O Conto Hispano-americano: relação entre história e literatura em El
Matadero
Rodolfo Fiorucci
Resumo
O presente artigo
pretende mostrar a importância das obras de
arte
em seu contexto histórico, mais especificamente a literatura,
utilizando como amostra o considerado primeiro conto da América
espanhola, El Matadero, escrito por Esteban Echeverría no
período da ditadura de Juan Manuel Rosas; também apontando
a literatura
como importante instrumento de
luta em posse das classes
sociais.
Palavras-chaves: literatura, história,
Rosas, Argentina.
The hispano-american story: relationship between history and
literature in El Matadero.
Abstract
The present article intends to show the importance of the works of
arts in its historical context, more specifically the literature,
using as considered sample the first story of Spanish America, El
Matadero, written by Esteban Echeverría in the period of the
ditactorship of Juan Manuel Rosas; also showing that art type as
important fight instrument in ownership of the social classes.
Key words:
literature, history, Rosas, Argentina |
A vida imita a arte ou a arte imita a vida?
Essa clássica questão já dividiu várias opiniões e, certamente, continuará
dividindo. Porém o que nos parece correto é que ambas se inter-relacionam,
levando-nos a uma resposta dicotômica, ou seja, tanto a arte influencia a
vida como o inverso.
De certa forma, tal problemática
manifesta-se
no primeiro
conto escrito na América, El Matadero, publicado postumamente em 1871
por Juan Maria Gutiérrez na revista Del Rio de la Plata de Buenos Aires,
cujo autor era o argentino Esteban Echeverría. Apesar da obscuridade da data
de sua composição,
supõe-se que foi
escrito em Montevidéu, Uruguai, cerca de uma década antes do “Facundo”, de
Sarmiento.
No entanto esta dificuldade em
relação à data é observada logo no início do conto onde o autor escreve
“Diré solamente que los sucesos de mi narración, pasaban por los años de
Cristo de 183...” (1972, p. 294). Contudo, é possível rastrearmos o momento
de sua produção, conforme nos asseveram as palavras de Menton “... la
mayoría de los críticos están de acuerdo sobre su fecha de composición:
1838”.(1991, p.13). Desse modo, devido a sua tardia publicação, seu valor
histórico-literário foi melhor apreciado, graças, sem dúvida,
à distância do contexto histórico
que, inevitavelmente, limitava o olhar dos leitores em potencial.
No conto, podemos observar a inter-relação
existente entre literatura e história através da configuração histórica da
pós-independência do Novo Mundo, cujos países recém libertos buscavam se
firmar como nações autônomas e consistentes. Assim sendo, surge nesse
ínterim um novo movimento literário que a partir da década de 1830 começa a
tomar força na Hispano-América, o
romantismo, imitação
da corrente européia, que visava já não apenas à independência
hispano-americana em relação aos espanhóis, mas principalmente, uma
autonomia dos Estados e fronteiras nacionais, assim como a instauração de
uma identidade cultural, ou seja, “... una literatura ya no
hispanoamericana, sino nacional.” (Op.cit., p.7), de onde nasce o conto
El Matadero. Assim sendo, tal obra acaba por caracterizar a literatura
regionalista que começou a se desenvolver na América de língua espanhola,
embora com os olhos voltados para a ilustração européia, como observa Bella
Josef: “... sua estética era nacionalista, mas tinha atitude aberta diante
do mundo e a inquietação pelo futuro do país integrava-se ao interesse pelo
forâneo” (1971, p.65).
Diante das considerações expostas, o presente
trabalho objetiva aproximar o conto de Echeverría à configuração histórica
da Argentina a partir da década de 1830, mais precisamente ao contexto da
ditadura de Juan Manuel Rosas e, assim, observar como a história concorreu
para a formação de uma linha literária diferente da vigente, com um conteúdo
social e político mais ativo e, a partir daí, como essa nova literatura
provocou mudanças na história da época em questão.
No entanto, julgamos importante apresentar uma
breve biografia de Echeverría, para que assim possamos relacioná-lo aos
acontecimentos contemporâneos a Rosas, já que Echeverría foi o guia e mestre
da Nueva Generación, cargo outorgado pelos próprios integrantes desse
grupo de intelectuais, mais tarde conhecidos como Geração de 37. De fato, o
autor foi um dos líderes da oposição ferrenha à ditadura de Rosas no final
da década de 1830, a chamada Revolução Liberal.
O autor e o contexto histórico-literário
Nasceu em Buenos Aires, no ano de 1805, filho de
pai biscaínho e mãe portenha. Figura mais importante do romantismo
hispano-americano, freqüentou o Colégio de
Ciências Morais, cujo curso foi
forçado a interromper para empregar-se como despachante aduaneiro.
