A indecidibilidade enquanto desconstrução da hermenêutica:
a primazia da metáfora da escritura
Francisco
de Fátima da Silva
O
conflito das interpretações assumiu um caráter de competição: cada
tipo de interpretação buscava afirmar-se em detrimento dos demais.
Cada modalidade interpretativa se preparava para demonstrar sua importância,
ou seja, a profundidade e a amplitude dos seus insights e o seu alcance.
Entretanto, o que tal conflito despertou foi a consciência das limitações
inerentes a todos os pressupostos, ficando clara a aplicação restrita
dos mesmos às tarefas que se destinavam a cumprir. À proporção que
aumentava a consciência dessas limitações, os discursos conflitantes
tendiam cada vez mais a apropriar-se uns dos outros. Desde então, tal
processo se tornou generalizado; e o que se observa hoje é uma
canibalização mútua entre marxismo, psicanálise, estruturalismo, pós-estruturalismo,
etc. O processo todo visa a compensar as óbvias deficiências inerentes
a cada uma das perspectivas; e o resultado dessa canibalização recíproca
é um amálgama de discursos interpretativos que Jacques Derrida
caracterizou assim: “Não é difícil imaginar que tipos de monstro
tais operações combinatórias necessariamente geram, bastando lembrar
o fato de que teorias incorporam teoremas opostos, os quais, por sua
vez, já incorporavam outros”.
Wolfgang
Iser
Resumo:
A
desconstrução de conceitos da hermenêutica se encontra latente
em sua própria reflexão, devido às aporias que
fundamentam seu discurso enquanto instituição. A questão
central que subjaz esse discurso é a interpretação do axioma de
Heidegger: “o metafórico só existe no interior da metafísica”.
Tal axioma desafia a fundação da diferença que Aristóteles
procurou preservar nos domínios da filosofia e da literatura. Com
isto, a diferença não é a do tipo um grau a mais, é uma
manifestação baseada na lógica do “nem/nem” oposta a do
“isto ou aquilo”. Nesta instância, uma coisa difere da outra
ao deferir de outra, cada uma pertencendo ao “mesmo” lugar.
Com Heidegger, como sugerem Derrida e Ricoeur, somos convidados a
permanecer num espaço do indecidível. A questão do indecidível
desloca na hermenêutica a questão do significado: não há mais
polissemia, mas sim disseminação que promovida pela
escrita impossibilita a hermenêutica o resgate da verdade.
Palavras-chave:
desconstrução, hermenêutica, literatura
Abstract:
The
deconstruction of concepts from the hermeneutics is found in its
own reflexion, due to the apories that its discours is based on as
institution. The pivotal question under this discours is
the interpretation of the Heidegger’s axiom: “the metaphorical
only exists into the metaphisics”. Such an axiom defies the
foundation of the difference which Aristotes wanted to preserve
into the domains of the philosophy and the literature. So, the
difference is not that of a more one degree, it is the
manifestation based on the logics of “nor/nor” oposed by the
“this or that”. In this instance, a thing difers from the
other on defering from another, each one belonging to the
“same” place. With Heidegger, like Derrida and Ricoeur had
sugested, we are invited to stand into the space of the
indecidible. The question of the indecibible move into the
hermeneutics the question of the signified: there is no more
polyssemy, but dissemination promoted by the writing
becomes impossible to rescue the truth by the hermeneutics.
Key-Words:
deconstruction, hermeneutics, literature. |
O
objetivo deste trabalho consiste em mostrar que a desconstrução de
conceitos tão caros à hermenêutica já se encontra latente em sua própria
reflexão; o que a desconstrução faz é revelar as aporias que
fundamentam o discurso hermenêutico enquanto instituição. Porém,
não se trata de uma novidade, Paul Ricoeur (1984) já procurou demonstrar
que elas estão presentes há muito na constituição da hermenêutica,
entendida no sentido de ciência da interpretação. A longa epígrafe, na
abertura do texto, sugere uma imagem grotesca dessa ciência e aponta para
o problema de sua constituição, como pode ser observado através da citação
a seguir:
o
sistema de interpretação (que é também de uma certa forma o sistema de
interpretação ou em todo caso de toda uma interpretação da hermenêutica),
ainda que seja corrente ou enquanto é corrente como o bom senso, foi representado
em toda a história da filosofia. Direi mesmo que é, no fundo, a
interpretação propriamente filosófica da escrita (Derrida,
1991, p. 352).
