgamento moral e eleitoral se vai à análise técnica,
formal e especializada, do povo recorre-se ao profissional. Ainda é
curioso notar que a política geradora da lei é agora julgada pela própria
lei a que deu origem: é a ação da regra da bilateralidade da norma
jurídica. É a ação direta da judicialização da política, do
Poder Judiciário e da polícia, além de corresponder à maturidade político-institucional
alcançada no Estado Democrático de Direito: um modelo de Estado
socialista no bojo da economia capitalista.
O
Estado Democrático de Direito, no contexto que nos interessa no texto,
foi capaz de unificar posturas, perfis e preceitos de modelos ou fases de
Estados anteriores. Aliás, recorde-se, as cláusulas pétreas representam
e preservaram exatamente os ditames do chamado núcleo duro do
Estado de Direito e do Estado Democrático. Excluiu-se a possibilidade de
revisão constitucional, por meio de emendas constitucionais das seguintes
prerrogativas: a) Federação; b) separação dos poderes; c) princípio
democrático; d) direitos individuais. Mas, vejamos mais analiticamente:
1.
Estado de Direito originário (incluindo o Estado Liberal): deste
modelo, reteve-se o império da lei e a bilateralidade dos efeitos da
norma jurídica (o que afeta o Estado); a defesa dos direitos individuais.
O que vale dizer, mais uma vez, transformou-se em jurisdicização e
posterior judicialização da política e do Poder Judiciário. Fenômeno
que, juridicamente, corresponde à última e mais elaborada geração de
direitos políticos: quando as minorias podem vencer, judicialmente, as
maiorias partidárias ou parlamentares (CF, art.60, § 4º, III, IV).
2.
Estado Democrático (somando-se o ideal de República e de Federação):
vê-se a fruição do princípio democrático em sua essência, pois se
estabeleceu e se cumpriu o preceito de que: “a regra da maioria será
sempre acatada, mas, ainda mais legítima, quando disser respeito à segurança
jurídica dos interesses manifestados pelas minorias” (CF, art.60,
§ 4º, I, II).
3.
Estado Social (sobretudo as garantias sociais e trabalhistas): no
jogo de forças perpetrado na Assembléia Constituinte de 1986, no Brasil,
neste caso, levou melhor a direita, uma vez que os direitos e as garantias
sociais e trabalhistas não foram acolhidas no rol das cláusulas pétreas,
assim como o próprio princípio da justiça social. Este fato político
permitirá no presente-futuro a revisão, flexibilização, extinção de
muitos direitos trabalhistas. Portanto, não se trata de esquecimento ou
descuido: era ato intencional e deliberado deixar um clarão jurídico às
administrações futuras para denegar, desfigurar muitos direitos
secularmente conquistados e garantidos (CF, art. 6º e 7º).
Porém,
ainda que tivéssemos sofrido um abalo dessa grandeza nas instituições
sociais (também democráticas), o princípio democrático saiu vitorioso,
fortalecido e é isto que impede a tirania da maioria e fortalece a
pluralidade e a tolerância política. A isto, no entanto, denomina-se de
conquista popular da judicialização da política (um tratamento jurídico
e técnico em benefício dos mais fracos politicamente). Esta é a posição
suscitada pela leitura de Teixeira (2001):
O
caminho da interação com o Judiciário, aberto aos partidos políticos,
inquestionavelmente gerou espaço inédito à proteção e ao exercício
dos direitos da minoria parlamentar. Da mesma forma, a extensão desse
direito às confederações sindicais e às entidades de classe contornou
o monopólio partidário da representação política, o que tem permitido
que os diferentes grupos de interesse da sociedade exerçam, discutam e
procurem a implementação dos direitos constitucionais (p. 26).
As
Adins (Ações Declaratórias de Inconstitucionalidade) são o principal
instrumento de judicialização da política ou de politização do Judiciário.
