Por ALINE DE CALDAS COSTA

Discente do curso de Comunicação Social – DLA / UESC. Pesquisadora de Iniciação Científica / FAPESB. Orientadora: Profa. Dra. Maria de Lourdes Netto Simões. Grupo de Pesquisa ICER.

 

* Trabalho apresentado no VII Congresso de Estudos Lingüísticos e Literários na Universidade Estadual de Feira de Santana em 10/2004, orientado por Maria de Lourdes Netto Simões.

 

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Imaginário, cultura e turismo no quarteirão Jorge Amado*

Aline de Caldas Costa

 

Resumo:

Esse trabalho objetiva captar aspectos do imaginário do Quarteirão Jorge Amado, em Ilhéus, a partir da obra Gabriela Cravo e Canela (1958), do referido autor, e do material publicitário elaborado pela agência M21, a pedido da Ilhéustur, Fundação Cultural de Ilhéus – FIC -  e  Prefeitura Municipal para apresentar esse roteiro turístico. Formatado a partir da obra, o quarteirão é tomado como suscitador do interesse do leitor-turista (SIMÕES, 2002), que motivado a deslocamentos (razões para), busca realizar (razões porque) mediações históricas e sociais (GUMBRECHT, 1998). Entendendo como bem simbólico a representação do imaginário (ISER, 1996), a pesquisa busca, através de entrevistas semiestruturadas, apreender significados ausentes aos textos em questão, explorando o arcabouço sócio-histórico do leitor, o que surge como aspecto de interesse no sentido de compreender a formação da identidade cultural (HALL, 1999) regional.

Palavras-chave: Literatura, cultura, turismo.

Abstract:

The objective of this work is to catch aspects of the “Quarteirão Jorge Amado’s” imaginary, in Ilhéus, from the book “Gabriela cravo e canela” (1985), by the relatedalthor, and from the publicity material elaborated by the agency M21, for the Ilhéustur, Fundação Cultural de Ilhéus – FIC – and Prefeitura Municipal, to show  this touristic itineraty. Formated from the book, the book is taken as cause of the reader-tourist’s interest (SIMÕES, 2002), that motivated by dislocations (reasons for), try to carry out (reasons why) historical and social mediation (GUMBRECHT, 1998). Understanding as symbolic valve the representation of the imaginary (ISER, 1996), the rescarch look for, through semi-structured interviews, the apreehension of absent meaning in the texts in evidence, exploring the social-historical basic of the reader, that emerges as a interesting aspect to understand the construction of the regional cultural identity (HALL, 1999)

Keywords: Literature, culture, tourism.

 

Introdução

Para as reflexões que aqui desejamos desenvolver, consideremos que uma boa história apresenta sempre uma personagem, situada num cenário peculiar, e que o leitor consegue ultrapassar aquele mundo ficcionalizado e associá-los (personagem e cenário) a um lugar, uma cidade-palco onde “aconteceram” suas vivências. Nessa hipótese, queremos pensar que assim ocorre, quando leitores de Jorge Amado, tomando conhecimento da personagem Gabriela, visitam Ilhéus em busca da faceira Gabriela e da ambiência em que ela se movimenta, no texto ficcional Gabriela, Cravo e Canela (1958).

Evidentemente, a história não é a mesma para todos. Cada um a vive a partir de situações sociais, históricas e culturais específicas, as quais influenciam a percepção individual acerca do espaço ficcionalizado e, depois, visitado. O significado de um prédio, ou uma igreja pode ser diferente de uma pessoa para outra, visto que a compreensão desses símbolos é sempre uma interpretação, envolvendo ativações, memórias e práticas.

Assim, a produção literária amadiana possui uma intenção, expõe significados trançados a partir das imagens formadas por sua percepção da realidade à volta. Partindo da observação dessas imagens, queremos supor que o autor concretizou sentidos ausentes ao horizonte de opiniões no qual estava inserida, deixando entrever, no texto ficcionalizado, a sua intenção autoral (GUMBRECHT, 1977). Tais sentidos se manifestam em Gabriela... como campos sígnicos de encantamento, construídos a partir de tentativas em formar representações do imaginário (ISER, 1997), às quais chamaremos bens simbólicos.

Uma vez que se apresentam enquanto discurso, os bens simbólicos em destaque se fazem aspectos fundamentais para a compreensão da imagem de sujeito que se formou na região Sul-baiana. O fato de Gabriela... ter se tornado um bem cultural mundializado e relido em linguagens múltiplas (cinema e novela), leva-nos ao questionamento acerca da negociação dos recursos históricos, lingüísticos e culturais na construção da identidade local (HALL, 1999), no sentido de formatar um produto turístico que represente nossas fronteiras simbólicas e articule o processo de identificação por meio da diferença.

No curso desse raciocínio e a partir da obra amadiana em foco, este trabalho objetiva captar aspectos do imaginário – espaço entre o real e o fictício – acerca do Quarteirão Jorge Amado, em Ilhéus, tendo como dispositivo de ativação o mapa publicitário do Quarteirão Jorge Amado.