A
tendência em reduzir as reflexões filosóficas e teóricas a princípios
fundamentais só faz facilitar a construção de caricaturas. Se reduzida
à interpretação, a hermenêutica não passaria de uma análise
interpretativa de textos sagrados, jurídicos, literários etc; e a
desconstrução, ao niilismo, correria o risco de ser entendida como uma
ciência que prova que os textos nada significam, o que se transformaria
num absurdo, uma vez que Derrida nunca afirmou tal coisa.
Assim
caricaturizadas, tais reflexões são tomadas em sua oposição e conseqüentemente
se excluem mutuamente. Um fator, em muito, poderia contribuir para
expandir a crença quase difundida de que a desconstrução é uma espécie
de “teologia negativa”, trata-se da indecidibilidade, que em si
já implica muitas coisas. Uma delas é a questão da produção de
sentido, pois o indecidível impossibilita a idéia de significado
imanente. Produzir sentido pode muito bem ser visto como uma interpretação
(e nisso, o senso comum tem razão), o que aproximaria a desconstrução
da hermenêutica. Mas, Luiz Costa Lima (2000), quando fala de
“instabilidade semântica”,
acaba por sugerir que a interpretação corre o risco de se tornar algo
impraticável, para ele, “a indecidibilidade supõe que o trabalho
interpretativo não precisa tão-só mudar seus parâmetros senão que
agora seria um trabalho inútil e ocioso” (p. 372). Talvez esteja aí um
dos motivos, pelos quais a desconstrução seja acusada de negar a hermenêutica,
posto que, esta, preocupada com um significado imanente ao texto (ainda
que não seja escondido, que seja revelado, como queria Ricoeur), procura
resgatar a verdade desse; ao passo que a desconstrução, longe de querer
recuperar algum sentido escondido alhures, considera que “a essência da
literatura [...] é produzida enquanto conjunto de regras objetivas numa
história original dos ‘atos’ de inscrição e leitura” (Derrida,
1992, p. 45).
Derrida
(1991) está mais interessado em saber como a literatura (entendida como
objeto textual autônomo) existe de forma a “transcender” e livrar-se
do contexto ao desgarrar do “conjunto das presenças que organizam o
momento da sua inscrição” (p. 358). Pode-se dizer que o conceito de
iteratividade (iterabilité) é um elemento central de sua écriture
e sua inevitável indeterminação. É preciso compreender a
iteratividade como uma espécie de idealidade (do eîdos) que
comportaria o gesto da repetição que movimenta a cadeia de significações
que transforma os textos a cada evento, a cada leitura.
Porém,
a hermenêutica, para Ricoeur (1984), é uma “filosofia reflexiva” (p.
158) que tem de dar conta do conflito entre as diferentes interpretações
dos símbolos da linguagem. Desta forma, enraizada à filosofia de
Friedrich Nietzsche, que exigia da filosofia a tarefa de desmascarar as fábulas
ilusórias e os falsos valores da consciência (a moralidade), a hermenêutica
supõe o esclarecimento da verdadeira “intenção” e do
“interesse” que subjaz toda a “compreensão” da realidade (eis uma
caricatura da hermenêutica); gesto semelhante ao da teoria e método
psicanalítico (desmascaramento dos desejos e pulsões secretas do
inconsciente) e ao das teorias marxistas sobre a ideologia. Frente a esta
tarefa, Ricoeur reclama uma hermenêutica dedicada a restaurar o
verdadeiro sentido que os símbolos contêm, o que explicaria o progresso
da consciência.
Contudo,
a desconstrução, se volta para o próprio texto. Não mais preocupada
com que o texto diz (i. e., criando uma interpretação unificada), aponta
para o conflito e a contradição, a auto-referencialidade e a
intertextualidade (o que caracteriza a hermenêutica desde Schleiermacher).
Ao passo que a hermenêutica se concentra na busca de uma interpretação
“correta”, de uma restauração do sentido, a desconstrução aponta
para o impasse, a aporia, o paradoxo: o texto fica na condição do dito
cretense: “eu estou mentindo” e, com isto, não se pode mais
determinar se ele está ou não dizendo a verdade.