Subitamente, antes de completar vinte e um anos, partiu para Paris em busca
de ambiente intelectual intenso, e ali
permaneceu até 1830. Estudou matemática, física, filosofia e
sociologia, mas encantou-se realmente pelo romantismo, quando começou a ler
os grandes poetas ingleses, franceses e alemães da época, o que lhe
despertou a vontade de escrever versos.
Volta a Buenos Aires em 1830 para juntar-se aos
jovens de sua geração e, em 1837, chega à celebridade com a edição do volume
das Rimas, onde figurava o poema La cautiva. Em 1838 colabora
para a fundação da Asociación de Mayo, que difundiu o liberalismo, a
ilustração e o romantismo (conseqüência de sua estada na Europa) pela
Argentina e por outras partes da Hispano-América.
Essa Asociación tinha um objetivo suprapartidário, ou seja, “... um
programa nacional acima dos partidos e ligado à tradição de 1810...”
(BANDEIRA, 1960, p.92), posição esta, aliás, que não foi cumprida à risca,
como veremos mais tarde. Posteriormente escreveu EL dogma socialista
(título que se deve entender como “credo social”), publicado em 1846, que
tinha como conteúdo a declaração dos princípios que constituíam a República
da Argentina.
Em 1840, depois de fracassado um movimento
revolucionário contra Rosas, se vê obrigado a fugir, partindo para
Montevidéu, “... capital do Uruguai, tornada o baluarte de resistência
contra Rosas...” (Op.cit., p.92) onde morreu onze anos depois, não chegando
a ter o prazer de ver sua pátria redimida de acordo com seus ideais, pois
faleceu quando começava a ofensiva de Urquiza contra Rosas.
El Matadero na história e a história
em El Matadero
Uma das principais questões que norteiam este
trabalho, conforme anunciamos anteriormente, diz respeito à aproximação
entre a obra e o contexto na qual a mesma se insere, preocupação que nos
leva à própria resposta histórica ao conto. Neste ponto, poderíamos nos
questionar sobre o caráter recíproco de ambos, afinal, El Matadero
foi publicado postumamente, não chegando a circular entre
o público
da época, não gerando, portanto, uma resposta (ou ação) positiva ou negativa
em seu momento histórico.
Não obstante, poderíamos nos perguntar: esse
questionamento está correto? Parece-nos que não, pois apesar de não
publicado de imediato, as idéias contidas no texto são as correntes entre os
intelectuais da oposição a
Rosas, e este conto, recordemos, é obra do líder dessa geração de
opositores. Assim, mesmo que não tenha sido lido contemporaneamente à sua
composição, as idéias intrínsecas ao texto remetem-nos àquele momento, e,
mais tarde, como já dito nesse trabalho, seus valores foram muito bem
apreciados, de tal forma que chega a ser considerado uma das principais
obras argentinas, tal é o esmero de seu acabamento textual, bem como seu
vigor e audácia, elementos que chegam “...ao ponto de iniciar o realismo...”
(JOSEF, 1971, p.66), isto é, antecipando as características do ulterior
movimento estético-filosófico. Deste modo, esta obra de tamanho valor
cultural, social e político, entra para história para ser lida e apreciada,
tendo o objetivo de nos mostrar os erros do passado, para que sejam
interpretados e não repetidos.
Toda a audácia e
vigor encontrados neste conto hispano-americano, apesar de inserido no
romantismo (tanto nas idéias quanto na estrutura discursiva), possuem forte
teor realista. Isto se explica pela necessidade do autor de explanar
e denunciar o séqüito que apoiava o governo
despótico de Rosas. Daí sua intenção
claramente político/reformista. É
diferente de tudo o que se havia escrito até então pela necessidade de se
criar um clima, uma atmosfera (pathos) pintoresca/grotesca, usando,
portanto, uma linguagem que plasmasse tal realidade, assim como as abjeções
das cenas que são próprias do naturalismo: deste modo, o autor, “avant la
lettre”, não só cria o modelo do conto, mas inicia uma nova linguagem.
Anderson Imbert ao comentar alguns trechos, que veremos adiante, do conto,
nos mostra todos esses elementos mencionados acima:
“de repente algunas figuras
cobran vida y el cuadro se convierte en un cuento. Entonces, a pesar de las
inmundicias de la descripción [realismo/naturalismo] se hacen visibles los
esquemas románticos: el contraste entre la nota horrorosa del niño degollado
y la nota humorística del inglés revolcado en el fango; (...) un aura de
desgracia, fatalidad, muerte; embellecer literariamente la fealdad de la
chusma al compararla con fealdades fabulosas” (1995, p.242-43)
O conto El Matadero é uma das
grandes metáforas argentinas, “... narra
um episodio sangrento da ‘mazorca’
de Rosas no ambiente do matadouro de Buenos Aires...” (BANDEIRA, 1960,
p.94). Essa metáfora, no entanto, não pode ser considerada apenas por esse
episódio, isto porque é possível identificar várias referências no texto
sobre o desenrolar histórico no governo rosista. Caracterizado pelo uso
constante de ironia, o texto de Echeverría permite-nos perceber constantes
menções à história, aliás, desde o seu início percebemos a relação do texto
com seu contexto, como por exemplo:
“A pesar de que la mía es
historia, no la empezaré por el arca de Noé y la genealogía de sus
ascendientes como acostumbraban hacerlo los antiguos historiadores españoles
de América que deben ser nuestros prototipos”(ECHEVERRÍA, 1972, p. 294).
