A
luta dos anarquistas contra o sistema penal e a emergência da ação
global de associações que compõem a Cruz Negra Anarquista (CNA)
Acácio
Augusto
Parece-me
que não devemos partir do tribunal e
perguntar como e em que condições pode
haver um
tribunal popular, e sim partir da justiça
popular,
dos atos de justiça popular e perguntar que
lugar
pode aí ocupar um tribunal.
Michel
Foucault
Resumo
A
prisão, esta criação recente, é problematizada por meio da
existência de diversas associações anarquistas — Cruz
Negra Anarquista — que se dedicam a combater o sistema
penal. A urgência em pensar as prisões de uma perspectiva que
privilegie a liberdade encontra nos anarquistas uma parceria
corajosa. Estes, em meio a busca de sua utopia da sociedade livre
e igualitária, provocam experimentações de liberdade que abalam
a lógica ressentida do tribunal.
Palavras-chave:
Cruz Negra Anarquista, radicalismo, prisões, anarquismos.
Abstract
The
prison, this recent creation, is thought by the existence of
several anarchists associations- Anarchist Black Cross- which
dedicates themselves for the struggle against penal system. The
urgency in thinking prisons in a way that to privilege liberty,
finds in anarchists brave partners. Those, during the search for
uthopical free society, generate freedom experiences that rocks
the sorrowed logic of the court.
Keywords:
Anarchist Black Cross, radicalism, prisons, anarchisms
|
Todo
preso é um preso político.
Em
1795 Willian Godwin (Passetti, 1994) escreveu que “a questão da punição
talvez seja a mais fundamental da ciência política” (Godwin, 2004:
11). Com isto, o pensador inglês — que levou o utilitarismo às suas últimas
conseqüências e é apontado como procedência certa dos anarquismos —
causa um ruído que agride os ouvidos dos construtores racionais dos
sistemas de governo, defensores do Estado como um mal necessário.
Minha
reflexão parte da sugestão demolidora de Godwin para fazer eco a este ruído
causado há 210 anos, e que continua a atormentar o sonho de democratas e
reformadores obcecados pela ordem racional ascética. É desta perspectiva
que procuro apresentar a existência de uma série de associações
praticamente desconhecidas, principalmente no Brasil, composta por pessoas
que fazem das suas vidas um tormento para o sistema penal e usam o espaço
virtual da Internet para livrar corpos e mentes do encarceramento.
Para
tanto, dividi este texto em três movimentos: o primeiro, apresenta o
problema do enfrentamento dos anarquistas com as prisões e de que foi
possível pesquisar, bem como indica os caminhos pelos quais cheguei a
este problema. O segundo, mostra as ferramentas que lancei mão tanto para
seleção, como para sistematização dos documentos. E, finalmente, no
terceiro, traço algumas considerações que se tornaram possíveis de
serem levantadas a partir do problema colocado.
Anarquistas
contra as prisões
A
prisão, alertou Foucault em Vigiar e Punir, é uma criação
recente (Foucault, 2002c: 243). Ela emerge como peça fundamental das
novas tecnologias de saber/poder levadas a cabo pelo efeito hegemônico de
dominação provocado pela burguesia. Não só a prisão é uma criação
recente e responde aos novos arranjos das forças socais e políticas que
emergem no final do século XVIII, como, “a própria forma do tribunal
pertence a uma ideologia da justiça que é a da burguesia” (Foucault,
2002a: 74).
É
importante ressaltar que não se trata aqui de entender o tribunal, ou a
prisão, como um órgão executivo a serviço dos interesses burgueses.
Mas demarcar, junto com Foucault, a forma-tribunal
surgindo dentro de um determinado espaço onde a burguesia marcará seu
posicionamento político conferindo a este espaço de mediação um
estatuto de neutralidade. Portanto, não estamos tratando de um órgão
executivo, mas de uma estratégia política adotada pela burguesia em uma
determinada situação histórica. Foucault afirma ao tratar da criação
do tribunais populares em meio a revolução francesa: “A minha hipótese
é que o tribunal não é a expressão da justiça popular mas, pelo contrário,
tem por função histórica reduzi-la,
dominá-la,
sufocá-la,
reinscrevendo-a
no interior de instituições características do aparelho de Estado”
(Foucault, 2002b: 39).