Se
se procura definir (ainda) o que seria a hermenêutica, tem-se que o termo
deriva do grego Ermhneutikh que significa: ciência, técnica que
tem por objeto a interpretação de textos religiosos ou filosóficos,
especialmente, das Sagradas Escrituras; interpretação dos textos do
sentido das palavras; teoria, ciência voltada à interpretação dos
signos e de seu valor simbólico (cf. Semio.); conjunto de regras e princípios
usados na interpretação do texto legal (cf. Jur.) (Houaiss,
2001, p. 1519). Etimologicamente, o conceito remonta e faz entroncamento
com a simbologia que envolve a figura do deus grego Hermes, filho de Zeus
e Maia, encarregado de mediar as relações dos deuses e destes com os
homens. Deus dos comerciantes e dos ladrões, guia dos viajantes na
estrada, “Hermes é principalmente o intérprete da vontade divina [...]
Depois de dilúvio, foi portador da palavra dos deuses a Deucalição” (Guimarães,
1995, p. 176). O hermeneuta
é, portanto, aquele que se dedica a interpretar e desvelar o sentido das
mensagens.
Definir
a desconstrução, nesse sentido, é praticamente impossível. Numa carta
pessoal ao professor Izutsu, Derrida aparentemente conclui quando diz:
O
que a desconstrução não é? É tudo!
O
que é a desconstrução? É nada!
Não
penso, por todas essas razões, que essa seja uma boa palavra. Sobretudo,
ela não é bela. Ela certamente prestou alguns serviços, em uma situação
determinada. Para saber o que a impôs em uma cadeia de substituições
possíveis, apesar de sua imperfeição essencial, seria preciso analisar
e desconstruir essa “situação bem determinada”. É difícil, e não
é aqui que o farei (apud Ottoni,
1998, p. 24).
Obviamente
que, para quem procura uma definição exata, isto não ajuda muito.
Contudo, serve de exemplo do estilo derridiano de escrita. Paradoxos e
neologismos abundam nas obras de Derrida e sua descrição do que seja
desconstrução remete ao subtítulo de Assim falava Zaratustra, de
Nietzsche (1970): “um livro para toda gente e para ninguém”. É por
essa indeterminação que a desconstrução é, por vezes, acusada de
promover um vale-tudo estético,
mas Derrida não está preocupado em se definir como um filósofo
tradicional, ele resiste, justamente, às distinções do que é sério e
do que é jocoso, do que é lógico e do que é excêntrico, etc., assim
como Nietzsche escreveu: ninguém é tão sério quanto uma criança que
brinca.
Ao
desconstruir as oposições binárias, Derrida impõe um problema
epistemológico à hermenêutica, já que a distinção do que é mentira
do que é verdade não é pura, não obstante, o que se faz aqui não é
negar, mas mostrar que em sua definição, a hermenêutica já nasce
problemática, aporética. Quando ela aplica o modelo interpretativo dos
textos no âmbito ontológico, a realidade não é senão um conjunto
herdado de textos, relatos, mitos, narrações, saberes, crenças,
monumentos e instituições herdados que fundamentam nosso conhecimento do
que é mundo e o homem. O ser é linguagem, é só ela que possibilita o
real, porque é o meio através do qual o “ser” se deixa perceber.
Como diria Martin Heidegger, “a linguagem é a morada do ser”. Diríamos,
juntamente com Derrida, o local onde a linguagem acontece é habitado por
e tão somente pelo homem. Para Heidegger, a hermenêutica é uma
ontologia, não um método, nem uma gnosiologia. O Dasein, enquanto
parte do ser, é que se pergunta pelo ser, mas não o cria, nem o
constitui, só pode descrevê-lo. Da mesma forma que Hans-Georg Gadamer,
Heidegger concebe a circularidade da compreensão, mais como uma
possibilidade positiva, do que como circulus vitiosus (o que
baniria a interpretação do campo do conhecimento rigoroso) (cf. Heidegger,
1991, p. 209).
Para
interagir ou perceber o mundo e seus eventos em qualquer sentido
significativo, deve-se fazer uso de conceitos e conceitos são lingüísticos.