Neste trecho podemos perceber como se encaixa a
narração ao momento que vinha passando a sociedade e a literatura na
Argentina. Quando Echeverría se refere ao seu conto como história, encontramos
um caráter de fundo ambíguo, afinal ele narra atos de violência reais que
vinham sendo praticados pela “mazorca” de
Rosas, mas dentro de uma metáfora, ou seja, encontramos um caráter social e
ficcional. Este caráter é característica da literatura romântica que estava
em ascensão na Hispano-América, que
era favorecida
pela grande e histórica instabilidade
política americana, que se intensificou ulteriormente à independência, haja
vista que não tínhamos ainda naquele momento Estados nacionais concretamente
estabelecidos.
O próprio autor diz que esse trabalho será feito
de modo diferente dos antigos (caracterizando outra forma literária), como
vimos no trecho já citado do conto e, podemos assim confirmar que se tratava
de tal movimento romântico. Na própria
seqüência do conto que diz “Diré solamente que los sucesos de mi narración
pasaban por los años de Cristo de 183...” (ECHEVERRÍA, 1972, p. 294),
concluímos que se trata da década do crescente movimento romântico de fundo
oposicionista.
A partir daqui, saindo por um momento do
ambiente cultural da discussão, claro que relativamente, já que o estudo
trata de um texto literário, vamos procurar analisar a obra tentando
encaixá-la cronologicamente aos fatos que vinham ocorrendo na época, por
isso, às vezes será necessário recortar o conto para que assim ele se torne
inteligível à medida que passemos a relatar a história.
No entanto, importa aqui fazer uma breve
exposição do andamento histórico anterior ao início do conto de Echeverría,
para que não analisemos apenas o recorte temporal
ao qual se prendeu o autor,
facilitando assim o entendimento de como a história argentina chegou
naquele
momento a deparar-se com a dura ditadura de Juan Manuel Rosas.
Da Independência a Rosas
Após a independência da Argentina, processo
iniciado desde a revolução de maio de 1810 e formalizado em 9 de julho de
1816 com veemente participação militar de San
Martín, começou na Argentina uma guerra civil que duraria anos a fio,
entre federalistas e unitários. Esta disputa é a base da nossa discussão em
El Matadero, pois esse é o contexto em
que está inserida a obra.
Os federalistas (entre eles Rosas), eram
fazendeiros conservadores que obtinham poder regional com apoio popular e
queriam uma autonomia provinciana. Os unitários eram a parte burguesa
de Buenos Aires que tinha seus interesses
no comércio exterior e buscava um
governo centrado na cidade, onde estava o porto,
defendendo o capital europeu, a vinda de imigrantes e as idéias ilustradas
européias. Apesar de parecer que o foco da guerra realmente estava entre
essas duas camadas, vamos perceber na evolução histórica dos fatos, que a
principal disputa sempre esteve entre a província de Buenos Aires e as
outras regiões argentinas (interior e litoral). Isto se prova quando Rosas
(federalista) chega ao poder e não consegue impedir que continuem
do mesmo modo os desentendimentos entre essas regiões que sempre buscavam se
sobrepor umas às outras.
Essa disputa acaba desembocando na primeira
carta constitucional sancionada em 1819, que continha todos os elementos
para acomodar um regime monárquico, regime este que se encaixava aos ideais
unitários. Porém essa ação não foi muito longe, pois os caudilhos do
litoral, em 1 de fevereiro de 1820, derrubaram o governo, e assim se deu
início a um longo período de domínio das províncias.
Após esse domínio dos caudilhos, cria-se em 1826
o cargo de presidente, ocupado por Rivadavia. Foi um breve período que durou
até 1827, isto porque os caudilhos das
províncias não se entendiam,
causando certa instabilidade política. Neste momento a força de Buenos Aires
se faz sentir, e em 1928 a Junta de Representantes dessa província elege
como governador Manuel Dorrego. Este defendia a guerra com o Brasil (tinha
como motivo a disputa pela Banda Oriental – atual Uruguai) e era muito
criticado pelos unitários por causa disso, levando esses burgueses a dar um
golpe que derrubou o governo no final de 1828.