Com a CF de 88, pelo art. 103, abriu-se um leque razoável para que novos
agentes sociais e políticos pressionassem o Judiciário a tomar posições
políticas. Um exemplo clássico envolveu a venda da Vale do Rio Doce,
sobretudo quando houve uma procura intensa por liminares (Teixeira, 2001,
pp 86-94).
Parece
que essa discussão não diverge muito do que, há muito, José Eduardo
Faria (1989) tratava como “politização das lides” ou de ´coletivização
dos conflitos”.
Uma vez que a política de resultados é evidente, manifesta, salta
aos olhos em qualquer processo, haja vista que interesses estão
invariavelmente em jogo e que, independentemente de qualquer noção ou
perspectiva de justiça, os lados envolvidos consideram apenas a verdade
parcial de cada um.
Por
outro lado, institucionalmente, esta atuação do Poder Judiciário ainda
equivale à revisão política (political review), uma
prerrogativa do Judiciário em equilibrar, reverter, anular,
corrigir a atividade política e/ou legislativa de profundo desinteresse
social. Ainda com Teixeira (2001):
Ou
seja, o juiz ou tribunal constitucional dispõe da prerrogativa de julgar,
incidentalmente ou na hipótese de que seja requisitado pelos atores legítimos
a fazê-lo, se determinada política legislativa está de acordo com os
princípios e mandamentos da Constituição sem que para isso seja necessário
decidir, tendo em vista um caso concreto. Enfim, julga-se abstratamente a
lei, ou a proposta de lei, em si (p. 38).
Desta
conotação, teríamos de encontrar uma (re)ligação com a proposta ou
postura de Administração Pública que pudesse satisfazer minimamente as
condições de governabilidade. Pois se vemos a capacidade notável, hoje
em dia, do Poder Judiciário intervir/interferir nos assuntos concernentes
ao executivo, por outro lado, juridicamente, o processo crescente,
constante de jurisdicização já sinalizava para o estreitamente dos
limites (liberdade de ação) das atividades e tarefas executivas.
Parafraseando Carré de Malberg, já anotei em outro contexto que:
Por
conseguinte, em suas relações com os administrados, a autoridade
administrativa não deve somente abster-se de atuar contra legem
senão que ademais está obrigada a atuar somente secundum legem,
ou seja, em virtude das habilitações legais. Finalmente, o regime do
Estado de Direito implica essencialmente que as regras limitantes que o
Estado impôs a si mesmo, em interesse de seus súditos, poderão ser
alegadas por estes da mesma maneira que se alega o direito, já que
somente com esta condição terão de constituir, para o súdito,
verdadeiro direito (Malber, 2001 IN: Martinez, 15/05/2204).
Vê-se
aí que, ao longo dos séculos XIX e XX a administração do Estado veio
sendo condicionada juridicamente (ora pelo princípio da legalidade, pela
regra da bilateralidade da norma jurídica, ora pela regulação/limitação
direta das atividades políticas e administrativas do Estado), quer fossem
atividades próprias do Legislativo, quer fossem as do Executivo. De
qualquer modo, o administrador público cada vez mais será julgado e
levado a tomar decisões de cunho político e administrativo (mesmo que a
contragosto), em virtude de decisões judiciais. É evidente que o Poder
Judiciário arrogou para si muitas das tarefas antes exclusivas do Poder
Executivo e, por isso, diz-se que é chegado o tempo do juiz-administrador.
3ª
Fase: Judicialização do Poder Judiciário
No
momento atual, numa terceira fase, estamos tratando da judicialização do
Poder Judiciário: os juízes são julgados por outros juízes e o Poder
Judiciário é analisado/julgado pelo poder político e pela sociedade
civil organizada. Isto é, da política vieram as leis que passaram a
julgar a própria política, e agora a política (por meio do controle
externo do Poder Judiciário) passaria a julgar os antigos ou clássicos
julgadores – os juízes.