Por
sua vez, os anarquistas são, no mesmo período, uma resistência radical
a essas novas tecnologias de poder. Descrentes da ação estatal e atentos
ao esquadrinhamento do indivíduo decorrentes das técnicas disciplinares,
colocam-se
como inimigos públicos do Estado, combatem a prisão como um problema político
e buscam apartar o problema da delinqüência do campo da legalidade e
ilegalidade burguesa. Marcam assim, um contra-posicionamento
ao espaço neutro do tribunal burguês. Como mostrou Foucault na parte
final de Vigiar e Punir: “sem
dúvida as análises do La Phalange
não podem ser consideradas representativas das discussões que os jornais
populares faziam na época sobre os crimes e a penalidade. Mas elas se
situam no contexto dessa polêmica. As lições de La Phalange não se perderam totalmente. Elas é que foram
despertadas pela reação tão ampla de resposta aos anarquistas, quando,
na segunda metade do século, eles, tomando como ponto de ataque o
aparelho penal, colocaram o problema político da delinqüência; quando
passaram a reconhecer nela a forma mais combativa de recusa da lei; quando
tentaram, não tanto heroicizar a revolta dos delinqüentes quanto
desligar a delinqüência em relação à legalidade e à ilegalidade
burguesa que a haviam colonizada; quando quiseram restabelecer ou
constituir a unidade política das ilegalidades populares” (Foucault,
2002c: 242).
Com
efeito, os anarquistas constituem-se
historicamente como atiradores e alvo da forma-prisão.
Se, por um lado, combatem-na como prática de dominação estatal em sua
capilaridade, por outro, tornam-se
seu alvo privilegiado ao receberem o estatuto de monstro político
antropofágico — a ser redimensionado como anormal — que rompe o
contrato social pela base. Os estudos de Lombroso, que culminam em uma
monografia totalmente dedicada aos anarquistas exemplares (Lombroso,
1977); a intensa caça aos anarquistas no final do século XIX e começo
do XX, tanto na Europa como no Brasil trazem esta situação; e a vigorosa
análise de Foucault realizada no Curso
no Collège de France, de 1974-75,
Os Anormais, documenta
(Foucault, 2002d).
Vivemos
contemporaneamente, desde a década de 1980, um quadro de superpenalização
onde a política de tolerância zero — assim batizada e desenvolvida pelo governo de
Nova York sob o comando do prefeito Rudolph Giuliani — é norteadora
planetária de políticas criminais que alimentam a utopia de erradicação
do crime por meio de uma superpenalização de pequenos delitos como forma
de evitar os grandes. Norte traçado nos centros de pesquisa
estadunidenses, os chamados think
tanks, que orienta políticas penais tanto de direita, no caso
estadunidense, como de esquerda, no caso da Europa e da América Latina (Wacquant,
2002).
A
partir desta década de 1980, e mais intensamente na seguinte, aparece a
revitalização de uma série de associações anarquistas que
articulam-se entre si para combater às prisões, existente desde 1905, a
Cruz Negra Anarquista (CNA). Ela surge historicamente, como associação,
na Rússia czarista e sofre sua primeira perseguição e interrupção no
governo bolchevista. Reaparece, mais tarde, na Alemanha, onde sofre nova
interdição, desta vez do governo nazista; na década de 1960 volta a se
reestruturar na Inglaterra de onde apóia prisioneiros e fugitivos dos
governos totalitários na Europa. Sua difusão planetária, com a criação
de associações em diversos países, ocorre somente na década de 1980,
e, como já apontado acima, explode na década de 1990, no bojo dos
movimentos globais de luta contra o capitalismo e do uso da Internet como
ferramenta de luta.
As
CNA’s agem, globalmente, criando campanhas para libertação de presos,
produzindo documentos que questionam políticas de incremento penal e que
explicitam a seletividade do sistema penal, além de viabilizar a difusão
de escritos de presos produzidos no interior da prisão que são
transformados em livros ou publicados na Internet. Apesar de atuar,
preferencialmente, junto ao que convencionam chamar de presos políticos
ou de guerra, a defesa de presos empreendida pelas CNA’s não faz
julgamento prévio dos presos que apóiam, como faz, por exemplo, outros
grupos de defesa de presos que se pautam na Declaração Universal dos
Direitos Humanos de 1948, como a Anistia Internacional, a qual recusa-se
a defender presos que tenham praticado atos violentos.
