Do
terror ao entretenimento:
a
evolução da figura do Diabo na sociedade pós-moderna
Marcos
Renato Holtz de Almeida
Resumo:
O artigo aborda as diferentes faces e
fases destinadas à representação da figura do Diabo pela arte
através do devir sócio-histórico-cultural da sociedade
ocidental na modernidade. A produção artística de bens simbólicos
sobre o Diabo adquiriu diversos contornos desde o ocaso da Idade Média
e, mediante o devir histórico, vivenciou sua transformação e
reprodução em mercadoria no século XX. Tomando por base esse
cenário, por meio da ação da Indústria Cultural, o imaginário
existente sobre o Diabo passou a ser utilizado pela indústria do
entretenimento e pela sociedade de consumo como mercadoria capaz
de satisfazer os gostos das sociedades e das culturas pós-modernas.
Palavras-chave:
Indústria Cultural; Diabo; Arte.
Abstract:
The article aboard the different
faces and phases destined to the representation of the figure of
Devil by art through the social, historical and cultural turn out
of the western society in the modernity. The artistic production
of symbolic goods about Devil acquired many contours since the
dusk of the Middle Ages and, through the historical turn out,
lived your transformation and reproduction in commodity in the
XXth century. Based in this scenario, by means of the action of
the Industry of Culture, the imaginary existent about Devil passed
to be utilized by the industry of entertainment and by the society
of consumption as commodity able to satisfy the liking of the
society and culture post-moderns.
Key words: Industry of Culture;
Devil; Art. |
Introdução:
Com
o surgimento e ulterior desenvolvimento das sociedades de consumo do século
XX, aliado a crescente presença da Indústria Cultural no campo das
produções culturais, os antigos mitos, lendas, histórias populares,
entre outras manifestações culturais, tornaram-se elementos passíveis
de serem apropriados e transformados em mercadorias cuja finalidade não
era a de manter viva as antigas lendas e saberes, e sim de torná-las
aptas a serem consumidas em larga escala, porém, desprovidas de seu
significado original e reduzidas a produtos fragmentados, tanto na
origem quanto à finalidade.
O
mito do Diabo cristão passou por esse processo. Durante o devir histórico
ele experimentou sua sistematização e unificação por meio dos teólogos
dos séculos XII-XIII adquirindo, assim, suas características que o
marcaram em toda a época moderna, vivenciou o auge na sociedade européia
nos séculos XIV-XVI através dos artistas renascentistas, foi
enfrentado pela luz da razão e, conseqüentemente, enfraquecido pelos
filósofos e cientistas da época do Iluminismo nos séculos XVII-XVIII,
resgatado pelos poetas e escritores românticos dos séculos XVIII-XIX
e, finalmente, apropriado, distorcido e fragmentado pela Indústria
Cultural no século XX.
A
partir das produções artísticas do período citado, o mito do Diabo
mostrou características de descontinuidade em sua representação,
reflexo da visão que a evolução da sociedade européia e ocidental
fazia dele. Se em dados momentos o Diabo é figura terrível e temida
nos afrescos das igrejas e nas telas dos pintores renascentistas, em
outros momentos ele é submetido a ironias e aproximado à mentalidade
dos burgueses na era romântica, tornando-se reflexo de uma sociedade
contrária às ideologias da Idade Média e do Antigo Regime e, por último,
no século XX o Diabo é encontrado nas telas dos cinemas, nos jogos de
videogame, na publicidade, nas letras das músicas de Heavy Metal,
na Internet e nas histórias em quadrinhos, evidenciando o desapego
ideológico de sua figura e sua banalização enquanto mercadoria para
as sociedades de consumo.
Portanto,
as artes evidenciam a evolução que o mito do Diabo sofreu com o devir
histórico e suas conseqüentes metamorfoses sofridas no campo das
ideologias sagradas e profanas. Tendo, provavelmente, a Indústria
Cultural desferido o golpe final que tornou o mito do Diabo um mito
destinado a ser objeto de consumo, um mito a serviço do entretenimento
nas sociedades pós-modernas.
*
*
*
Figura
emblemática presente no imaginário popular europeu devido à ascensão
do cristianismo à religião dominante, o Diabo – personificação do
Mal – recebeu diversas definições que o moldaram através dos séculos.