E, é claro, a desconstrução está envolvida ao desconstruir tais
conceitos, mostrando suas contradições inerentes, como que eles não se
encaixam na corrente textual como se pensa comumente, como suas
etimologias e oposições binárias os corrompem. O primeiro ato lingüístico,
Derrida (1991) argumenta, teve de criar um signo, e um signo denota ausência
do referente: “a circulação dos signos difere o momento em que poderíamos
encontrar a coisa mesma, apossarmo-nos dela, consumi-la, despendê-la, tocá-la,
vê-la, ter dela uma intuição presente” (p. 40). O sistema inteiro
depende de noções como espaço, deferimento, diferença, e ainda que
seja visto como fechado numa homogeneidade estável (o lógos), é
óbvio que só é um produto do sistema em si. É um suplemento para a
irrecuperável origem. Na verdade, todos os conceitos só podem ser
articulados pelos significantes e com isto a linguagem na qualidade de código
está sempre em falta. Podemos apontar para uma árvore e conectá-la com
o significante ‘árvore’, mas se formos explicar o conceito (i. e., o
significante) da “arvoridade”, devemos recorrer a outros
significantes. Sem fundamento, o sistema entra no vazio. Isto é mais bem
exemplificado pelo texto escrito que simboliza o amplo conceito de escritura
(écriture) – código sem validade, e que reafirma a presença do
discurso e do falante.
Relacionado
a esta idéia está o rastro ou ainda traço (trace); de acordo com
ela, cada signo é formado, particularmente, como oposição binária, há
um resto de diferença que lhe dá significado. Este fenômeno acaba com a
idéia de que cada conceito pode existir por si só, conter seu próprio
significado, sua própria presença. Quando aplicado ao sistema como todo,
o rastro é reprimido pelo logos que possibilita a ilusão de que o
sistema é fundamentado na presença. Nota-se que tanto o significante
quanto o significado são vítimas desse jogo, desta indecidibilidade:
Derrida (1973) desconstrói tal oposição, quando afirma que “em última
instância a diferença entre significado e significante não é nada”
(p. 27-8; grifo de Derrida).
Deveria
ser possível ver, no caso da literatura, tanto a necessidade como o
dilema de uma proposta como a de Derrida, na medida em que a linguagem,
apesar de ser diferença, não pode escapar da tirania do signo lingüístico,
ou seja, a identidade e a presença. A linguagem tem a tarefa constante e
interminável de desmistificar-se, mas só o pode fazer de uma posição
que jamais logrou ocupar. Richard Macksey e Eugenio Donato (1976) afirmam
que a natureza da proposta de Derrida mostra de que modo o ato literário
é a um só tempo sempre novo e necessário e, contudo, inessencial e
derivado, já que sempre depende, como um parasita, de uma posição
anterior (p. 110).
Se,
como coloca Derrida, os signos lingüísticos se referem apenas a outros
signos lingüísticos, se os textos só se referem a outros textos, então,
nas palavras de Foucault, “se a interpretação nunca pode realizar-se
inteiramente, isso ocorre apenas porque não há nada para interpretar”
(apud Macksey e Donato, 1976, p. 110-11). Não há nada para interpretar,
pois cada signo em si não é a coisa que se oferece à interpretação,
mas a interpretação de outros signos. Não se interpreta o que está num
significado, mas em última análise “quem” propôs a interpretação.
Não
se trata de uma análise puramente psicológica, nem tampouco, trata-se de
um vale-tudo interpretativo, não é esta a visão derridiana. Uma
interpretação deve ser uma leitura cuidadosa que leva em conta todos os
aspectos de um texto, reconhecidos ou não pelo escritor:
...
a leitura deve, sempre, visar uma certa relação, despercebida pelo
escritor, entre o que ele comanda e que ele não comanda, dos esquemas da
língua de que faz uso. Esta relação não é uma certa repartição
quantitativa de sombra e de luz, de fraqueza ou de força, mas uma
estrutura significante que a leitura crítica deve produzir (Derrida,
1973, p. 193-4; grifo de
Derrida).
