VALDINEI GOMES GARCIA

Graduando em Filosofia na Universidade Estadual de Maringá (3º ano)

 

Kholstomér: uma reflexão da condição humana

Valdinei Gomes Garcia

 

Resumo:

Pela sua vasta obra, pelas suas idéias e por sua ação, o conde Tolstói movimentou como ninguém a sua época e deixou-nos um legado riquíssimo e profundo, não apenas na literatura, mas na história do pensamento humano também. Entre seus livros e contos, Kholstomér – A história de um cavalo[1] é um dos mais importantes, muito embora de extensão reduzida. Este artigo objetiva-se, portanto, a desenvolver uma reflexão a partir das idéias do autor contidas neste conto. É essencial, para lhe compreender a significação, analisá-lo, antes, colocado no interior da própria vida e obra do autor. Tentar-se-á, por último, invocar alguns dos aspectos mais fundamentais de sua crítica à sociedade de sua época, crítica esta que se estende a toda humanidade...

Palavras-chaves: Tolstói – literatura russa – crítica.

Abstract:

For it’s vast work, for it’s ideas and for it’s action, the count Tolstói moved as nobody his time and he left us a rich and deep legacy, not just in the literature, but also in the history of the human thought. Among his books and stories, Kholstomér – the story of a horse is one of the most important, althouger reduced extension. This article is aimed, therefore, to develop a reflection starting from the author's ideas contained in this story. It is essential, to understand it’s meaning, to analyze it, before, placed inside the own life and the author's work. It will be tried, last, to invoke some of the most fundamental aspects of his critic to the society of his time, this critic extends to all humanity…

Keywords: Tolstoi – rusian literature – critic.

A natureza é quem mais nos dá esse prazer supremo da vida, esse esquecimento de nossa própria pessoa insuportável.

L. N. Tolstoi

 

Liev Nikoláievitch Tolstói[1] nasceu em 1.828, nas dependências da propriedade familiar de Yássnaia Poliana, próxima de Tula, sendo filho de uma das mais altas famílias da aristocracia russa. No ano de 1.844 matriculou-se na Universidade de Kazan, onde não se destacou por especial aplicação. Por outro lado, quando mais maduro, inicia uma profunda leitura dos clássicos, e por essa influência impõe-se a um trabalho e disciplina. Já em 1851 o encontramos principiando a sua carreira de oficial, no exército do Cáucaso, onde, em contato com a natureza, se lhe perfila suas tendências para a observação e a auto-inspeção, que o leva a escrever as primeiras obras[2].

Liev Nikoláievitch TolstóiEm 1858 Tolstói mal chegava de retorno a Yássnaia Poliana, depois de ter dado baixa no exército em 1856, escreve Três Mortes. Neste conto, que merece aqui nossa atenção, constatamos a presença de um narrador exuberante e, ao mesmo tempo, rigoroso observador do mundo real, pois num clima de impressionante beleza poética, ditada exclusivamente pela natureza que o cerca, conta ele a história de três personagens, ou melhor, três mortes. Inicia o conto com a morte de uma senhora aristocrata, em seguida a de um mujique (cocheiro) e, por último, a de uma árvore. Três seres que nunca se conheceram, entre os quais nunca houve, sequer, um único contato, mas que se encontram estruturalmente ligados pelas linhas da narrativa, formando uma unicidade na qual se manifesta uma idéia de morte entendida na finitude de tudo o que é vivo. O tema da morte custou caro a Tolstói, durou por quase toda a sua existência, na qual não deixou de se lembrar um dia sequer, levando-o a afirmar, em carta, à sua tia a condessa Aleksandra T., que “(...) nenhum homem que tem a infância atrás de si deveria esquecer-se da morte por um só minuto, tanto mais quanto a sua espera constante não só não envenena a vida, mas lhe empresta firmeza e claridade”[3].

Instalado em sua propriedade, que mais lhe serviu de laboratório para o que viria a escrever, principia-se um contato direto com a vida do campesinato russo (sempre dura e servil), que o levará conseqüentemente a mudar de modo radical as suas antigas concepções sobre os camponeses, inaugurando caminho para a sua “futura utopia” acerca deste segmento social. Desta experiência, compreenderá Tolstói que o estatuto servil ao qual estão sujeitos os camponeses é um absurdo e algo que se aproxima da iniqüidade, deve, portanto, ser abolida de vez, isto porque não apenas motiva o ódio do próprio camponês ao senhor das terras, mas serve como justificativa a qualquer ato de vingança contra ele.