Ludibriável, temido e apreciado, ele assumiu, conforme o veio cultural
de cada época, seus adjetivos e contornos, porém, sempre esteve
presente no seio da sociedade ocidental, contribuindo para o avanço do
ocidente, se adaptando as suas transformações e dialogando com a
mentalidade cultural de cada época.
Figura
pouco discutida na Idade Média, limitada a discussão teológica a
alguns concílios, aos monastérios e à elite laica cristã, não havia
um consenso sobre quem ou o que era o Diabo.
Satanás tinha assim saído dos
quatro primeiros séculos do cristianismo com um singular estatuto: ele
existia efectivamente, mas não se sabia verdadeiramente quem ele era
nem por que é que tinha nascido. Em termos filosóficos, poder-se-ia
assim concluir que a sua existência tinha precedido a sua essência.
Muitas autoridades tinham cada uma a sua idéia acerca disso, mas ele não
existia de comum acordo; em suma, não havia teoria do Diabo. (MESSADIÉ,
2001, p. 345).
Valendo-se
da indefinição da Igreja acerca da origem do Diabo, grande parte do
imaginário popular existente enquadrava-o como ser inferior ao homem e
objeto de escárnio e zombaria, podendo ser facilmente vencido. O imaginário
relativo ao Diabo durante a baixa Idade Média enriqueceu-se através
das lendas transmitidas oralmente ou de forma escrita, mas especialmente
pelas peças teatrais de apelo popular. Tais encenações permitiram um
vasto conteúdo a ser desenvolvido mais amiúde por outros artistas, os
quais, ao entrarem em contato com a estética teatral, contribuíram
para a evolução da representação do Diabo na arte.
A ligação mais íntima entre
o Diabo da arte e o Diabo da literatura é o demônio do teatro. A
elaborada literatura de visão sobre o inferno influenciou as artes de
representação tanto quanto Dante, e algumas pinturas são virtualmente
ilustrações de tais visões. Arte e teatro influenciam-se pelo menos
no fim do século XII, quando o teatro vernáculo começou a ser
popular. A representação do Diabo no teatro foi derivada de impressões
visuais e literárias, e em troca artistas que tinham visto produções
de teatro modificaram a própria visão deles. O pequeno e preto
diabinho que não pôde ser representado facilmente no teatro declinou
no final da Idade Média. O desejo de impressionar as audiências com
fantasias grotescas pode ter encorajado o desenvolvimento do grotesco na
arte, fantasias de animais com chifres, rabos, presa, casco rachado e
asas; fantasias de monstro, meio-animal e meio-humano; e fantasias com
faces nas nádegas, barriga ou joelhos. Máscaras, luvas com garras e
dispositivos para projetar fumaça pela face do demônio também eram
usados. (RUSSELL, 2003, p. 245-6).
No
entanto, a discussão sobre o Diabo e seu papel mudou nos séculos
seguintes. No outono da Idade Média tornou-se forte objeto de acirrados
debates teológicos a partir do século XII-XIII quando a unificação
das idéias sobre as capacidades e características do Diabo e de seus
auxiliares, os demônios, revelou-se necessária à Igreja.
Dava-se, desse modo, o desenvolvimento de uma obsessão diabólica
com o objetivo de identificar os inimigos da Igreja.
Pode-se datar do fim do século XII,
o momento em que, devido sobretudo à acentuação das ameaças heréticas,
se passa de um estado de relativo equilíbrio na matéria a uma
acentuada preocupação pela ação diabólica. A amplitude das ameaças
com que se acha confrontada a Igreja, com os Bogomilos, os Valdenses e
os Cátaros, sem esquecer a pressão turca e a presença dos judeus,
explica em parte a atenção obsessiva que é dada ao Diabo. Como muito
bem viu Jean Delumeau, instala-se na cristandade um medo difuso que
ajuda a criar a idéia de que está em curso um ataque concertado contra
o cristianismo, um ataque conduzido por uma potência sobrenatural, pelo
inimigo, o Diabo. (MINOIS, 2003, p. 68).
A
partir do século XII e seguintes, devido às transformações
engendradas pela sociedade européia no campo da política e da
economia, as quais confluíram para uma significativa evolução das
instituições e devido também à necessidade européia de empreender
uma maior coerência religiosa e refletindo os problemas sociais da época,
o Diabo passou a assumir um papel importante na formação do imaginário
ocidental através das imagens sobre o Juízo Final e o Inferno.