As
associações que integram as CNA’s são autogestionárias, agem nos
diversos países como grupos autônomos que articulam-se
entre si por relações de afinidade (Bookchin, 1999; Rodrigues, 1999). Sua principal ferramenta
de libertação de presos, além do apoio legal, é uma ação denominada
de CRE (Cadeia de Resposta de Emergência), que consiste em bombardear com
cartas ou atormentar com manifestações os órgãos competentes e as
embaixadas em diversos países, 48 horas após a notícia de uma prisão.
Sua principal via de difusão é a Internet.
Diante
da histórica relação de enfrentamento dos anarquistas com a prisão, o
contemporâneo quadro de superpenalização e a existência destas
diversas associações anarquistas que se dedicam exclusivamente ao
combate às prisões e ao sistema penal, é possível chegar à uma
problematização que, tomando a ação da Cruz Negra Anarquista, vise
explicitar a radicalidade, a pertinência e a atualidade da crítica
anarquista às prisões e ao sistema penal, desde a interceptação
policial, passando pelo julgamento nos tribunais, e finalmente, chegando
à prisão.
Arquivos
soltos na Internet. Livros esquecidos pelas bibliotecas
Para
traçar este campo de problematização indicado no parágrafo anterior, a
principal atividade de pesquisa foi buscar na Internet todo tipo de
informação referente a atuação das CNA’s. O volume de informações
parece ser infinito, na medida em que um sítio leva a outro, a outro mais
e descobre-se,
assim, a amplitude da ação destas associações que estão presentes em
quase todas as principais cidades do mundo, sem o mínimo de financiamento
governamental ou privado.
Os
sítios aparecem e somem em um espaço de meses, e a velocidade da
Internet faz com que seu discurso contra as prisões circule
constantemente começando e recomeçando a cada dia, chegando aos mais
diferentes lugares e conectando-se a outras lutas locais pelo planeta.
Isto permite a composição de uma ação móvel e descentralizada
politicamente que têm como alvo a prisão e como objetivo a libertação
dos prisioneiros. Fato este que se deve à Internet como instrumento
facilitador do contato, mas que se efetiva por uma postura política que têm
como princípio o federalismo libertário.
Para
lidar com estes arquivos soltos procurei elaborar categorias para
sistematização e seleção, e que tornaram possível perceber uma maior
relevância do grupo de New Jersey, em relação à produção e
disponibilização de texto na Internet, e do grupo de Madrid, a respeito
do enfrentamento com o governo e as forças fascistas emergentes na
Espanha. Ao final de 2003, tanto um (Nova Jersey), quanto outro (Madri),
desdobram-se em federação de grupos estadunidenses e canadenses, e
federação de grupos da península Ibérica, ampliando suas atuações.
Simultânea
à esta busca na Internet, uma pesquisa sobre publicações a respeito de
prisões e anarquistas foi realizada nas bibliotecas das universidades
para uma seleção de livros e artigos que auxiliassem na análise do
material coletado. Seu resultado foi um pouco frustrante, na medida em que
a incidência de publicações anarquistas em português é muito baixa se
comparada, por exemplo, à uma bibliografia marxista ou liberal.
De
todo modo, foi neste cruzamento entre pesquisa na Internet com a seleção
bibliográfica que se tornou possível chegar a algumas considerações
provisórias em relação a atuação das CNA’s frente ao problema
levantado. E são estas que apresento a seguir.
Lutar
contra o sistema penal é experimentar liberdades no presente
Nota-se
de imediato que as CNA’s vinculam-se
ao revolucionarismo do século XIX, proveniente dos escritos de Bakunin,
Malatesta e Kropotkin. Sua crítica à prisão é fortemente marcada pela
argumentação deste último em seu conhecido opúsculo As
Prisões (Kropotkin, 2002).
