As
prostitutas de Tocaia Grande:
uma
identidade em construção
Marcelo
Silva de Aragão
Resumo
O
presente trabalho tem por objetivo fazer uma breve análise da
representação identitária das prostitutas na obra Tocaia
Grande: a face obscura. Para tanto, consideramos que o autor
parte a uma nova empreitada neste romance, já que ele decide,
declaradamente, contar a história na perspectiva dos excluídos.
Percebemos, neste caso, uma certa centralidade das prostitutas na
formação do ‘‘arruado’’ de Tocaia Grande. Nessa política
de reestruturação, diferentemente de Terras
do Sem Fim, o autor dará voz as meretrizes que, por sua vez,
darão uma importante contribuição na formação do lugarejo em
que se passa a narrativa. Nesse sentido, buscamos perceber a
enunciação feminina na obra, tendo por base a construção da
identidade feminina, perpassando pelos conceitos de multiplicidade
nas questões de identidade
do sujeito.
Palavras-chave:
identidade, gênero, prostitutas.
Abstract
This
work aims at giving a brief analysis of the representation of
identity of the prostitutes in Tocaia Grande: a face obscura.
To do this, we consider that the writer is undertaking a new taste
in his novel, because he has decided, according to his own
declarations, to tell the story from the angle of the excluded. In
this case we may perceive a certain centrality in the prostitutes
in the growth of the “village” of Tocaia Grande. In this
strategy of restructuring, different from that of Terras do Sem
Fim, the author gives a voice to the “girls” who, in their
turn, will make an important contribution to the growth of the
little community in wich the narrative takes place. In this sense
we are trying to perceive the definition of the feminine in the
work, from the basis of the construction of female identity, as
filtered through concepts of multiplicity in questions of the identity
of the subject.
Keywords:
identity,
gender, prostitutes. |
1-
Introdução
Neste
trabalho, pretendemos fazer uma breve análise da representação identitária
das prostitutas em Tocaia Grande: a
face obscura. Desta forma, estabeleceremos vínculo entre as relações
de gênero das mesmas e sua condição, enquanto sujeito detentor de uma
profissão marginalizada.
Trata-se
de um ofício, que, nessa narrativa está sempre presente, uma vez que
muitas mulheres ali se estabeleceram servindo de deleite aos tropeiros de
passagem. Aos poucos, elas foram se abrigando no local que era apenas um
lugar de pernoite, mais tarde transformado na cidade de Irisópolis,
acompanhando desde o início o progresso da localidade. Para chegar no status
de cidade, muitos acontecimentos ocorreram, sendo presenciados pelos seus
habitantes, principalmente, pelas
mulheres-damas. Essas estiveram à frente de acontecimentos
sempre catastróficos para o local, como: o assalto a ‘‘bodega’’
do turco Fadul,
a enchente, que dizimou a localidade e a chegada da peste negra que se
abateu sobre a população. No entanto, as alegrias também se fizeram
presentes, incrementadas pela vida daquelas mulheres, transbordando para
todos que ali moravam. A festa de São João e o reisado ficaram marcados
na lembrança dos moradores do lugar, que foi definido por dois freires da
Santa Missão como um antro de pecaminosidade.
A
chamada cidade de Irisópolis tem suas origens contra os fundamentos
Este
vale, desprezível aos olhos da classe dominante local, surpreendeu a
todos devido
Assim,
o narrador desprovido de preocupação com a linearidade temporal vai
contando diversos ‘‘causos’’ que envolvem jagunços, tropeiros e
prostitutas, mas que têm como pano de fundo a história de Irisópolis.
Essas últimas ganham destaque na narrativa, uma vez que desempenham papel
central, para os acontecimentos, atrelados à construção de uma
identidade diferenciada, se comparada
aos modelos sociais vigentes até então.
2
– A História das Excluídas
A prostituição é uma das profissões mais
antigas e o estereótipo reservado às
profissionais do sexo, foi criado e estabilizado pelo poder patriarcal.
Tanto que em um período remoto, quando surgiram as primeiras prostitutas,
este estigma não existia, uma vez que elas viviam em um contexto
matriarcal.
De
acordo com a pesquisadora Nick Roberts (1998), alguns estudos recentes de
pré-história e de antropologia confirmaram que a cultura da Idade da
Pedra vivia sob o matriarcado. A mulher tinha um papel fundamental não só
na economia, ao coletar 65 a 80 por cento do alimento da comunidade, mas
também na perpetuação da espécie; uma vez que as crianças brotavam de
suas entranhas, soando de forma mágica aos homens da época, que eram
desprovidos de consciência de sua participação na procriação.
Ignorantes de seu papel na reprodução, estes não tinham obsessão de
posse pela sua prole, o que nos confirma que a unidade básica da vida
social era matrifocal, ou seja, centralizada nas mães e em seus filhos.