Rosas aparece nesse instante, e,
muito arguto, vê que poderia aproveitar em seu benefício o apoio
popular que Dorrego havia conquistado, como mostra Túlio Halperin Donghi:
“Pero vio también en la
movilización popular, convenientemente encauzada, un antídoto contra esos
peligros, y esto por dos razones. En primer lugar, porque el dirigente que
lograse orientar en su provecho esa movilización tendría tal ventaja sobre
sus posibles rivales o aliados que su predominio se afirmaría sin dar lugar
a conflictos demasiado intensos: sencillamente, no habría fuerza suficiente
para oponérsele eficazmente. En segundo término, si ese dirigente estaba
dispuesto a restaurar el orden amenazado, su séquito popular podría ser
utilizado para ello…” (1972, p. 303)
Utilizando-se desses pensamentos, Rosas
impulsiona
novas eleições, que são fraudadas num primeiro momento pelos
unitários, mas logo depois refeitas, e agora com a perda de legitimidade dos
adversários (devido
à fraude), Rosas vence e assume o governo
da província de Buenos Aires.
No primeiro governo de Rosas, a política parece
estar voltada para servir à
indústria pecuária de Buenos Aires, no entanto,
o comportamento dos caudilhos
tornava-se mais narcisista do que parecia, isto porque caudilhos como
Quiroga e Rosas “... no defendían el sistema federalista sino sua estancias
y sus vacas”.Ambas as
motivações, o federalismo e o personalismo,
estavam presentes, e o que importa salientar é que Rosas atendia às
reivindicações apenas de uma das classes em pugna, o que geraria todo o
problema do governo de Rosas, que mais tarde seria tratado em El
Matadero.
História e metáfora em El Matadero
Neste momento começaremos a tratar do período em
que se encaixa o conto de Echeverría, já que depois do primeiro governo de
Rosas há uma nova querela pelo cargo de chefia de Buenos Aires que seria
disputado entre Rosas de um lado e Balcarce e o ministro Martínez de outro.
Esse período em que Rosas ficou afastado do governo se deu entre 1832 e 1835
e, a partir daí, começamos a fazer menção de
El Matadero, isto porque Echeverría menciona este período de
disputas eleitorais no seguinte trecho:
“’Viva la Federación’, ‘Viva el
Restaurador y la heroica doña Encarnación Ezcurra’, ‘Mueran los salvajes
unitarios’… Pero algunos lectores no sabrán que la tal heroína es la difunta
esposa del Restaurador, patrona muy querida de los carniceros, quienes, ya
muerta, la veneraban por sus virtudes cristianas y su federal heroísmo en la
revolución contra Balcarce” (1972, p. 297).
Podemos perceber que este
recorte do texto está
relacionado às
disputas eleitorais que ocorreram durante
o período de afastamento de Rosas, e nesse ínterim “Gracias a
Ercarnación Ezcurra el rosismo podrá contar... no sólo con el apoyo de las
clases propietarias… sino también con la adhesión más activa de la plebe
federal…” (DONGHI, 1972, p.320), isto porque essa mulher (esposa de
Rosas) teve
grande atuação política nesse
momento. Contudo, foi eleito pela Legislatura o general Viamonte, que
renuncia em 1834. Com a mesma rapidez assume e abandona o governo o
presidente da Legislatura, o doutor Maza.
Ambos não se mantiveram no cargo devido ao apoio popular que Rosas possuía,
o que gerou grande pressão sobre esses governos através da Sociedade
Popular, organização rosista que vigiava os atos governamentais de perto e
que acusava o antigo governador de não atender às reivindicações rosistas.
A situação já estava difícil para o novo
governador (Maza), e piora quando em 1835 Facundo Quiroga é assassinado
fazendo com que as crises no interior se acentuem. Diante dos fatos, a
Legislatura não vê outra saída, e concede a Rosas todo poder que ele sempre
desejou, lhe dando além do direito às faculdades extraordinárias, que
consistia em não limitar suas atribuições, faculdades
legislativas e judiciárias. Neste momento
começa o período conhecido como a ditadura de Rosas, sendo que este agora
poderia intervir como quisesse no equilíbrio político de várias províncias.
Rosas faz um governo
voltado aos interesses da pecuária e da indústria de charque de Buenos Aires
(interesse pessoal e de classe), fazendo com que haja algumas divergências
com caudilhos de outras províncias por ficarem de fora do núcleo que se
beneficia com a política econômica, e também com os unitários, que queriam
um estímulo ao comércio e às relações internacionais que não se limitassem à
exportação de charque.
Neste momento o governo enfrenta um outro problema, agora de ordem
natural, as secas, que se espalham pelo país entre 1835-36, seguidas de
inundações, fato que seria lembrado por
Echeverría em vários trechos do conto e delas poderíamos tirar
inúmeras considerações:
“Estábamos, a más, em cuaresma, época
en que escasea la carne em Buenos
Aires, porque la Iglesia... ordena vigilia
y abstinencia a los estómagos
fieles a causa de que la carne es pecaminosa...” (1972, p. 294).