Com
a judicialização do Poder Judiciário, entretanto, advém outra
modalidade de problemas de ordem teórica e prática – teoricamente, o
próprio sistema de freios e contrapesos nem sempre está
equilibrado e, de forma prática, não há como os juízes serem “homens
da lei imparciais”, uma vez que é impossível esvaziar a mente – o
que seria necessário para que as decisões pudessem ser objetivas,
neutras e imparciais. Portanto, daqui por diante, é preciso sempre
retomar esta formação/articulação inerente entre Política e Direito
– pois é disso que se trata, em essência, desde o início do texto. O
que ainda nos leva a pensar que o declamado governo das leis nada
mais é do que um governo de políticos que cria(ra)m leis para si, para
os outros e para o governo.
É
coisa comum entre os juristas dizer que se prefere o governo das leis ao
governo dos homens, pois as leis tendem a ser mais estáveis e menos fruto
do capricho, como ocorre com os homens que cuidam da política diária. De
certo modo, concordo com a análise, pois é melhor uma lei ruim do que o
melhor dos soberanos – afinal, a lei pode ser (normalmente é) fruto de
um capricho (pessoal, partidário, mas limitado em alcance), ao passo que
os soberanos vivem extensivamente criando esses caprichos.
De
modo derivado, pode-se dizer que, no governo dos homens, nas lacunas ou
indecisões do corpo jurídico, os juízes decidem como homens da política
e com seus valores e preconceitos. Mas isso ocorre somente quando há espaços
abertos na lei, ou será capaz de revelar certo caráter desses juízes?
Diria
que não às duas perguntas, porque penso que se trata de uma constante,
dada a própria “natureza humana” e a proximidade que há entre
Direito e Política. De maneira decorrente, ainda se pode dizer que, mesmo
sendo “homens de bem”, os juízes são incapazes de bloquear a
transmissão e transferência de seus próprios erros, preconceitos,
falhas, deficiências para suas práticas jurídicas.
Ainda
diria que isso tudo é “humano demais” e que essa “incompletude
humana” (somos seres imperfeitos) torna suas ações e decisões
menos objetivas, menos imparciais, menos controladas, menos impessoais.
Pois é o que todos nós somos: seres incompletos e políticos - a Política,
aliás, poderia ser uma forma de dirimir o alcance e a extensão dos danos
causados pelo erro involuntário.
Porém, essa situação seria possível apenas se a Política fosse
servida pelo diálogo e sem que “os fins justificassem os meios”.
Em
essência, esta estreita relação entre um suposto “universo jurídico”
e outro “universo não-jurídico” ou é estreita demais ou nem existe.
O suposto universo jurídico é exatamente o que se chama de jurisdicização
da Política, positivação dos conflitos políticos ou simplesmente
quer dizer que a lei é o resultado direto da atividade parlamentar. Sem dúvida,
constitui-se numa grande conquista da humanidade porque a própria violência
(inata à política) seria sublimada, minimizada ou então generalizada
pela lei (“O Estado possui o monopólio do uso legítimo da força física,
da violência”, diria Max Weber).
De
outro modo, o universo não-jurídico, tanto a Política quanto a Moral,
tanto os costumes quanto a Filosofia, são a fonte principal e primária
do Direito, sobretudo se o analista parte da lei ou da Constituição. Com
tal positivação de interesses pessoais ou partidários, a lei revela-se
como produto de um Poder Legislativo em que seus agentes são antes de
tudo políticos (preocupados com a reeleição). Somente de forma derivada
é que o legislador se entende como “produtor jurídico”, e tanto é
assim que se autodenominam de “políticos profissionais”. Ao pensarmos
na Constituição Federal, então, a questão se mostra ainda mais clara,
pois a Constituição traça o perfil do Estado, da política e da força
aplicada às duas.
O
Estado de Direito, portanto, é antes de tudo um “estado da Política”
e independentemente das leis, dos legisladores ou dos juízes terem boa ou
péssima índole. O Estado de Direito reflete apenas o “lado mais forte,
o lado que venceu”, as causas ou teses com maior poder de convencimento
(moral ou imoral), o grupo, a classe ou o partido com mais dinheiro para
fazer política (ou para fazer a sua política se tornar verdade). Por
isso, o Estado de Direito acolhe uma verdade, que é a verdade do poder.