FIG 01: Mapa publicitário do Quarteirão Jorge Amado.

Fonte: Prefeitura Municipal, Ilhéustur e  Fundação Cultural de Ilhéus – FUNDACI.

Circuito cultural formatado a partir da obra, o quarteirão Jorge Amado é tomado como suscitador do interesse do leitor-turista (SIMÕES, 2002), que motivado a deslocamentos (razões para), busca realizar (razões porque) mediações históricas e sociais (GUMBRECHT, 1998) através do turismo.

A pesquisa recolhe, através de entrevistas semiestruturadas e observação da recepção do material publicitário, significados ausentes aos textos em questão, com base na exploração do arcabouço sócio-histórico do leitor e na noção de que a leitura é um ato de reconstrução do texto que pode ser reescrito por diferentes interpretações.

Do imaginário ficcional ao imaginário do turista-leitor

O romance Gabriela Cravo e Canela se passa em meados da década de 20, do século passado, momento em que Ilhéus prosperava com a lavoura cacaueira. Dentre os bens simbólicos destacados no material de ativação do imaginário do receptor, trabalharemos com os três espaços mais citados pelo texto ficcional e potencializados no mapa publicitário em questão: a Catedral de São Sebastião, o bar Vesúvio e o Bataclã.

A Catedral de São Sebastião

Muito freqüentada pelas senhoras da sociedade ilheense, a catedral fica numa praça onde acontecem manifestações religiosas e quermesses. Símbolo dos bons costumes, impregna as festas típicas um ar de reuniões familiares, nas quais também era costume o comentário acerca da intimidade alheia.

Chegava o fim de ano, os meses das festas de nata, de ano bom, dos reis magos, das festas de formatura, das festas da igreja, com quermesses armadas na praça do bar Vesúvio, a cidade cheia de estudantes em férias [...] O padre Basílio, contente da vida, a batizar o sexto afilhado, nascido do ventre de Otália, a sua comadre. Farto material para os comentários das solteironas. (AMADO, 1966, p. 290)

A atual catedral não foi a primeira. A primeira era simples e pequena, fator que não condizia com o progresso em que a cidade vivia. Então, foi iniciada a construção da nova catedral, demorando mais de 36 anos para, afinal, ser concluída, graças à ajuda financeira dos coronéis, em especial, de Misael Tavares, conhecido como maior produtor de cacau do mundo. Com arquitetura neoclássica, abóbadas e ornamentos franceses, a catedral guarda um imaginário curioso.

A primeira catedral tinha uma torre só e isso era traço de igreja para pobres. Então os coronéis decidiram construir uma catedral que estivesse de acordo com a cultura do cacau. Daí a cidade de Ilhéus possuir duas catedrais. A de São Sebastião tem duas torres e é essa construção enorme, com estilo arquitetônico definido, já a catedral de São Jorge continua pequena, com uma torre apenas[1].

As missas celebradas na Catedral de São Sebastião têm um direcionamento diferente, com saudações e cânticos para envolver os turistas. “O turismo entra para valorizar a questão cultural, preservando a tradição”, diz o padre Nilton[2].

Já a antiga catedral de São Jorge, datada de 1556, foi construída com pedras lapidadas artesanalmente. Lá, há também um museu onde, hoje, estão expostas obras sacras dos séculos XVI, XVII e XVIII e uma imagem rara do Santo, sem o cavalo.

O bar Vesúvio

Propriedade do árabe Nacib, o Bar Vesúvio é, na obra, o principal local de convivência social da história, onde se reúnem coronéis, políticos, doutores e empresários para discutir política, comer os quitutes de Gabriela, apreciar bebidas e comentar as novidades chegadas com os navios que atracavam no antigo porto. Também os caixeiros-viajantes paravam ali, trazendo notícias de outras cidades vizinhas. As famílias o tinham como ponto onde tomar um refresco ou sorvete nos passeios de fim de tarde.

Bar era bom negócio em Ilhéus, melhor só mesmo cabaré. Terra de muito movimento, de gente chegando atraída pela fama de riqueza, multidão de caixeiros-viajantes enchendo as ruas, muita gente de passagem, quantidade de negócios resolvidos nas mesas dos bares. [ ...] O bar Vesúvio era o mais antigo da cidade. Ocupava o andar térreo de um sobrado de esquina numa pequena e linda praça em frente ao mar, onde se erguia a igreja de São Sebastião.(AMADO, 1966, p.69-70).

Fora da ficção, o Bar Vesúvio é um ponto turístico bastante atraente. Já passou por vários proprietários, entre os quais um casal de árabes cuja senhora, Dona Lourdes, tinha um tempero muito apreciado, receitas especiais, como o quibe, quitute que se tornou o principal aperitivo da casa até a atualidade. Dentre as histórias que circundam o imaginário popular acerca do Vesúvio, está uma lenda que remonta aos tempos áureos do cacau.