Pode-se reparar que esse trocadilho do autor, a
‘cuaresma’, se remete ao período de secas da Argentina, cujo estoque de
carne caiu, fazendo com que os peões e a pequena propriedade empobrecessem.
Este empobrecimento se deve à política econômica adotada por Rosas que como
já dito se interessava apenas por bons resultados econômicos da província.
No entanto, como na boa justificativa religiosa do texto (a ‘cuaresma’), o
governador também possuía as suas, pois tinha apoio popular e promovia um
governo populista, alegando que aquela economia seria a ideal para a
província, e que a ação dos federalistas estava correta, como veremos neste
trecho:
“Los abastecedores, por otra
parte, buenos federales, y por lo mismo buenos católicos, sabiendo que el
pueblo de Buenos Aires atesora una docilidad singular para someterse a toda
especie de mandamiento, sólo traen en días cuaresmales al matadero los
novillos necesarios para el sustento de los niños y los enfermos…” (Op.cit.,
1972, p.295).
Assim sendo, logo depois Echeverría coloca os
motivos alegados pelos federais sobre a crise e as inundações que levaram à
Argentina dias preocupantes:
“...algunos herejotes, que no
faltan, dispuestos siempre a violar los mandamientos carnificinos de la
Igesia, y a contaminar la sociedad con el mal ejemplo.
Sucedió, pues, en aquel tiempo,
una lluvia muy copiosa. Los caminos se anegaron; los pantanos se pusieron a
nado y las calles de entrada y salida a
la ciudad rebosaban en acuoso barro.”(Idem, p. 294).
“…¡Ay de
vosotros, pecadores! ¡Ay de vosotros unitarios impíos que os mofáis de la
Iglesia, de los santos, y no escucháis con veneración la palabra de los
ungidos del Señor!”(Idem, p. 295).
Fica claro que o autor faz referência às
criticas dos unitários em relação à política de Rosas. Afinal, não gostavam
da proteção dada à carne para exportação e reivindicavam apoio ao comércio
burguês. Assim os federais jogavam a culpa da crise econômica aos unitários
que não davam apoio ao governo, fazendo com que o encaminhamento da economia
esbarrasse em oposições (no texto usa as inundações como se fossem castigos
pelas heresias dos infiéis) e não se desenvolvesse. Deste modo, veio o
castigo por culpa das ações dos unitários, que foram acusados pelo povo e
governo no que diz respeito aos problemas da província, e isto por não
obedecer nem venerar ao ‘Señor’ (Rosas).
Daí por diante, como conseqüência da oposição ao
governo rosista, surge com força a “mazorca”, a
fim de conter as críticas ao governo.
“Ese terror, que aparece y se afirma en la segunda parte de
la década del
30…” (DONGHI, 1972, p.307) será mostrado por Echeverría em
dois trechos:
“... pero lo más notable que
sucedió fue el fallecimiento casi repentino de unos cuantos gringos
herejes que cometieron el desacato de
darse un hartazgo de chorizos de Extremadura, jamón y bacalao, y se fueron
al otro mundo a pagar el pecado cometido por tan abominable
promiscuación.”(1972, p.296)
“…atribuyéndolos a los mismos
salvajes
unitarios, cuyas impiedades, según los predicadores federales, habían
traído
sobre el país la inundación de la cólera divina; tomó activas providencias,
desparramó a sus esbirros por la población…” (Ibidem, p.296)
Notamos ironia de Echeverría no primeiro trecho
ao dizer ‘casi repentino’, como se não houvesse uma força direta atuando
nestas mortes, ou seja, as ordens de Rosas para que punissem os opositores
de seus mandamentos. Já no segundo trecho, fala de maneira direta ao
mencionar os capangas do governo, ou seja, a
“mazorca” (esbirros), que já estavam em franca atividade de
repressão.
Dessa repressão citada no conto, passamos para a
comparação que o autor faz da Argentina a um matadouro, pois foi nisso que
se transformou esse país a partir das ações autoritárias ordenadas por
Rosas:
“En la casilla se hace la
recaudación del impuesto de corrales, se cobran las multas por violación de
reglamentos y se sienta el juez del matadero, personaje importante, caudillo
de los carniceros y que ejerce la suma del poder en aquella
pequeña república, por delegación del
Restaurador”(Idem, p.297).
Vê-se deste modo a clara comparação
com a
Argentina ao dar ao matadouro um cargo de chefia política interna, comandada
por um caudilho, ou melhor, um ‘Restaurador’, deixando
clara a
referência que faz a Rosas dentro da sua Buenos Aires, neste caso, o
matadouro.