Este contato próximo com os camponeses, aliado a leituras anteriores de Rousseau e demais pensadores, lhe servirá para constituir as suas próprias concepções sociais. Porém, antes de chegar a Yássnaia Poliana, no início de 1857 o conde Tolstói sai da Rússia e passa cerca de meio ano na Europa. A vida “exuberante e burguesa” do Ocidente daquela época, mas repleta de todas as limitações e precariedades, irá permitir-lhe vasculhar a sério a realidade de seu país, a vida russa no fim daquele século, compreendendo inteiramente o sentido do capitalismo e sua invasão na vida de todo o homem. O seu regresso à Rússia e reencontro com sua realidade o deixam extremamente pessimista, levando-o precisamente a ponto de declarar que em seu país tudo é detestável, que em todas as partes prevalecem a desordem e a barbaridade patriarcal[4]. Contudo, se a viagem que fez ao Ocidente lhe permitiu constatar um capitalismo bastante desenvolvido, principalmente se comparado à situação servil a qual o seu país estava submetido, permitiu-lhe, simultaneamente e igualmente, perceber as contradições e as idéias nefastas que o capitalismo impunha até então, levando-o a não alimentar nenhuma ilusão em relação a ele. É, portanto, nesse ambiente que o conde russo escreverá, posteriormente, o conto Kholstomér, tendo já formada a sua concepção acerca da vida camponesa e do capitalismo.

O conto Kholstomér, A história de um cavalo pode ser considerado uma entre as narrativas mais perfeita, rigorosa e, ao mesmo tempo, estranha das obras do autor. Pois, se no caso excepcional de Dostoiévski, em Duas Narrativas fantásticas: O sonho de um homem ridículo temos um dos sonhos mais estranhos e fantásticos da história da literatura mundial, a possibilidade da transcendência de um homem para uma vida utópica em outro mundo. Em Kholstomér o que existe é o estranho binômio “homem-cavalo” incutido em duas histórias paralelas. A estranheza se dá justamente por possuir como característica a própria descrição de dois seres que gradualmente envelhecem e morrem, da forma mais triste possível, sem disfarces e rodeios.

Constatamos nesta narrativa a exuberante capacidade do autor para observar e descrever tudo o que está acontecendo ao seu redor, principalmente a natureza que o cerca, basta para tanto, lembrarmo-nos das linhas iniciais do conto, onde narra Tolstói: “O céu se abria cada vez mais alto, a aurora avançava na amplitude, o matiz de prata baça do orvalho começava a branquejar, o crescente ficava movediço, a floresta mais sonora, as pessoas levantavam-se, e na estrebaria senhorial mais e mais se ouviam o bufo, a algazarra na palha e o relincho estridente e raivoso dos cavalos...”[5]. No entanto, não é somente e através da rica e espetacular narrativa da natureza física que a obra se consagrou, deve-se considerar, também e sobretudo, a resposta dada por Tolstói à condição em que se encontrava o homem e a Rússia de seu tempo, principalmente no que tocava aos aspectos sócio-políticos e culturais.

Assim, iniciado em 1.860, um ano antes da reforma que “aboliu” o estatuto servil (feudal) e preparou as condições de que o capitalismo precisava para se instaurar e se desenvolver na Rússia, o conto trabalha com idéias e principalmente com questões como a propriedade privada e a posse. Decorrendo sobre as pessoas e os objetos, além da alienação e da própria sobrevivência da nobreza (a aristocracia decadente) na “nova sociedade” – que, por necessidade e pelo desprendimento a caracteriza –, a inviabilidade, conseqüentemente, da existência dessa classe naquele sentido anteriormente tradicional. Por outro lado, de que maneira pode esta situação histórico-social que traz consigo o capitalismo ser encarado no conto? E quais serão, porém, as perspectivas descritivas de que lançará mão o autor na tentativa de transpor a realidade social para a sua obra? No conto é necessário, acima de tudo, estar em profunda sintonia com a fala da personagem principal, o cavalo Kholstomér, pois é através dele que o enredo da história se desenvolve, desde o seu simples nascimento, triste, até sua morte, também triste, mas que se revela contrariar a vida, a decadência e morte infeliz de seu primeiro dono, que durante a vida toda só demonstrou a sua inexorável incapacidade para a realização das coisas mais banais.