No
mais, a justiça é uma conseqüência, um resultado derivado, uma condição
secundária que se tornou transparente, que não naufragou completamente.
E é bem verdade que essa não é uma questão imperiosa nem à Política
e nem ao Estado de Direito porque, originariamente, nem um nem outro têm
a justiça como fator fundamental. A Política nunca foi, entre os clássicos,
definida como “caminho da verdade, da sabedoria ou da luz” – esta é
apenas uma idéia religiosa e chinesa, correspondente ao taoísmo e ao
budismo. E nem a confecção do “conceito” do Estado de Direito (no século
XIX, com Robert v. Mohl) trazia essa característica como elemento de
formação.
4.
Política e Direito
Ao
contrário do que possam parecer, essas alegações não nos desviariam do
nosso curso e que deve ser a busca da verdade e da justiça, pois
reconhecer as implicações da análise realista sobre a realidade é
exatamente ajustar o curso da nave. E também por isso seria imprescindível
reinventarmos hoje ao menos a vontade, o espírito que orientou este Estado
de Direito Constituinte Originário. Pois, o único remédio jurídico
que pode conter, revirar ou ajustar o poder político corresponde às
medidas que provenham da ou na direção da soberania
popular, da vontade (aí sim) da maioria. É quase como reinventar o pacto
ou contrato constitucional que deu origem aos direitos e às garantias políticas
que temos em vigor hoje (como o de controlar os poderes). É como
reinventar, revitalizar a política para revigorar a lei hoje combalida,
quase inerte, prestes a espirar.
No
artigo, vimos que há uma crescente politização do Estado de Direito –
ao menos desde que os direitos políticos foram recepcionados pelo
ordenamento jurídico, especialmente no âmbito constitucional. Mas hoje,
com a crescente judicialização da política (decorrente da jurisdicização),
é como se o Estado de Direito estivesse privilegiando o direito político,
assim como sua matriz teórica (no século XIX) privilegiava sobremaneira
os direitos individuais – e mais sensivelmente o direito à propriedade
privada.
O
Estado de Direito, portanto, não pode ser tomado como um valor
universal, dotado de um significado que lhe bastasse em si mesmo.
Pois, em sentido contrário, o conceito jurídico necessita de
complementos valorativos, adjetivos expressivos e, no caso do artigo,
tomamos a política (Estado de Direito Político) como realidade e
não só como apelido que lhe empresta algum pequeno sentido
adicional.
Também
vimos que, com o processo de judicialização, a política adquiriu novas
regras e nova lógica – observando-se nesta fase que a política
desembarcou nos meandros e faz uso dos meios e dos mecanismos do mundo jurídico
estrito senso. Isto porque a política passou a fazer parte desse
mundo jurídico, outros diriam que colonizando o Direito. Na verdade, “a
Política fez-se Direito”, a Política entranhou-se no Direito e
engravidou-o de intenções, vocações, interesses e negócios nem sempre
racionais, controlados, objetivos ou imparciais. Essa atividade migratória
da política levou o Direito a relacionar sentidos controversos, como:
indefinição, incerteza, idiossincrasias. Como sintetiza Calmon de
Passos: “seria ingenuidade ou desinformação negar a crescente politização
do jurídico e juridicização do político, fruto de um peculiar estado
de coisas maximizado no segundo pós-guerra” (2000, p. 91).
E
isso se dá dessa forma porque Direito é Poder, como binômios que
são equivalentes, pontas alternadas da mesma inclinação social e política
predominante em dado período histórico. De modo simples, Direito é
Poder porque sempre se trata de uma decisão ou interferência no curso
regular das coisas – o Direito é o poder de interferir. Como diz Calmon
de Passos (2000):
O
Direito, enquanto apenas enunciado, norma geral, juízo é
de todo impotente e sua realização só se dá em termos de decisão no
caso concreto, que reclama para sua fidelidade ao previamente enunciado,
adequada integração entre enunciação/organização/processo/procedimento,
com submissão dos envolvidos, no seu operar, aos postulados básicos do
Estado de Direito Democrático (...) Nenhum de nós tem dúvida de que o
Direito é indissociável do poder. Direito é decisão, mas decisão que
necessariamente deve revestir-se de impositividade. Apto para dizer
o Direito é o poder institucionalizado. Este dizer o Direito pelo
poder político é algo, portanto, que integra o próprio “ser” do
Direito (...) O perfil da organização política deixa de ser algo
indiferente ou estranho ao ser do Direito, passando a integrá-lo e
afeiçoá-lo (p. 80).