As cenas de horror então começam a ser narradas
por Echeverría como a metafórica matança
realizada pelos carniceiros (“mazorca”). Esta ação é descrita
na subseqüente passagem do conto:
“Pero a medida que
adelantaba, la perspectiva variaba; los grupos se deshacían, venían a
formarse tomando diversas actitudes y se desparramaban corriendo… Esto era
que... el carnicero en un grupo
descuartizaba a golpe de hacha, colgaba
en otros los cuartos en los ganchos de su
carreta, despellejaba en éste… lo que originaba gritos y explosión de cólera
del carnicero…” (Idem, p.298).
Antes de chegar ao ponto alto do conto,
Echeverría sutilmente faz menção ainda a outra querela que passava o governo
de Rosas. Era o enfrentamento com a
Inglaterra e a França no que diz respeito a problemas políticos. Rosas
queria limitar a influência econômica desses países em seu território, o que
lhe valeu um bloqueio portuário em Buenos Aires. Echeverría, para descrever
esse problema usa uma perseguição que estava sendo feita a uma rês, que na
fuga derruba um inglês que estava a cavalo, terminando
essa passagem
da seguinte maneira:
“Este accidente, sin embargo, no
detuvo ni frenó la carrera de los perseguidores del toro, antes al
contrario, soltando carcajadas sarcásticas: ‘Se amoló el gringo; levántate
gringo’ – exclamaron, cruzando el pantano, y amasando con barro bajo las
patas de sus caballos su miserable cuerpo.”(Idem, p.300-301).
Percebemos portanto, em que nível estava o
relacionamento das nações estrangeiras (principalmente Inglaterra) com o
governo argentino, posto que os ‘carniceros’ chegaram a atropelar o gringo
com os cavalos, tratando a situação pandegamente.
A partir de agora passaremos a tratar, ao meu
ver, a parte genial do conto de Echeverría, na qual o autor fará a
comparação direta do matadouro com a República Argentina. Como se relatasse
dois fatos que não estão ligados entre si, Echeverría primeiro narra a
perseguição a um touro feita pelos carniceiros até que o
capturam, e a partir daí
começam a
maltratá-lo, levando-o a morte. Logo depois, fala do encontro desses
carniceiros com um unitário, e narra praticamente do mesmo modo que no trato
ao touro a continuação desse embate.
O interessante disto, é
que, da
mesma maneira que o touro resiste à captura, o unitário também o faz, até
que lhe falte forças, ocasionando seu falecimento. Essa relação do touro com
o unitário já estava presente
no texto quando alguém faz um comentário
a respeito do comportamento do
animal: “– Es emperrado y arisco como un
unitario” (Idem, p.300). Para que fique
mais claro esse espelho que foi a situação do animal e do homem, escolhi
dois trechos, já que ficaria muito cansativa a leitura caso reproduzisse
todo o relato:
“Enlazaron muy luego por las
astas al animal, que brincaba haciendo hincapié y lanzando roncos bramidos.
Echáronle uno, dos, tres piales; pero
infructuosos: al cuarto quedó prendido en
una pata: su brío y su furia redoblaron; su lengua, estirándose convulsiva,
arrojaba espuma, su nariz humo, sus ojos miradas encendidas.”(Idem, p.301).
“El joven, en efecto, estaba
fuera de sí de cólera. Todo su cuerpo parecía estar en convulsión. Su pálido
y amoratado rostro, su voz, su labio trémulo,,
mostraban el movimiento convulsivo de su corazón, la agitación de sus
nervios. Sus ojos de fuego parecían salirse de la órbita, su negro y lacio
cabello se levantaba erizado. Su cuello desnudo y la pechera de su camisa
dejaban entrever el latido violento de sus arterias y la respiración
anhelante de sus pulmones.”(Idem, p.303).
Percebemos nitidamente a parecença das
situações, e conseqüentemente, de como o autor, para fazer a sua crítica à
ditadura rosista, primeiro descreve o ambiente de uma matança num matadouro,
e em seguida o tratamento dado aos unitários naquele mesmo local, ou seja, a
Argentina de Rosas. Sendo assim, parece-me
clara a censura realizada por Echeverría, assim como clara também está a sua
comparação da Argentina a um lugar carniceiro e desumano.
Depois de narradas
essas perseguições e mortes, conseguimos perceber a tendência
positiva do conto em relação aos unitários e, assim sendo, podemos fazer
algumas considerações histórico-literárias importantes já que, como dito
acima, a Geração de 37 tinha uma ideologia suprapartidária. Valho-me aqui,
de que não obstante essa ideologia, percebemos nas entre linhas de El
Matadero uma defesa aberta aos unitários, como no trecho em que alguém
diz “ – Reventó de rabia el salvaje unitário
- dijo uno.”(Idem, p.304). O autor deixa
clara a idéia de que o unitário ‘Reventó’, porém não se entregou, mostrando
a valentia desse homem, assim como a do touro.