Havia um beco ao lado do Vesúvio que ia sair  quase na porta do bordel. O coronel saía de casa dizendo à família que ia a uma reunião na maçonaria. Quando terminava a reunião, a esposa sabia que ele estava com fome e iria ao Vesúvio comer quibe e tomar cerveja preta... às vezes eles nem iam à maçonaria, iam direto ao Bataclã e quando o movimento acabava eles não passavam pela avenida Coronel Paiva, porque podia ter alguém que os visse passando... [3]

Nesse espaço entre o mundo empírico e sua metaforização a imaginação funciona como atividade combinatória (ISER,1997), atribuindo aos espaços ficcionalizados uma significação maior, capaz de refletir um arcabouço de versões e percepções históricas.

Se a interpretação do Vesúvio, realizada do cidadão entrevistado, está relacionada à memória do acontecido da vida da comunidade local, a percepção do turista parece muito mais ambiental. Partindo da vista que o Vesúvio oferece, aponta para o cuidado em relação aos impactos sobre a praia da Avenida Soares Lopes ocasionados tanto pela construção do novo Porto quanto pela poluição que chega à areia na parte central da cidade.

O Bataclan

O Bataclan era um famoso Cabaré de Ilhéus. Representava a vida noturna e a transgressão masculina. Música, mulheres, e jogos eram as ofertas de entretenimento.

O Bataclan e o Trianon eram os principais cabarés de Ilhéus, freqüentados pelos exportadores, fazendeiros, comerciantes, viajantes de grandes firmas. Mas nas ruas de canto havia outros, onde se misturavam trabalhadores do porto [...]. O jogo era franco em todos eles, garantindo os lucros. (AMADO, 1966, 165)

Segundo o historiador Arléo Barbosa, “havia muitos cabarés em Ilhéus, chegaram a funcionar oito, todas as noites”. O Bataclan foi fechado na mesma época em que  os cabarés quase desapareceram do Brasil com a proibição do jogo, fator que os sustentavam e gerava empregos.

Hoje, encontra-se restaurado; visando o turismo, foi ressignificado e reconfigurado. Funciona como ponto turístico-cultural, com espaço para exposições, cibercafé e restaurante. Tem como atrativo o quarto de Maria Machadão, personagem do romance amadiano, todavia apresentando aspectos que não se atêm à ficção literária, nem ao real histórico: aspectos que pertencem à lacuna do imaginário e contribuem para a formação de uma imagem de alteridade, ainda que ressignificada ou reconfigurada.

Conclusão

Os bens simbólicos destacados nesta pesquisa fazem parte do patrimônio cultural e histórico ilheense, assimilado, em Gabriela Cravo e Canela, pela ficção amadiana. Visto que a ficção, perspectivando o real, envolve algo que existe e, contudo, não possui o caráter de realidade, temos que as interpretações sobre o espaço ilheense têm focos de óticas e intenções diversas (do autor, dos leitores, dos habitantes locais).

Assim, a análise concluiu que a explicitação de sentidos é pertencente não somente à obra literária, tampouco só relacionada à publicidade turística, mas às memórias e percepções que conectam momentos históricos e culturais. Os suportes midiáticos, bem como informações orais constroem concreções, que relacionam presente e passado, e forjam imagens identitárias, para narrar um perfil Sul-baiano. A identidade Sul-baiana, embora dinâmica, guarda características de lugar, e marca a sua diferença no cenário mundial.

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[1] Entrevista com o guia mirim Sérgio Santos.

[2] Entrevista com Padre Nilton, responsável pela catedral de São Sebastião.

[3] Entrevista com o historiador Arléo Barbosa.

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Referências

AMADO, J. Gabriela, Cravo e Canela. 51 ed. São Paulo: Record / Martins, 1975.

BARBOSA, Arléo. Entrevista concedida em setembro de 2003.   Ilhéus.

GUMBRECHT, H. U. As Consequências da Estética da Recepção: Um Início Postergado. In: ROCHA, J. C. de C. (Org.). Corpo e Forma – Ensaios Para uma Crítica Não - Hermenêutica. Rio de Janeiro: UERJ, 1998. p. 23 – 46.

HALL, S. A Identidade Cultural na Pós -Modernidade. Trad.  Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro. 3ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

ISER, Wolfgang. O Fictício e o Imaginário - Perspectivas de uma Antropologia Literária. Trad. tradução de Johannes Kretschmer. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996.

SANTOS, Sérgio. Entrevista concedida em outubro de 2003. Ilhéus.

SIMÕES, M.L. N. De Leitor a Turista na Ilhéus de Jorge Amado. In: Revista Brasileira de Literatura Comparada, 6. Belo Horizonte: ABRALIC, 2002. p. 177 – 183

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Publicada em 03.12.04 - Última atualização: 26 abril, 2005.