A narrativa desenvolvida por Tolstói apresenta dois aspectos importantes, que saltam à vista do leitor. O primeiro, trata-se do profundo conhecimento e paixão que o autor nutria pelos cavalos, a ponto de Turguiêniev, após ter ouvido do próprio conde o enredo da história, expressar-se em risos: “(...) Liev Nikoláievitch, algum dia você foi cavalo!”[6]. Outro fato é a sensibilidade igualmente profunda que Tolstói possuía para captar e, até mesmo, antecipar elementos da vida e da história que se encontrava ainda em desenvolvimento.

O mérito maior do autor, na ordem da elaboração e escrita de Kholstomér, está ligado ao primeiro aspecto apontado no parágrafo acima, ou seja, à experiência direta que ele tinha com os cavalos. O sinal disso é, pois, os longos anos que o autor passou em cima do lombo de um cavalo. E neste convívio próximo é que parece residir o elemento que torna muito mais natural as comparações, freqüentes em seus livros, entre a vida humana e a vida dos cavalos. Kholstomér também demonstra a tentativa de Tolstói em introduzir elementos propriamente biográficos. Esse aspecto surge na obra devido às amarguras e os longos fracassos que o autor experienciou durante sua vida, sem deixar de mencionar que ele possuía a orgulhosa consciência da sua força e enfrentou a triste solidão em Yássnaia Poliana, mesmo que na presença dos camponeses. Tudo isto se torna evidente quando lemos sobre a vida triste e infeliz que levou Kholstomér. O autor teve, ainda, sérios desentendimentos com seus vizinhos nobres que o detestavam por vê-lo como um conde esquisito, que tomara partido das causas dos camponeses[7].

A história narrada por Tolstói é basicamente dedicada à vida do cavalo Kholstomér, restando, das quarenta e nove páginas do conto, apenas algumas nas quais ele descreverá a estúpida e insignificante trajetória do primeiro dono deste animal. Kholstomér é, para o autor, a história e a vida de um cavalo puro-sangue, porém malhado, motivo pelo qual seu dono manda castrá-lo, obviamente para que ele não viesse danificar a raça. Naturalmente, por ser malhado, ou seja, não ter desde o seu nascimento a cor característica dos “puro-sangue”, o pobre animal será alvo do desprezo e das brincadeiras maldosas dos outros cavalos, que o tratarão com indiferença e muitas vezes com crueldade. Escreve Tolstói: “(...) o motivo da crueldade dos cavalos devia-se também a um sentimento aristocrático, (...), o malhado tinha origem desconhecida (...)”, o que representa, na verdade, o movimento de um “sentimento aristocrático”, bem ao modo como o defendia a rica sociedade russa[8]. Assim, o autor mostrar-nos, com a história deste cavalo de raça nobre (puro-sangue), mas malhado, a própria situação em que se achava, até então, a nobreza russa (aristocracia), em seus últimos momentos de declínio.

O enredo desta história tenta, portanto, indicar, com a alegoria de um cavalo de raça nobre, puro-sangue e malhado, a vida da aristocracia russa nos finais dos anos sessenta. Pois, à medida que o capitalismo vai se infiltrando a fundo na vida russa, a nobreza, antes puro-sangue real (racial), econômico-social e cultural, inicia o seu processo de inserção, onde muitos dos seus representantes, tradicionais por linhagem, passarão a desenvolver posturas e atividades capitalistas. Inicia-se a mistura da arraigada e antiga tradição do ócio com “novas atividades”, até aquele momento incompatíveis com a condição da nobreza, bem como a mistura de sangue-azul com os outros sangues, cuja origem era de comerciantes e industriais. Como se fosse possível fazermos uma comparação com a derrocada da aristocracia e a ascendência da classe burguesa no Ocidente, por exemplo, na Itália, também do século XIX.

O personagem Sierpukhóvskoi, antigo membro da aristocracia e ex-dono do cavalo, é caracterizado por Tolstói como um indivíduo sem rumo e que durante a sua existência levara uma vida “estéril”, morrendo na ignomínia e mais profunda decadência. Configurando uma espécie de presságio do sombrio destino que se depararia a nobreza[9]. Desse modo, o autor serviu-se da alegoria do “puro-sangue malhado” e da decadência de Sierpukhóvskoi, antigo dono, para descrever e antecipar as vidas dos últimos aristocratas da Rússia.