Concomitantemente,
a arte foi um dos principais instrumentos de repressão política
encontrada pela classe dirigente, isto é, a Igreja e os representantes
do Estado – os reis. Ambos exerciam influência sobre as mentalidades
e se utilizavam tanto do poder espiritual como do temporal para
comunicar o poder do Diabo – “príncipe deste mundo” – ao povo
no final da Idade Média.
A
arte foi a ferramenta escolhida tanto por sua capacidade de inserir-se
no imaginário através de imagens, as quais denotam identidade ao
observador, como pela falta de uma população letrada que pudesse ler e
compreender as escrituras sagradas. Desse modo, no outono da Idade Média
e, com grande potencial, na Renascença, a arte tornou-se o meio de
expressão, divulgação e difusão dos poderes nefastos do Maligno,
contribuindo para moldar o imaginário popular sobre os terríveis
perigos de uma vida que fosse contrária aos ensinamentos da Igreja e de
seu código moral e, desse modo, do contexto cultural da época, além
de ser uma ferramenta útil de coerção individual e social.
O poder real teve então necessidade
do Diabo para aterrorizar os seus inimigos e justificar suas cobranças,
e o Papa ofereceu-lhe então suas bulas para o satisfazer. A nível
elevado onde se tomam as decisões, o Diabo é uma ficção de
propaganda que não serve senão para justificar os desígnios
tenebrosos ou francamente crápulas dos príncipes. Se alguma vez reis
ou papa tivessem acreditado verdadeiramente no Diabo, ele teria, para
começar, ficado assustado pela sua própria infâmia. O Diabo era um
espantalho para uso da plebe e, paradoxo amargo, a ficção deste Príncipe
do Mundo servia, com efeito, para conquistar o mundo. Como na Mesopotâmia
e no Irã, a religião era um instrumento do poder político. O Papado,
há que recordá-lo, era então também um poder temporal.
Ora, este poder é exercido tanto
mais facilmente quando o povo é mantido num estado de ignorância,
logo, de superstição e de irracionalidade. (MESSADIÉ, 2001, p. 351).
No
entanto, em toda a Idade Média a produção de bens simbólicos sobre o
Diabo não foi muito grande e não teve a mesma importância que a produção
renascentista, pois a unificação da concepção teológica sobre as
características do Diabo só veio a ocorrer, como já foi citado, no século
XIII. O Diabo ainda não tinha alcançado seu domínio hegemônico sobre
o imaginário popular, porque
até o século XII o mundo era
demasiado encantado para permitir a Lúcifer ocupar todo espaço do
medo, do temor ou da angústia. O pobre diabo tinha concorrentes demais
para reinar absoluto, ainda mais porque o teatro do século XII fazia
dele uma imagem de paródia ou francamente cômica, retomando o veio
popular referente ao Mal ludibriado. (MUCHEMBLED, 2001, p. 31).
Através
do desenvolvimento de uma pedagogia do medo, isto é, de uma orientação
dos dirigentes da Igreja aos sacerdotes para endurecerem o discurso e o
controle moral, e aos artistas para que estes criassem obras de arte que
pudessem exprimir o incrível poder do Maligno e o lamentável destino
das almas que no Inferno chegassem, a Igreja se fortalecia. A pedagogia
do medo se referiu à valoração e ao recorrente uso que se deu às
representações da figura do Diabo através das artes plásticas
(pintura, escultura, arquitetura) na inculcação (re)afirmação e na
(re)construção da mentalidade e do imaginário cristão voltadas a
demonstrar a finitude do corpo físico e a eternidade da alma, temas
caros à época. A danação e a salvação eram vistas como próximas,
realizando-se na morte. A pedagogia do medo foi a política cultural
escolhida pelos governantes para impor sua ideologia e ajudá-los a se
perpetuar no poder.
O
auge do poderio e da presença do Diabo no imaginário europeu foi
atingido com a crise do Feudalismo e com o advento da Renascença (sécs.