A
importância feminina não ficava somente restrita ao econômico ou ao
social, mas também alcançava o religisioso. Existia um culto à grande
deusa que, de acordo com a crença da época era a criadora, preservadora
e destruidora da vida. As mulheres eram consideradas encarnação terrena
da deusa e por meio das sacerdotisas xamânicas formava-se um elo entre a
comunidade e a divindade. Esta ligação com o sagrado era proporcionada
por meio do sexo, que ocorria de forma grupal liderado pelas sacerdotisas,
também consideradas sagradas. Ainda segundo Roberts, na mesma obra citada
acima, estas são consideradas as primeiras prostitutas da história, que
estavam longe de ser estigmatizadas como são hoje.
Os homens, conscientes de seu papel na
reprodução, passaram a sentir necessidade de posse pelos filhos e, aos
poucos, os próprios governantes começaram a impor os deuses masculinos,
subvertendo a grande deusa. Em pouco tempo, esta transferência de poder
levou à expulsão das sacerdotisas do templo. Essas vinham sofrendo
discriminação, na medida em que a figura da esposa começava a se
consolidar visto trazer maior segurança ao genitor de que os filhos lhe
pertenciam, despontando-se a divisão entre mulheres
esposas e prostitutas. Segundo Nick Roberts, em 2.000 a.c já
existiam leis consolidando esta segregação e em alguns textos antigos
podemos perceber tal dissociação:
Em
outro texto sumeriano, um pai aconselha seu filho a não se casar com uma
prostituta do templo ou tornar uma delas a dona da sua casa, pois ‘‘além
de estar acostumada a aceitar outros homens, ela seria uma esposa desagradável
e intratável. Já começava a se ampliar a lacuna entre as
‘‘boas’’¾
dóceis e obedientes ¾
esposas e as ‘‘más’’¾
sexualmente autônomas ¾
prostitutas. (Roberts, 1998: 27)
Desta
forma, percebemos que a marginalização foi uma construção alicerçada
nos interesses androcêntricos no percorrer da história. Tanto que na própria
obra Tocaia Grande: a face obscura,
escrita em pleno século XX, percebemos ainda certa semelhança com as
descrições das prostitutas em textos de 4.000 anos atrás. Em uma breve
análise deste romance, com um olhar sobre as meretrizes, temos um fato
que não pode ser rechaçado: o comportamento feminino de entregar o seu
corpo, um patrimônio privado, a serviço do patriarcalismo.
3
– A Construção de Identidade Sob a Óptica Amadiana
De
acordo com Stuart Hall (2004), a identidade é formada e transformada
imersa em um sistema cultural, sendo definida historicamente, por isso
ainda encontramos na obra do escritor baiano as prostitutas dotadas de um
estereótipo de mulher ‘‘condenada’’:
Quem
não tem entendimento não deve escolher ofício de puta, que não é ofício
singelo, é bem mais dificultoso. Ela pensa que basta catar piolho,
arreganhar os dentes se rindo, botar cheiro nas partes, tá muito errada.
Mulher da vida é iguala freira: quando entra pro convento, larga tudo.
Pai e mãe, irmã e irmão, o nome verdadeiro e o direito de emprenhar e
de parir. Só que freira vira santa e vai pro céu sentar na mão de Deus
e a gente não passa nunca de puta, condenada sem salvação.(AMADO, p.
198)
Por
outro lado, esta identidade que não é definida biologicamente, mas pelo
contexto em que o sujeito se encontra inserido, assume uma multiplicidade,
deixando de ser algo completo e unificado, de acordo com Hall:
O
sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades
que não são unificadas ao redor de um ‘‘eu’’ coerente. Dentro de
nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções,
de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente
deslocadas. (2004: 13)
Tendo
em vista essas diversas ‘‘posições do sujeito’’, ao mesmo tempo
em que as personagens aqui analisadas transitam com o estigma de mulher
marginalizada, conseguem no interior de suas representações identitárias
transparecer a sua centralidade na obra. O próprio escritor se propõe em
sua narrativa a contemplar não mais os coronéis ou a elite sul-baiana, e
sim o povo; ele tenta endossar o discurso dos vencidos se auto-intitulando
porta-voz destes, até mesmo antes de começar a narrativa: Digo
não quando dizem sim em coro uníssono. Quero descobrir e revelar a face
obscura, aquela que foi varrida dos compêndios de História por infame e
degradante.(Amado, p. 15)
Nesse
sentido, o autor já parte declaradamente a uma empreitada diferenciada de
outras obras ao contar a formação do “arruado” chamado Tocaia
Grande. Este consegue deixar bastante clara esta distinção, uma vez que
os habitantes do lugarejo são imigrantes, prostitutas e trabalhadores
rurais, deixando de lado em seu discurso as famílias enriquecidas pelo
cacau.
Podemos
dizer que com esta política de “reestruturação”, Amado dá voz não
só aos oprimidos em posição social, mas também às mulheres. Tornam-se
estas detentoras de certo destaque, ganhando notoriedade, principalmente,
na ação formadora de Tocaia Grande, que mais tarde vem a se chamar Irisópolis.