Em
Acts of literature, Derrida (1992) coloca que “o espaço da
literatura não é só de uma ficção instituída, mas também de
uma instituição fictícia que, em princípio, nos permite dizer
tudo” (p. 36). Esta informação
traz o problema do sujeito; mas não buscamos a interpretação nos
textos? Sim e não. Sim, se ampliarmos a noção de texto e é isto que
Derrida (1973) faz quando afirma que “não há fora-de-texto”
(p. 194). Seu argumento é de que o que um texto significa e a que ele se
refere não é a coisa em si, mas a escritura, os “suplementos,
significações, substitutivos que só puderam surgir numa cadeia de
remessas diferenciais” (p. 194). Com relação ao escritor, o que ele
comanda é tão revelador quanto aquilo que ele não comanda, sendo assim,
a busca por um significado original, imanente, tende a falhar. Se não o
encontramos no significante, nem na intenção de quem escreveu, é porque
ele não está lá. A ausência é constitutiva da linguagem: “a língua
escreve-se, pro-regride (pro-régresse) à medida que domina ou
apaga em si a figura” (p. 330). Neste ponto, seria preciso retornar à
visão derridiana da história da filosofia enquanto “história das metáforas
e das metonímias”. Um dos comentadores e tradutores de Derrida, Newton
Garver (1973), declara que “começando com a metáfora da ‘presença’,
a filosofia gerou um sistema de conceitos cuja significação pode ser
vista como essencialmente teológica, a qual, Heidegger tem chamado de
tradição da ‘onto-teologia’” (p. xxxviii).
Desta
tradição, Derrida apartou-se, não de forma total, até porque não há
como escapar deste sistema de pensamento; mas de forma a problematizá-la;
ainda que possa parecer que ele tenda a privilegiar o caráter teológico
em detrimento da ontologia, como é observado nas reflexões acerca dos
termos que são criados dentro da desconstrução, os quais são descritos
tal como aqueles descritos pela teologia negativa. Bárbara Johnson (1981)
afirma que
foi
preciso analisar, estabelecer dentro do texto da história da
filosofia, bem como dentro do chamado texto literário ... certas
marcas ... que por analogia ... [são] chamados indecidíveis, isto
é, unidades de simulacro, propriedades verbais “falsas” (nominal ou
semântica) que não podem mais ser incluídas na oposição (binária)
filosófica, resistindo e desorganizando-o, sem nem constituir um
terceiro termo, sem dar lugar a uma solução na forma de dialética
especulativa (o pharmakon não é nem remédio, nem veneno, nem
bom, nem mal, nem o dentro, nem o fora, nem discurso, nem escrita; o suplemento
não é um mais nem um menos, nem um fora, nem o complemento de um dentro,
nem acidente, nem essência, etc.; o hymen não é nem confusão,
nem distinção, nem identidade, nem diferença, nem consumação, nem
virgindade, nem o véu, nem o desvelado, nem o dentro, nem o fora, etc.
... Nem/nem, isto é, simultaneamente e/ou (p. xvi).
O
próprio Derrida utiliza-se de uma metáfora para falar desse indecidível,
desse rastro. Sua metáfora da cinza (cendre) ilustra de forma
extraordinária o que chamaríamos de “essência da linguagem” (aquilo
que os hermeneutas buscam na interpretação dos textos). O papel das
cinzas é mais bem explicado pelo tradutor Ned Iukacher (1987) quando
afirma que ao “deixar as cinzas, [o fogo] permite a relação entre o
vir da linguagem e a verdade do ser persistir, arder nas cinzas. ‘As
cinzas’ (cinders) nomeia tanto a extrema fragilidade quanto à
misteriosa tenacidade desta relação” (p. 3). Tal é a idéia de
Nietzsche acerca do universo, que o considerava como “uma cinza que
queima e resfria e, então, queima novamente, [esta idéia] antecipa a noção
de Albert Einstein sobre a expansão e contração do universo de massa e
energia finitas” (apud Iukacher,
1987, p. 8).
Com
idêntica intuição, Heidegger considera a noção de Nietzsche sobre a
“vontade de poder”, a força essencial que determina o eterno retorno
do universo finito, como uma imposição furiosa e fútil da verdade dos
seres sobre a verdade do Ser: “a culminação essencial, histórica da
interpretação da metafísica final do ser como vontade de poder é
capturada de tal forma que toda possibilidade de uma essência da verdade
emirja enquanto aquilo que é mais valioso nos fundadores da questão”
(idem., p. 8-9).