Impossível esquecermos, historicamente, que o conto está vinculado à denúncia de uma “ideologia burguesa”, que naqueles momentos finais do “exuberante” século XIX, dominava as “relações” e a condição da vida humana. As idéias de posse e da propriedade intensificam-se naquele período. O interessante neste conto é que ele reflete, de modo muito direto, a estranha espécie de seres a que os cavalos estão ligados, os homens. São eles, com seus atos esquisitos, que acabam causando em Kholstomér um terrível estranhamento – “(...), mas, naquele momento, não houve jeito de entender o que significava me chamarem de propriedade de um homem (...)”[10]. Ele não consegue entender, por exemplo, o sentido da expressão “meu” ou “seu cavalo”. Para Kholstomér, a expressão “meu cavalo”, referindo-se a ele, reflete-lhe tão estranhamente quanto “minha terra” e “minha propriedade”[11].

Na medida em que Kholstomér vai refletindo sobre o conceito de posse, a crítica de Tolstói à ideologia burguesa contida no conto se intensifica, o que acaba por se ampliar a outros aspectos. O “cavalo” acaba entendendo o sentido que os homens oferecem àquelas “palavras confusas”, como exemplo, meu, minha, sua – “(...) mais tarde, depois que ampliei o círculo das minhas observações, convenci-me de que, não só em relação a nós, cavalos, o conceito de “meu” não tem nenhum outro fundamento senão o do instinto vil e animalesco dos homens, que eles chamam de sentimento ou direito de propriedade”[12]. Assim, ele próprio chega à convicção absurda de que as pessoas não se orientam mais pelas ações, mas tão somente pelas palavras. Logo, o “discurso de posse” torna-se o meio mais fácil de usar a “palavra” para furtar, esconder e justificar o sentido do agir.

Nesse sentido, vê-se refletir a idéia do indivíduo possuidor de bens e que, portanto, tem poder. E aquele que o tem, conseqüentemente, usa o discurso e o exibe na presença dos outros que agem, trabalham e fazem por ele e principalmente para ele. O existir, neste caso, é descartado e eliminado pela simples expressão “possuo isso” ou “aquilo”, que na verdade preenche e substitui a necessidade do agir, do fazer. O novo estatuto, contido no discurso burguês, constrói uma “relação” clara e evidente entre o ter e o ser, da qual se manifesta a idéia de felicidade. E no interior deste “novo” convencionalismo se sobressai aquele que pode aplicar as palavras meu e ter ao maior número possível de coisas (objetos), sendo obviamente este o homem mais “realizado” e “feliz” entre todos.

O comportamento de Kholstomér é diferente dos outros cavalos, o que o torna mais interessante dentre eles. Evidentemente que o tratamento dado por Tolstói a este personagem é no sentido de humanizá-lo, porém, tão somente para mostrar os próprios efeitos deletérios da civilização, da sociedade humana. Kholstomér, com o seu “estranhamento” em relação aos atos dos homens, mergulha nas observações que se referem ao discurso de posse e, logo em seguida, passa a refletir e questionar o direito de posse e propriedade. Sua constatação é que muitas daquelas pessoas que o chamavam de “meu cavalo” jamais o alimentaram, nem mesmo sequer lhe fizeram um único bem, outras pessoas, bem diferentes, como o mujique Niéster – apesar de muitas vezes tratá-lo de forma grosseira –, faz tudo isso, cuidando do animal mesmo não sendo seu dono.

Com efeito, no pensamento de Kholstomér, o direito de propriedade é extremamente inútil, não obedece de maneira alguma ao conceito de meu, se é que este diz  alguma coisa realmente, servindo, portanto, apenas como justificativa para um instinto torpe e animal, o qual os homens entendem como sentimento ou direito de propriedade. Quando os homens dizem, por exemplo, “minha terra”, mas não a cuidam ou não moram nela, como pode, então, terem eles tal direito de propriedade? Essa é a questão que o próprio conto acaba nos apontando, mediante a constatação e reflexão do cavalo. Mas o questionamento de Kholstomér vai ainda mais longe, principalmente quando ele percebe que há pessoas que chamam “minhas” as outras, porém, jamais as viram, e sua única ligação com elas é no sentido de fazerem alguma espécie de maldade.