No
romance, quando se menciona o lugarejo, é difícil dissociá-lo da figura
das ‘‘raparigas’’. Estas foram as primeiras moradoras que se
deslocaram de outros lugares em busca de tropeiros que transitavam por
ali, servindo de forte atrativo para acomodação de diversos
trabalhadores rurais. No trecho abaixo, temos a chegada da primeira
habitante:
...
assistiu a chegada da primeira mulher-dama, Jacinta, mais conhecida por
Coroca por ser de maior. A idade já não lhe permitia buscar freguesia de
roça em roça; pousou ali, na expectativa dos tropeiros cada vez mais
numerosos pois Tocaia Grande se tornara ponto de pernoite muito
concorrido.(idem, p.44)
Além
disso, elas eram as melhores compradoras do turco Fadul, trazendo também
movimento econômico para o lugar:
A
freguesia de fadul era vasta e variada: fazendeiros, as esposas, os
filhos, gente de dinheiro e de prosápia: alugados, trabalhadores nas roças,
quase sem vintém: jagunços, com suas amásias, arrotando lambanças;
raparigas, os melhores clientes, os que mais compravam (idem, p.38).
Além
destes indícios que confirmam a sua relevância na região, a própria
manifestação polifônica que a obra amadiana evidencia, permite-nos
perceber a auto-afirmação das personagens. Coroca, por exemplo, mesmo
condicionada em sua marginalização ao olhar do ‘‘outro’’, se
auto-afirma diante do filho de um importante coronel da região:
-
Tu ainda está viva,
Coroca? E ainda fornicando, velha desgraçada? ¾
Todos ali eram servos seus.
Coroca
não era serva de ninguém e fornicando só podia significar coisa ruim. A
velha deu o troco:
-
Tu agora fala língua de
doutor que a gente não entende. Dantes tu era um menino, vinha deitar na
minha cama. Quem foi que lhe ensinou o que tu sabe de mulher, não foi
essa velha desgraçada? .(idem,
p.108)
Percebemos
um dispositivo discursivo desprovido de subserviência que traz à tona
uma representação de identidade dotada de alteridade, uma vez que anula
as diferenças de papéis sociais ocupadas pelo advogado e pela
prostituta. Tanto Coroca, quanto suas companheiras de trabalho, que
habitam o local, muitas vezes, tomam um comportamento que foge aos
contratos sociais. No fragmento abaixo, as operárias do sexo, resolvem
‘‘tirar uma folga’’ na noite de forró:
Juntaram-se
todas elas sem exceção para enfrentar os tangerinos, recusar o ditame
imposto: se não tivessem o direito de fechar o balaio quando bem lhes
aprouvesse, se não fossem donas do próprio xibiu que lhes restaria na
vida miserável? Todas as que na ocasião exerciam o ofício em Tocaia
Grande: Dalila, Epifânia, Bernarda, Zuleica, Margarida Cotó, Marieta
Quinze Arrobas, Cotinha, Dorita, Teté e Silvia Pernambuco, desgranhadas,
bêbadas, solidárias. Faltou na relação o nome de Jacinta Coroca, não
por esquecimento e sim por apreço e consideração: sozinha, valia mais
que todas as outras reunidas (idem,
p.184).
Diante
desta ação coletiva, podemos constatar uma autonomia que não é
restrita a uma ou a duas prostitutas, mas que engloba toda a classe
trabalhadora que habita o lugarejo, quando juntas, decidem, pelo menos, àquela
noite, não prestar seus serviços. Neste momento,
é posto em xeque a figura da prostituta que, por dinheiro, fica à
disposição dos caprichos masculinos.
4
– Considerações Finais
E
assim a identidade das profissionais do sexo é construída em Tocaia
Grande: a face obscura, chegando em alguns momentos, à dessacralização
da imagem, construída no decorrer da História. Percebemos que, mesmo
diante de uma identidade de prostituta imersa em um sistema cultural, as
meretrizes desta obra são tomadas pelo autor sob uma outra óptica. Elas não são consideradas sagradas como as sacerdotisas dos
antigos templos, mas também não carregam o estereótipo de mulheres
excluídas pela profissão, já que, de alguma forma, são detentoras de
certa autonomia.
O
autor, ao se propor a contar a história dos excluídos, faz uma
representação feminina diferenciada quando ameniza as exclusões sociais
que as meretrizes normalmente sofrem na sociedade, através dessa
autonomia que elas possuem no lugarejo. Apesar de se sujeitarem a servir
sexualmente os tropeiros e a outros trabalhadores da redondeza, tinham
seus momentos de prazer do sexo e da diversão, chegando a se negarem de
trabalhar quando lhe conviessem. Nesse sentido, percebemos um sujeito de
identidade múltipla, em construção, que transita pela obra com marcas
influentes do patriarcalismo, mas é detentor de voz que rompe as imposições
androcêntricas.