XIV-XVI). Durante este período os europeus experimentaram um aumento da
obsessão diabólica, em particular devido ao medo das inconstâncias
sociais.
a Peste Negra que marca em 1348 o
retorno ofensivo das epidemias mortais, as sublevações que se revezam
de um país a outro do século XIV ao XVIII, a interminável Guerra dos
Cem Anos, o avanço turco inquietante a partir das derrotas de Kossovo
(1389) e Nicópolis (1396) e alarmante no século XVI, o Grande Cisma
– “escândalo dos escândalos” –, as cruzadas contra os hussitas,
a decadência moral do papado antes do reerguimento operado pela Reforma
católica, a secessão protestante com todas as suas seqüelas –
excomunhões recíprocas, massacres e guerras. Atingidos por essas
coincidências trágicas ou pela incessante sucessão de calamidades, os
homens da época procuraram-lhes causas globais e integraram-nas em uma
cadeia explicativa. (DELUMEAU, 1989, p. 205).
A
hegemonia satânica partiu da concepção da própria igreja, pois ela
tinha por objetivo desenvolver uma mentalidade na qual o mal estava
presente no âmago da humanidade e que o Diabo espreitava os homens e
aguardava um pequeno deslize de sua fé para que fosse possível corrompê-los.
Com essa política cultural – a pedagogia do medo – a igreja
esperava cooptar um maior número de fiéis, pois era somente através
dela que os homens poderiam ser conduzidos à salvação e, por outro
lado, serem mantidos nas precárias condições sociais que lhes era
destinada, evitando através da repressão moral e inculcando o medo do
inferno e a ameaça do advento do juízo final, as insubordinações e
revoltas. Os medos escatológicos contribuíram para que o período
entre os séculos XIV-XVI fosse um período marcado pela efervescência
do imaginário sobre o Diabo, como podemos notar pela quantidade de
obras de arte que ilustram essa angústia sofrida pelos europeus.
Na
Renascença surgiram diversas obras de arte representativas do imaginário
existente relativo ao Diabo. Uma das principais características do
renascimento era a redescoberta e releitura do legado cultural da Antigüidade
e complexificando-o com as inovações do campo da técnica e
atualizando-o às transformações do momento histórico vivido, como o
surgimento da burguesia, a formação e o fortalecimento dos Estados-nação,
as grandes descobertas, a Reforma Protestante, etc. Desse modo, as políticas
culturais da Igreja Católica, aliadas às transformações sócio-culturais
do período da Renascença, foram responsáveis por influenciarem a alma
do artista e pela produção de bens simbólicos inovadores sobre o
Diabo.
De
acordo com as determinações dos dirigentes da Igreja Católica,
corroborada com as transformações sócio-culturais da época e mais a
percepção diferenciada de artistas como Dante Alighieri (1265-1321),
Giotto (1267-1337), os irmãos Limbourg (séc. XIV-XV), Bosch
(1450-1516), Signorelli (1450-1523), Michelangelo (1475-1564), Rafael
(1483-1520), Brueghel (1568-1625), John Milton (1608-1674), entre
outros, a produção de bens simbólicos sobre o Diabo no período da
Renascença contribuiu para uma reconfiguração do imaginário e
influenciou toda a humanidade a partir desse momento, cujos ecos ainda
podem ser percebidos até os dias de hoje.
Os
artistas, com efeito, procuraram retratar o Diabo de acordo com os
preceitos cristãos obtidos mediante a leitura das Escrituras.
Inspirados pelas narrativas bíblicas e pelos sermões dos padres,
aliados ao imaginário popular, manifestaram o arquétipo do Diabo
na arte tanto quanto pela figura do sedutor como pela
estereotipia do monstro.
O
primeiro (sedutor) seria o tentador do homem por meio da oferta do
prazer, refletindo os mandamentos da moral dos costumes imposta pela
Igreja, a qual devia-se negar o prazer, porque este levava à perdição
e afastava os homens de Deus, sendo, portanto, o prazer o domínio do
Diabo. O segundo (monstro) se referia ao Diabo como oponente de Deus,
bestializado segundo a imaginação humana.
(...) desde sempre, os artistas
hesitaram entre duas representações da figura diabólica. E, na
realidade, ora magnificaram um personagem sedutor, ora procuraram
rebaixar uma espécie de monstro horrendo.
Nos primeiros séculos [do VI ao IX],
a arte destacou, sobretudo, as origens angelicais de Satanás,
apresentado-o como um belo jovem nimbado e vestindo (sic!)
como um nobre (...).
No entanto, a partir do século XI,
por influências dos contos populares e das narrativas de origem monástica,
assim como por alguma iconografia oriental de monstros, o Diabo é
transformado numa criatura imunda. (MINOIS, 2003, p. 54).