Não obstante a sua atuação no presente, as CNA’s vinculam o fim das
prisões à deflagração de uma revolução social e relacionam a ocorrência
dos atos tidos como criminosos à organização social e política da
sociedade capitalista. A revolução, neste sentido, tanto para Kropotkin
como para a CNA, seria a panacéia a dar um fim, simultaneamente, ao crime
e à prisão.
Entretanto,
é em sua atitude no presente que a atualidade e contundência das ações
das CNA’s ganham relevo, por colocar a questão das prisões e da delinqüência
no campo da política; da política abordada de uma perspectiva libertária
e entendida como guerra do indivíduo contra o Estado. É desta
perspectiva que é possível situar sua ação como contra-posicionamento,
a partir de uma sugestão analítica de Michel Foucault (Foucault, 2001:
411-422). Veicular na Internet escritos de presos, ou que tratam dos
enfrentamentos e privações destes no interior da prisão, como faz o
grupo de New Jersey, por exemplo, é tomar o encarceramento de pessoas
para além do direito penal, e toma-lo
não somente como um drama pessoal, mas como um problema que diz respeito
as formas políticas que orientam a organização da sociedade. Situa uma
postura que alerta para o fato de que o Estado pode seqüestrar o corpo de
qualquer um no momento em que bem entender, pré-requisito
para a continuidade e alimentação da seletividade do sistema penal.
É
importante lembrar, neste momento, que a posição de enfrentamento dos
anarquistas em relação ao Estado, à lei e ao sistema penal constitui-se
de um discurso que visa a instauração de práticas outras que não a do
exercício centralizado da autoridade. Portanto, não se trata de um exercício
crítico, mas, como sugere o texto Heterotopias
anarquistas de Edson Passetti, da invenção de outros espaços que
dissolvam as relações de mando e obediência próprios da moderna
sociedade burguesa baseada na imputação do medo por meio do exercício
do castigo (Passetti, 2002: 141-173).
É
desta perspectiva interessada que o material referente às CNA’s é aqui
apresentado. Perspectiva esta que encontra limitações na ação das
CNA’s quando estas ainda trabalham, em alguns momentos, com a categoria
de presos políticos ou atrelam o fim das prisões à uma revolução. Mas
por outro lado, não se deve deixar de sublinhar que em meio a sua luta
maior por libertação, as CNA’s criam, na sua intervenção direta no
circuito punitivo, experimentações de liberdade que barram os desejos
fascistas, hoje em dia tão presentes não só nas políticas punitivas e
de controle, cada vez mais sutis, covardes e orientadas para o extermínio,
mas também, como lembra Foucault prefaciando o livro de Deleuze e
Guattari, “que fazem amarga tirania das nossas vidas cotidianas”
(Foucault, 1993: 200).
Desta
maneira a luta contra as prisões e o sistema penal empreendida pelas
CNA’s nos mostra que a questão penal continua sendo um tema que diz
respeito à política; que fazer esta luta somente por meio de programas
— seja de navegação ou do programa revolucionário — é limitar o
questionamento da atualidade e a invenção de estilos de vida que
prescindam do julgamento. Mesmo beneficiados pela velocidade e o fácil
deslocamento proporcionado pela Internet — o qual deve-se
lembrar pode ser interceptado a qualquer momento — manter-se
preso a um programa ou a uma identidade, como a de preso político, é dar
margem a ser capturado pelo discurso da reforma como o da Anistia
Internacional, ou ainda, mesmo que sob uma roupagem revolucionária pode-se
estar apenas reafirmando a ordem.
Para
além desta evidência, urge que as práticas de combate ao encarceramento
e a uma sociabilidade fundada no exercício centralizado de autoridade e
baseada no castigo, que são historicamente singularidades dos
anarquistas, desvinculem-se
cada vez mais das tradições revolucionárias do século XIX, para que se
multipliquem os campos de luta contra a prisão e o sistema penal como
experimentações de liberdade no presente, fazendo com que o fim das prisões
não esteja no final, mas seja o começo, a atitude corajosa no presente
em que se possam forjar novas subjetividades que se oponham à lógica
burguesa, mesquinha, cínica e ressentida do tribunal.
Sítios
consultados