Uma
tal verdade condiciona à metáfora o auto-apagamento. Se fosse possível
apagar a metáfora, erguer-se-ia o conceito metafísico e nele a tese da
plena traduzibilidade. Reconhece-se, nessa afirmação, o dito de
Nietzsche (1974), pois, para ele, “as verdades são ilusões, das quais
se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas (metáfora típica
do século XVIII) e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie
e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas”
(p. 56). Talvez, seja daí, o próprio título do ensaio “A mitologia
branca” (1991): “a metafísica apagou em si mesma a cena
fabulosa que a produziu e que permanece, entretanto, ativa, viva, inscrita
a tinta branca, desenho invisível e oculto no palimpsesto” (p. 254?).
Daí
Derrida (1973) dizer que “a metáfora é o traço que reporta a língua
à sua origem” (p. 330). A
questão central que divide Derrida e Ricoeur é a interpretação do
axioma de Heidegger: “o metafórico só existe no interior da metafísica”
(apud Ricoeur, 2000, p. 393).
Por um lado, esse axioma simplesmente desafia a fundação da diferença
que Aristóteles procurou preservar nos domínios da filosofia e da
literatura. Por outro lado, ele se refere ao horizonte da filosofia
kantiana, não importa se de uma forma auto crítica ou não, promove uma
retrocessão a fim de exaurir o último momento metafísico inerente ao
pensamento crítico moderno.
No
estudo VIII de A metáfora viva, Ricoeur (2000) assume a posição
de Derrida, que por sua vez, em “A mitologia branca”, assume a de
Heidegger, e rejeita a filosofia derridiana por se tratar de uma
“desconstrução sem limites” que excede os limites da interpretação
kantiana. Para Ricoeur, não ter “limites” significa que o “ser da
metáfora”, também o sólido fundamento da diferença filosófica, se
abre para a “metáfora do ser”, com isto, a fronteira entre filosofia
e literatura desaparece, pois não é mais fundada no princípio da
identidade. Nesse sentido, a diferença não é a do tipo um grau a mais,
é uma manifestação baseada na lógica do “nem/nem” oposta a do
“isto ou aquilo”. Nesta instância, uma coisa difere da outra ao
deferir de outra, cada uma pertencendo ao “mesmo” lugar. Conseqüentemente,
qualquer esforço para nomear ou definir, de acordo com Heidegger, resulta
num evento de apropriação, no qual não há transcendência.
Ricoeur
argumenta contra Heidegger e Derrida, por ter medo de que a filosofia
chegue ao fim, tornando impossível encontrá-la no futuro. Contra a
desconstrução, ele propõe que o trabalho crítico da filosofia assuma
uma função hermenêutica, na qual a propriedade semântica do
transcendentalismo kantiano é retida. Este movimento garante à filosofia
uma identidade plural relativa, no qual toda visão pode ser considerada
significativa, a ponto de poder ser atribuída ao indivíduo que a
expressou.
Ricoeur
(2000) não acha que Heidegger e Derrida sejam diferentes de seus
predecessores e para ele, a posição deles é uma ontologia que “não
tem o privilégio de opor-se a todas as outras, relegadas à clausura
‘da’ metafísica. Sua pretensão inadmissível é pôr fim à história
do ser, como se o ser desaparecesse no Ereignis” (p. 480).
Ricoeur percebe que não é suficiente situar a obra de Heidegger e de
Derrida fora dos “limites” da filosofia em algo como o poético, antes
é preciso corrigir a definição aristotélica da metáfora, cujo erro
permitiu à desconstrução exercer uma força eruptiva contra a
filosofia. Ele retoma a doutrina da analogia da Metafísica de
Aristóteles para questionar a situação da metáfora na lexis como
substantivo ou nome. Embora ele não queira abolir a teoria aristotélica
da metáfora – já que a palavra permanece como locus do efeito
metafórico -, ele reestrutura a questão a fim de localizar o processo
pelo qual a metáfora surge no ser, dito de outra forma, Ricoeur sugere
uma teoria interacionista da metáfora que a eleve de sua origem,
fundamentando-a numa teoria baseada na semiótica, para o seu lugar de
“direito” no contexto de uma sentença enquanto uma semântica filosófica.
Ironicamente, seu esforço para revelar um fundamento filosófico não é
nada mais do que uma substituição da paronímia pela analogia que
funciona como meio para a metáfora alcançar o estatuto transcendental.