Contudo,
os artistas necessitaram fazer um tremendo esforço intelectual para
conseguir dar um rosto ao Diabo, pois não havia um consenso entre a
elite cristã sobre sua aparência, daí o recorrente uso da iconografia
das mitologias pagãs para lhe dar feições:
Na hora de pintar o Diabo, os
artistas tinham enorme dificuldade. Não existia tradição literária
digna do nome e, o mais exasperante, não havia tradição pictórica
alguma. Nas catacumbas e nos sarcófagos não há Diabo. Essa
inexistência de tradição pictórica, combinada a fontes literárias
que confundiam o Diabo, Satã, Lúcifer e demônios, são razões
importantes para a ausência de uma imagem unificada do Diabo e da
iconografia irregular. Mas alguma coisa sempre é melhor do que nada. E
havia algo que o artista cristão podia tirar das fontes clássicas que
os comentários teológicos corroboravam – Pã. (LINK, 1998, p. 53).
A
iconografia destinada a representar o Diabo na arte se alimentou das
diversas manifestações culturais que os europeus mantiveram contato.
(...) A encarnação do Mal apareceu
sob as representações mais variadas: serpente, sapo, deuses e deusas
antigas, monstros, animais fabulosos... O tipo mais corrente fixou-se no
século XII: uma forma humana, o corpo veloso, as orelhas pontiagudas,
os pés bífidos, cornos e provida de uma longa cauda. As asas de
morcego, com as quais Giotto, Bosch ou Botticelli vestiram os seus demônios,
provêm das pinturas chinesas no estilo das ondas de Li Long Mien. Os
cornos e as unhas de Satanás revelam uma origem mediterrânea: Pan,
Dionísio e as Sátiras possuíam estes atributos, eles próprios
iguais à de certas figuras sagradas do Paleolítico... Uma verdadeira
tradição da forma demoníaca aproxima-se assim dos gênios do panteão
assírio-babilônio das gárgulas das nossas catedrais e das máscaras
Khmers das figuras grotescas de Grünewald e de Callot. (NÉRET, 2003,
p. 13).
Após
esse período, considerado o auge do Diabo na sociedade européia,
apareceram os primeiros sinais de seu suposto fim. Do mesmo modo que o
Diabo assumia uma posição destacada na influência das práticas
cotidianas no período da Renascença, surgia o prelúdio do pensamento
racionalista através dos tratados filosóficos de pensadores como F.
Bacon (1561-1623) e R. Descartes (1596-1650), os quais lançaram um dos
aspectos fundamentais da Era moderna ao difundirem as idéias iniciais
de toda filosofia moderna – o racionalismo e o empirismo – cuja
contribuição para o nascimento da ciência moderna na Europa foi
primordial e impulsionou a dessacralização da natureza e revolucionou
a relação do homem com o mundo material, implicando em um novo modo de
lidar com o mundo.
Se
através do início da Era da Moderna o Diabo começa a perder espaço
para a razão e para o pensamento crítico, no campo do imaginário ele
ainda está presente:
O Imaginário ocidental não expulsou
brutalmente o diabo em meados do século XVII, mesmo que este momento
possa marcar uma real cisão intelectual entre os racionalistas e os
pensadores tradicionais, empenhados em manter para a teologia sua posição
dominadora no campo das idéias. Na verdade, Satã foi perdendo
lentamente, insensivelmente, sua soberba em uma Europa em profunda mutação.
Sua imagem, até então concentrada no discurso de luta das Igrejas em
acirrada concorrência e imposta ao conjunto das populações, e do cimo
aos primeiros degraus da escala social, esfacelou-se em múltiplos
fragmentos. O fim das graves crises religiosas, a ascensão de Estados
nacionais rivais, a picada aberta pela ciência, e logo a seguir o fluxo
das novas idéias que iriam ser qualificadas de Luzes, ou, para alguns,
o gosto por uma dolce vita, compuseram a trama profundamente
movediça da mudança. As sociedades do Velho Continente começaram a
afastar-se do medo de um demônio aterrorizante e de um inferno
escabroso. Não de maneira unânime, pois este imaginário continuou a
ser defendido, mantido e difundido até os nossos dias, em setores mais
ou menos amplos da sociedade, em função da vitalidade de seus partidários
e da permeabilidade dos ambientes. (MUCHEMBLED, 2001, 191).