Esta idéia não é vista somente nas entre linhas,
posto que, no último parágrafo do conto,
Echeverría defende as qualidades unitárias abertamente e execra os
federalistas, franqueando a sua posição no que diz respeito a esse conflito
partidário, como notamos no seguinte trecho:
“Llamaban ellos salvaje
unitario, conforme a la jerga inventada por el Restaurador, patrón de la
cofradía, a todo el que no era degollador, carnicero, ni salvaje, ni ladrón;
a todo hombre decente y de corazón bien puesto, a todo patriota ilustrado
amigo de las luces y de la libertad...”(Ibidem, p.304).
E complementa essa
defesa dos ideais unitarios (ideais burgueses) e o próprio texto,
firmando seu objetivo ‘metafórico’, escrevendo: “... y por el suceso
anterior puede verse a las claras que el foco de la federación estaba
en el matadero.”(Ibidem, p.304)
Esta observada disfunção ideológica da geração
de 37 (neste caso de Echeverría), permite-nos entender que a visão desse
grupo de intelectuais acabou tomando apenas uma linha de pensamento, a dos
unitários, o que não nos surpreende, já que essa corrente romântica
hispanoamericana é reflexo da mesma corrente
na Europa, local das luzes e do ideal burguês de livre comércio,
valores estes defendidos pelos intelectuais da América espanhola.
Esta tendência unitarista, no entanto,
permite-nos notar algumas importantes mudanças no romantismo, como o caráter
político e oposicionista que tomou na
Hispano-América devido às situações
favoráveis para essa característica, tais como a necessidade da criação de
fronteiras, culturas e Estado Nacionais, autônomos no que se refere a sua
gerência, para que pudessem assim, propiciar paulatinamente as bases para a
instauração de uma sociedade burguesa. Também, foi um processo que a Europa
havia passado pouco tempo antes e, que, aliás, não estava terminado, como
nos casos da Alemanha e Itália que se unificariam apenas em 1871. Portanto,
esse movimento literário, contaminado com essas mencionadas necessidades, se
encheu de paixão na escrita, o que nos deixa notar nos textos, destacada
força emotiva em detrimento da razão.
Deste modo, esses
intelectuais adotaram uma visão linear da sociedade, baseada na contradição
entre civilização e barbárie. Este fato notar-se-á no conto, pois todo e
qualquer apoio a Rosas era criticado, inclusive o apoio popular, o
próprio povo chamado de ‘chusma’ (animais selvagens). Já os unitários, os ‘gallardos’,
ou seja, os elegantes e bem postos homens, eram fielmente protegidos por
essa corrente intelectual, como bem anota Jaime Alazraki ao dizer: “...
veían en los primeiros la encarnación de la barbárie, y
en los segundos a los representantes de
la civilización”.(1994, p.343).
Diante dessa visão linear nem um pouco flexível
em relação ao governo rosista, surge uma nova corrente de interpretações da
história da Argentina, os revisionistas, que teria uma visão contrária sobre
o governo de Rosas, não se fixando apenas aos ideais burgueses e unitários,
o que dividirá “... o país em duas correntes políticas, rosistas e
anti-rosistas. Parte importante da historiografia argentina trilhará essa
mesma senda, atribuindo ao caudilho qualidades extraordinárias ou os mais
detestáveis e bárbaros crimes.” (PRADO, 1987, p.38).
O grande problema é que esta nova historiografia
acabou por seguir o mesmo caminho que a anterior, só que voltada para outra
direção – a defesa de Rosas, quando indiscutivelmente, uma análise histórica
deveria possuir uma visão mais neutra e abrangente e, assim, conseguir
observar que esses dois partidos contrastantes da época tinham a mesma
mesquinha e histórica finalidade, conquistar todo o poder em suas mãos, mesmo que em certas ocasiões,
em momentos decisivos, ambas as classes tivessem que se convergir em
pensamento em detrimento das camadas inferiores. Esta característica
também é anotada por Jaime Alazraki:
“Las dos clases estuvieron
de acuerdo en que había que exterminar a los indios para desposeerlos de sus
tierras o convertirlos en carne de cañón y en que había que obligar al
gaucho a ser peón de estancia o soldado.”
(1994, p. 348).
Mais tarde,
até mesmo um dos membros da Geração de 37 fará a seguinte observação:
“Alberdi definía, así, las
dos formas que asumirá la dictadura en Hispanoamérica: el despotismo cerril,
bárbaro, de tradición hispana, que defendía el statu quo de la
colonia; y el despotismo ilustrado que se escudaba en la civilización y en
el proyecto liberal utópico. De las dos maneras la gran mayoría, el pueblo,
salía perdiendo.” (Op.cit., p. 349).