Contudo, o efeito desse movimento, conforme Ricoeur, é duplo:
primeiramente, nega a possibilidade da passagem direta do campo discursivo
ou semântico da metáfora para o da analogia e em segundo lugar,
restabelece o momento mínimo kantiano que torna possível o modo
transcendental de ordenar o discurso da questão do ser.
Desta
forma, Ricoeur mostra a metáfora como veículo primordial, através do
qual a imaginação enquanto faculdade semântica do julgamento exercita
seu gênio sobre o aporético. Devido ao fato de Ricoeur acusar Heidegger
e Derrida de não serem kantianos o suficiente, Derrida, de forma
indireta, aponta para a falha inerente da posição de Ricoeur ao fazer
uma crítica a Heidegger. Em “Le retrait de la métaphore”, Derrida
faz uma objeção à caracterização que Ricoeur faz de seu trabalho como
sendo uma “desconstrução sem limites” e mostra como seu pensamento
difere do de Heidegger.
Por
um lado, Ricoeur articula uma crítica filosófica da linguagem, esperando
com isso assegurar o lugar da filosofia no campo semântico do pensamento
kantiano, mas com o foco no significado, ele esquece da força crítica em
Kant que leva Heidegger e Derrida afirmar a crítica como legado do
pensamento moderno. Por outro lado, Heidegger, que faz uma crítica à
linguagem filosófica, substitui o uso da catacrese pela metáfora
resistindo em nomear ou predicar qualquer coisa que possa levar a um erro
metafísico. Mais do que cunhar uma nova palavra ou frase, Heidegger
mostra etimologicamente como a linguagem tem sido apropriada
inadequadamente pela filosofia. Sua crítica é um esforço para permitir
que as palavras signifiquem além do significado que os filósofos lhes
imputam, contudo, a despeito de sua relutância em afirmar o nome, como
Derrida deixa claro, Heidegger acaba caindo na questão da inscrição da
presença do gesto crítico e com isto, torna-se incapaz de reconhecer até
que ponto seu próprio pensamento está ligado à crítica kantiana,
mergulhado na “metafísica da presença”.
Derrida
argumenta que Heidegger, assim como Hegel e Nietzsche procuraram exceder
os limites da episteme kantiana, é, em última instância,
kantiano. Embora Heidegger e Ricoeur assumam a “mesma” posição metafísica,
ainda que de formas distintas – um sabendo e o outro não – Heidegger
é importante, porque seu pensamento nos traz a possibilidade da
interdisciplinaridade (o mesmo vale para Ricoeur). Na verdade, sua
filosofia “autocrítica” se tornou mais retórica ou poética do que
parece ser. Com Heidegger, como sugerem Derrida e Ricoeur, somos
convidados a permanecer num espaço do indecidível. Um espaço por excelência
da escritura, tal como aponta Derrida (1991):
O
horizonte semântico que comanda habitualmente a noção de comunicação
é excedido ou fendido pela intervenção da escrita, quer dizer, de uma disseminação
que não se reduz a uma polissemia. A escrita lê-se, não dá lugar,
“em última instância”, à decodificação hermenêutica, a uma
descriptagem de um sentido ou de uma verdade (p. 356).
A
questão do indecidível desloca na hermenêutica a questão do
significado, o significado não é estável, mas produto de instabilidade
que acontece na escrita no momento da leitura, esta produtora de sentidos.
A produção de sentidos traz a necessidade de repensar o conceito de
polissemia na linguagem – uma problemática suscitada pela figura, pela
metáfora em geral. Para dar conta do processo de significação, torna-se
necessário lançar mão do termo disseminação, evitando
trabalhar com uma limitação, com um possível resgate da “verdade”.
Quando a hermenêutica interpreta, impede ao mesmo tempo a
univocidade, impõe um sentido em detrimento de outros; então, o que a
desconstrução faz é determinar o sentido “próprio” da escrita como
a própria metaforicidade, o que apaga a distinção entre sentido literal
e figurado. Neste sentido, a metáfora torna-se uma questão central no
processo da escrita, pois possibilita os conceitos e organiza o discurso
na sua forma, no seu tom, no seu ritmo. A interpretação passa a ser uma
condição de produção de sentidos, não mais um artifício usado para
resgatar os sentidos de um texto, seja escrito, seja falado.
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