Em
virtude do advento do Iluminismo como fenômeno racionalizador e ao
processo de secularização – que compreende a deslegitimação do
poder da esfera eclesiástica para a legitimação do poder da esfera
civil e laica, ambos processos de uma revolução mental que culminou no
desencantamento do universo, a
sociedade européia dos séculos XVIII-XIX não mais compartilhava do
medo do Diabo tal como ele foi apresentado nos séculos anteriores ao
Iluminismo, logo, tanto o medo do Diabo em si, como o temor do advento
do Juízo Final e a perseguição às bruxas entraram em declínio,
passando a serem tratadas pelo espírito iluminista como superstições
fundamentadas no senso comum.
Desse
modo, devido às transformações culturais resultantes desses fenômenos,
a arte sobre o Diabo e a noção do homem sobre a personificação do
mal mudam de foco.
Entre o século
XVI e o século XVIII, o discurso sobre o Diabo passa por uma mutação
radical. Deixa de ser uma obsessão religiosa e, no período
imediatamente anterior ao romantismo, transforma-se num grande mito
literário. A substituição de Satanás por Mefistófeles não é
fundamentalmente um processo de natureza religiosa, mas de natureza simbólica.
Não se trata, portanto, de uma passagem da crença à descrença, mas
uma transição entre mitos. O Diabo, com efeito, laiciza-se, o seu
papel perpetua-se, mas com inversão de sinal. (MINOIS, 2003, p. 110).
O
Diabo passa a ser reflexo do próprio homem: “O diabo somos nós!”.
Ele saiu dos afrescos das igrejas para entrar no universo da literatura
trágica, cuja sobrevivência se dá através da ficção. Uma vez que a
ficção enquadra-o ao olhar mais humano, em que o mal está contido no
próprio homem. Fragmenta-se assim o poder do Maléfico e a Igreja já não
mais possui grandes poderes para continuar inculcando imagens
repressivas no imaginário popular.
Em suma, a
visão do Diabo diversifica-se, nos séculos XVII e XVIII. Ficção
ultrapassada para os materialistas, mito literário eficaz para os pré-românticos,
sedutor e amante dos prazeres para os epicuristas, revoltado indomável
para muitos outros, a sua figura corre o risco de se dissolver num ser
proteiforme. Todas essas visões não podem deixar de ser encaradas, por
parte da Igreja, como uma evolução perigosa, a exigir uma resposta
adequada. No entanto, apesar de todas as tentativas para impor a sua visão
da figura diabólica, tarefa a que a Igreja se dedicou, durante todo o século
XIX, as metamorfoses de Satanás revelaram-se imparáveis. (MINOIS,
2003, p. 114).
A
secularização do Diabo ocorre como reflexo dos movimentos científico-filosóficos
representantes de uma era que já não mais se encontrava sob o jugo das
autoridades religiosas. Mediante o espírito artístico, em especial o
literário o Diabo mostrava seus novos contornos para o homem moderno.
Ao
se ver livre da tutela eclesiástica, os homens do século XVIII-XIX vão
encontrar no Diabo a liberdade de expressão do espírito que outrora se
encontrava reprimida. O Diabo passará a representar o espírito da época,
será visto como “um Prometeu, o libertador do homem, o promotor da ciência
e do progresso” (Minois, 2003, 118). Portanto,
O
Romantismo transformará Satã no símbolo do espírito livre, da vida
alegre, não contra uma lei moral, mas segundo uma lei natural, contrária
à aversão por este mundo pregada pela Igreja. Satanás significa
liberdade, progresso, ciência, vida. Tornar-se-á moda a identificação
com o Demônio, assim como procurar refletir no semblante o olhar, o
riso, a zombaria impressas nas feições tradicionais do Diabo. (...) O
Diabo passa a representar a rebelião contra a fé e a moral
tradicional, representando a revolta do homem, mas com a aceitação do
sofrimento porque este é uma fonte purificadora do espírito, uma
nobreza moral, da qual só pode surgir o bem da humanidade. E o demoníaco
torna-se o símbolo do Romantismo: demoníaco como paixão, como terror
do desconhecido, como descoberta do lado irracional existente no homem:
a explosão da imaginação contra obstáculos excessivos da consciência
e das leis. (NOGUEIRA, 2000, p. 104-5).