Um
fenômeno que também nos permite perceber e analisar como esse efeito dúbio
transparece no estudo do Direito. Afinal, o Direito é parte integrante e
fundamental do processo civilizatório ou é mero mecanismo de dominação
de classe?
Pois
bem, do que já vimos, é possível perceber que, tal qual a Política, o
Direito oscila como pêndulo diante dos valores: virtú ou fortú?
Diante dos casos concretos, vendo de perto ou de longe, é assim que
entenderemos melhor porque Direito é sinônimo de poder.
5.
Visibilidade do Tema – a própria história do artigo
O
artigo nasceu da minha necessidade de participar de um seminário de
pesquisa,
em que se tinha como objeto de pesquisa o tema do “controle externo do
Judiciário, como fator preponderante de exercício do controle
interno”: o que, em tese, evitaria ou pelo menos inibiria os arroubos do
poder (demonstrado pelos piores juízes). Em outro contexto,
caracterizava-se esse processo de apequenamento do servidor público de síndrome
do pequeno poder (se bem que o juiz não tem um pequeno poder).
Depois
da leitura do trabalho, e antes da sua apresentação, fiquei
impressionado pelo tema e pus-me a (re)ler alguns textos e
anotar/descrever minhas posições e interpretações. Ao final de dois
dias, mas antes ainda da apresentação, havia produzido a base estrutural
do artigo – esse esforço valeu como suporte de minhas próprias argüições
no seminário, na posição de orientador. No sumário final dos capítulos,
que deverão ser produzidos, chegamos à seguinte visualização dessa politização
do Poder Judiciário:
1º
Capítulo: resgata a
tese clássica de que a divisão do poder é o melhor meio de controle do
poder. Subdivido, ficaria assim: 1. Locke e o Poder Judiciário como apêndice
do Legislativo; 2. Montesquieu e a divisão dos poderes; 3. O
Federalista e o embrião da Federação; 4. O sistema de freios e
contrapesos.
2º
Capítulo:
Analisando-se a história e a estrutura do Judiciário no Brasil, chega-se
à conclusão da necessidade de haver controle externo. Basicamente,
corresponderia a: 1. História do Poder Judiciário no Brasil; 2.
Estrutura do Poder Judiciário no Brasil; 3. Controle externo do Poder
Judiciário; 4. Controle interno do Poder Judiciário.
3º
Capítulo: A falta de
qualquer controle sobre o poder, neste caso, do Poder Judiciário, pode
resultar em delírio e corrupção. Pronto, ficaria assim: 1. Os arroubos
do poder; 2. As demonstrações de poder dos juízes; 3. Casos concretos
que caricaturam essa ausência total de controle do abuso de poder.
A
idéia geral a prevalecer e a nortear a conclusão da dissertação de
mestrado, ao que me parece, segue a mesma linha da notável visão de que
“se o poder corrompe, o poder absoluto (sem controle externo e interno),
corrompe absolutamente”. O que ainda demonstra que hoje é imprescindível
que haja abertura, transparência e correição de todo e qualquer ato
administrativo, especialmente os provindos do Judiciário – uma vez que
ainda é entendido como defensor do povo. Por fim, é
evidente que esta estrutura dos capítulos não teria sido construída sem
a formação da banca e sem a presença e a participação sempre
brilhante dos professores: Oswaldo Giacoia Jr. e Ednilson Donisete
Machado. Todo e qualquer mérito, portanto, tem que ser compartilhado.
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