Vê-se, assim, que essa forma de literatura
romântica, importada da Europa, apresenta
diferenças em relação ao modelo, pois “Desde esas ópticas, todo aquello que
era parte del ser nacional (indios, gauchos, negros, montoneras,
tradición hispánica) era condenado y tachado de bárbaro” (Idem, p.356). E
neste ponto, El Matadero foi um conto de caráter duvidoso, assim como
o movimento romântico na América, posto que, de certa forma, buscou
legitimar as atitudes injustificáveis praticadas contra a ‘chusma’ ao mesmo
tempo em que foi usado como instrumento político em favor dos ideais
burgueses. Para corroborar essa deficiência no estilo romântico
hispano-americano de escrita, vejamos o filósofo
Slavoj Zizek ao falar numa de suas conferências sobre o conto El Matadero:
“Si alguna vez
existió una obra racista, totalmente despreciativa de la gente común, es
ésta. Por supuesto que oficialmente es una protesta contra la tiranía de
Rosas, pero en realidad el foco está puesto en la descripción de los
habitantes del matadero, con esos sucios y bárbaros hábitos, la cruenta
manera en que matan a los animales. La gran queja contra Rosas no es tanto
que fuera un tirano, sino cómo podía reunirse y codearse con lo más bajo de
la sociedad.
Porque, y ustedes lo sabrán mejor que yo, la gente de la
Mazorca era pobre, aunque bendecida” (Fonte:PÁGINA/12.2004).
Destarte, os mais recentes historiadores vêem
tentando analisar de maneira imparcial as ações desses partidos, para que
não caiam no erro de defender apenas uma linha partidária sem levar em conta
as suas debilidades. Sendo assim, nessa corrente de pensamento, pode-se ter
visão real e imune de parcialidade ao analisarmos a ditadura rosista, como
bem observa José Luis Bendicho Beired ao dizer que “... Rosas não foi um
bárbaro, mas antes um político engenhoso. De forma autoritária, soube
atender aos interesses do seu grupo social, os terratenentes, contando com
uma base popular de apoio”.(1996, p.38).
Deste modo, após a breve análise do conto El
Matadero e sua respectiva inserção na história, podemos concluir que
apesar de realmente ter sido muito duro e cruel o governo de Rosas, não
podemos analisar a história apenas por um caminho ideológico, sem antes
encaixá-la no seu contexto social, econômico e cultural, para que assim
possamos ter uma visão ampla dos acontecimentos e manifestações históricas,
analisando suas conseqüências e resultados diante de todas as camadas
sociais de uma mesma época.
Além disso, não podemos, como historiadores, nos
alinhar irresponsavelmente a uma determinada corrente política, renegando
nossas obrigações intelectuais e sociais perante a sociedade; ao contrário,
devemos extrair os conhecimentos e experiências gerados por essa etapa
‘matadouro’ da história da Argentina, para que assim possamos transmitir o
mais verossimilmente possível os processos e transformações históricas
ocorridos no período em questão.
_____________
BIBLIOGRAFIA
ALAZRAKI, Jaime.
Los Nuevos Modos de Expresión: la novela: El
caso de Argentina, In
PIZARRO, Ana. América
Latina: Palavra, Literatura e Cultura.
Vol. 2. Campinas: Ed.
Unicamp, 1994, p.339-357.
BANDEIRA, Manuel. Literatura
Hispano-Americana. Rio de Janeiro: Ed Fundo de Cultura S.A, 1960.
BEIRED, José Luis
Bendicho. Breve história da Argentina.
São Paulo: Ed. Ática, 1996.
DONGHI, Túlio Halperin.
Historia Argentina: de la revolución de independencia a la confederación
rosista. Buenos Aires: Ed. Paidos, 1972.
ECHEVERRÍA, Esteban.
El Matadero. In GÓMEZ-GIL, Orlando. Literatura Hispanoamericana.
New York: Holt Rinehart &
Winston, 1972, p. 294-304.
IMBERT, Anderson.
Historia de la
literatura hispanoamericana,
México: FCE, 1995
JOSEF, Bella. História da Literatura
Hispano-Americana. Petrópolis: Ed. Vozes Ltda, 1971.
MARTIN, Gerald. A Literatura, a Música e a
Arte na América Latina da Independência a 1870. In BETHELL, Leslie.
História da América Latina. Vol.3: Da Independência até 1870. São Paulo:
Edusp, 2001, p.829-874.
MENTON, Seymour. El Cuento
Hispanoamericano: antología crítico-histórica. México, D.F: Fondo De
Cultura Económica, 1991, p. 7-33.
PRADO, Maria Ligia. A formação das nações
latino-americanas. São Paulo: Ed. Atual, 1987.
JORNAIS
PÁGINA/12, 4 maio de 2004. Disponível em: <http://www.pagina12web.com.ar/diario/espectaculos/6-34862-2004-05-04.html>.
Acesso em 8 de março de 2005.