Por
meio das obras de escritores românticos como Jacques Cazzote
(1720-1792),
Goethe
(1749-1832), Willian Blake (1757-1827),
Lord Byron (1788-1824), Honoré de Balzac (1799-1850), Victor Hugo
(1802-1885), além de Dostoiévski (1821-1881) entre outros, e Charles
Baudelaire (1821-1867) que pode ser representado como um elo entre o
romantismo e o modernismo, o imaginário literário romântico quebrou o
monopólio teológico da explicação demonológica para lançá-lo ao
mundo onírico do fantástico, do grotesco e do maravilhoso.
A
literatura romântica contribuiu fortemente para a reabilitação do
Diabo. Os escritores românticos, adeptos do ideal liberal, sentem-se
atraídos pela suprema liberdade do Príncipe das Trevas, pela sua
grandeza e pela sua altivez. É verdade que perdeu e que a sua derrota
foi absolutamente catastrófica, mas o romântico é um paladino das
causas perdidas, um revoltado contra os limites estreitos impostos à
condição humana. À imagem do Diabo, deseja libertar-se dos
condicionalismos sufocantes do espaço e do tempo. (MINOIS, 2003, 118).
Abre-se
aí espaço para o distanciamento entre o real e o imaginário,
resultando na ruptura da percepção, da coerção e da crença. Porém,
nunca efetivamente realizada, pois o medo do inexplicável encontra no
âmago humano abrigo e sustentação. Conseqüentemente, devido ao
Romantismo, o mito de Satã perde sua coerência com a fragmentação do
tema entre a elite culta. No entanto, para o populacho ele ainda
se encontra presente e opressivo no imaginário.
No
século XX complexifica-se a discussão a respeito da representação e
do papel do Diabo nas artes. Após a desmistificação perpetrada pelo
Iluminismo e pelo Romantismo nos séculos XVIII-XIX, banalizou-se a
figura do Diabo. Este fora afastado do circuito das grandes artes e dos
grandes espíritos, pois não condizia mais às aspirações da época.
Ao final
do século XIX, o Diabo mostrava sinais evidentes de envelhecimento,
primeiro porque sua existência física vinha sendo amplamente
desacreditada, e depois porque sua função como metáfora do mal era
considerada por muitos como ultrapassada. Assim, no início do século
XX, novas e mais abstratas explicações filosóficas e políticas para
os infortúnios mundanos já ocupavam um espaço muito mais amplo.
Entretanto, mesmo relegado ao esquecimento, o Diabo continuou exercendo
seu fascínio natural, pois embora os poetas, os artistas e os
escritores o tivessem posto de lado em favor de outras soluções para
os eternos dilemas da humanidade, a psique popular nunca deixou de tê-lo
como bode expiatório, sobretudo nos tempos mais difíceis. (STANFORD,
2003, p. 279-80).
No
século XX o Diabo encontrou espaço de expressão e de representação
no veio da Indústria Cultural, a qual apropriou-se de sua imagem e,
conhecendo o seu permanente significado no imaginário, moldou-o ao
grande público, vendeu-o como uma mercadoria apta a entreter uma
sociedade consumista dos mais variados bens simbólicos, sem se dar
conta de sua alienação perante o produto consumido:
Em um
universo cada vez mais marcado pelo hedonismo, a promoção do indivíduo
e a busca da felicidade, ou mesmo um prazer incessantemente renovado, o
diabo é muitas vezes consumido como algo positivo. Não só deixou de
existir como figura exterior aterrorizante, como nem sequer provoca mais
medo de si mesmo, o temor do demônio interno, aquele mesmo dos
psicanalistas. Como elemento publicitário, veio a tornar-se símbolo de
prazer ou bem-estar. É o que vem ocorrendo na França, após dois séculos
de desmistificação sob a influência do romantismo e da cultura da
igualdade. Ou, em geral nos países antes dominados pela religião católica,
em que se revaloriza o mito maléfico banalizando-o, integrando-o em um
vasto imaginário lúdico trazido pela literatura popular, a
publicidade, os filmes, as histórias em quadrinhos etc. (MUCHEMBLED,
2001, 288).
No
século XX o Diabo vive seu momento mais controverso. Objeto de consumo
pelos meios de entretenimento das sociedades pós-modernas, porém
presente no imaginário e ainda manifestamente símbolo do medo e do mal
interior a todo ser humano, o Diabo revela-se como o reflexo do espírito
de cada época. Nesse século a Indústria Cultural redescobre o Diabo.
Ele se encontra presente desde as telas dos cinemas – no
expressionismo alemão das décadas de 1920-30 e nas produções de
Hollywood a partir da década de 50 – às canções das bandas de Heavy Metal, na literatura comercial e no ciberespaço da
Internet, na televisão, nas campanhas publicitárias e nos jogos de
videogame. Conseqüentemente, torna-se evidente a recuperação da
figura do Diabo pelos interesses econômicos.
O Diabo é
tanto mais eficaz como agente publicitário quanto maior for a
folclorização da sua figura e esta acentuar a sua dimensão de
pau-mandado inofensivo. Em pano de fundo, invisíveis, como aranhas nos
seus buracos, os demônios do capitalismo estão sempre à espreita,
tais modernos satanases reinado sobre um mundo submetido à lei do
lucro. (MINOIS, 2003, p. 128).
Desse
modo, as descontinuidades de sua representação artística através da
modernidade, refletem as próprias faces e fases da história da
humanidade:
Nos tempos medievos, são muitas as
formas escolhidas para o mostrar. No entanto, a monstruosidade horrível
domina as descrições e a iconografia. É uma forma de representação.
Porque, enquanto espírito, o demônio não tem aspecto corpóreo,
sendo o homem, submergido na cultura e na mentalidade próprias de cada
época, quem o pinta com esta ou com aquelas cores. Ou seja, se o demônio,
em si, está além da História, a sua representação (pelo
discurso, pela afetividade, pela iconografia) é sempre produto da História...
Monstruoso ou atraente é sempre aparente a forma escolhida e momentâneo
o caráter adotado. De qualquer modo, de acordo com a mesma tradição.
O demônio – anjo caído – é criatura maravilhosa e
inteligente na vontade. (FONSECA, 2000, p. 8).
Portanto,
as descontinuidades da representação artística da figura do Diabo na
modernidade aliada aos novos esquemas econômicos e sócio-culturais
adquiridos pelo advento da pós-modernidade promoveram um novo e
diferenciado modo de se relacionar com a figura mítica do Diabo através
da arte.
Desse
modo, a consolidação do capitalismo pós-industrial a partir dos anos
60 nos EUA e nos países pertencentes à Europa ocidental, propiciou o
desenvolvimento de uma cultura do consumismo atrelada às aspirações
capitalistas da Indústria Cultural, as quais fomentaram novas
necessidades estéticas mediante a transformação da cultura em
mercadoria. (HARVEY, 1992; JAMESON, 1997).
Portanto,
através do desenvolvimento dos novos meios de comunicação tais como a
televisão (e em especial a publicidade que utiliza a figura do Diabo
como garoto-propaganda de diversos produtos), os videogames e a
Internet, além, também, das inovações técnicas no cinema e na
cultura pop, como as músicas de Heavy Metal, a literatura
popular e as histórias em quadrinhos, abriu-se um novo campo para que a
figura do Diabo, agora transformada em mercadoria, chegasse aos seus
consumidores. Portanto, fomos
levados a ele como consumidores, reflexo de uma era que:
conduziu
(...) a um deleite estético ou sensorial, e não mais ao medo, como nos
tempos do passado, quando ele explodia nas cabeças avivando a angústia
do fim último e o temor fisicamente sentido de um inferno chamejante,
fedorento, destinado a expiações eternas. (MUCHEMBLED, 2001, 343).
Conseqüentemente,
para compreendermos a evolução dessa figura dinâmica da sociedade
ocidental, faz-se necessário conhecer e analisar suas diversas mutações
no campo artístico da Era Moderna, as quais delineiam os traços da Era
Pós-Moderna, expondo melhor o lado sombrio do homem, que se ancora nas
descontinuidades de representação da personificação do mal – o
Diabo.
A
necessidade de compreendermos a permanência do Diabo na sociedade pós-moderna
reside no fato deste ter sido transformado numa mercadoria possível de
ser adquirida e utilizada nas sociedades que compartilham de uma cultura
do consumismo, com o objetivo de entreter seus consumidores. Deste modo,
insere-se a questão de compreendermos sociologicamente o papel da Indústria
Cultural, da Sociedade de Consumo e a Cultura de Massas como fatores
constitutivos e construtores da mentalidade, imaginário e ideologia do
homem e das sociedades pós-modernas no século XX e XXI.