A conclusão que Kholstomér extrai disso tudo é extremamente dura e polêmica, isto porque, segundo ele, os homens se movem em suas vidas unicamente através da aspiração em aplicar a idéia de “meu” ao maior número possível de coisas ou objetos. Prossegue afirmando que, por não estar “seduzida” pelo sentimento de propriedade ou posse, e por não justificar a existência mediante as palavras, mas simplesmente através dos atos, a espécie eqüina é superior a humana – “(...) estou convencido de que é nisso que consiste a diferença essencial entre nós e os homens. É por isso que, sem falar das outras vantagens que temos sobre eles, já podemos dizer sem vacilar que, na escala dos seres vivos, estamos acima das pessoas (...)”[13]. Os cavalos justificam sua vida pela utilidade, por aquilo que fazem, ao passo que o direito de posse não só é desnecessário como desnecessário e inútil é a vida daqueles que o praticam e fazem dele o pressuposto fundamental de sua existência.

As últimas linhas do conto são dedicadas às mortes de Kholstomér e de Sierpukhóvskoi, seu ex-dono. Por outro lado, em tais linhas há ainda a confirmação exata de toda a reflexão feita anteriormente, seguindo daí, a descrição de que os restos mortais de Sierpukhóvskoi, antigo e decadente nobre, não serviram para nada, ao passo que Kholstomér, depois de morto, serviu de ração a cães e filhotes, estendendo-lhes a existência, além de ter o couro e seus ossos aproveitados. O cavalo Kholstomér teve uma vida e uma morte magnificente útil, seu ex-dono, ao contrário, levou uma existência inútil, somente esbanjando, e, como conseqüência, teve uma morte profundamente melancólica[14].

O sentido deste desfecho é, então, um “presságio” para o destino sombrio que estava reservado à aristocracia russa nos finais de 1.860 e 80, na medida em que o capitalismo russo dava os seus primeiros passos com o objetivo definido de formar um sistema estruturado e orgânico. E, graças ao excelente caráter e visão social que Tolstói possuía, tratando-se de um autor que é fruto de seu próprio tempo, ele levanta, já em sua época, uma questão essencial deste novo sistema em formação: a alienação como decorrência profunda das relações de posse e propriedade. A partir do conto Kholstomér, sentimos que a sua reflexão se volta cada vez mais para temas e assuntos políticos, sociais, psicológicos e filosóficos, mas sempre destacando a alienação do homem na sociedade em que vive.

Em fim, encontramos o mesmo clima que o motiva a tratar da alienação em A morte de Ivan Ilitch (1.886), onde ele retorna de modo implacável à sua crítica a sociedade burguesa e mostra que a ascensão do indivíduo e sua inserção no novo sistema de valores equivalem à sua plena identificação com a sua função. O resultado decorrente da função que exerce lhe oferece a sensação de poder, de onde lhe vem o prazer de sentir-se na posse de outros indivíduos, cujos destinos pode decidir com a mesma “facilidade” com que os donos do pobre Kholstomér chamavam de “meu”, “minha terra”, a qualquer outro objeto.

Em A morte de Iván Ilitch Tolstói destaca, entre outras coisas, que a absorção da função burocrática e de seus condicionamentos psicológicos, e até mesmo ideológicos, na vida de Ivan, apaga a diferença que separa indivíduo e função burocrática e resulta para ele na perda da sua personalidade e de sua própria condição humana. Assim, tanto em Kholstomér quanto em outras obras suas, percebemos a fiel concepção literária do autor, que é bastante aristotélica: “quando falo de minha aldeia falo do mundo todo”, ou seja, da relação entre o particular e o universal.

O autor descreve, nesse sentido, o caso particular do juiz burocrata Iván e faz dele uma representação universal do processo de alienação e suas conseqüências assustadoras para a vida humana. Do mesmo modo que Sierpukhóvskoi, antigo nobre e depois decadente, levara uma vida desprezível e inútil, mas sem ter a mínima consciência, o juiz Ivan Ilitch, funcionário extremamente competente, também levara uma vida que imaginava ser útil, até que descobrirá ser desnecessária diante da constatação da morte – apesar de termos a sensação de que todos já estão mortos naquele romance, o que nos lembra, a propósito, Gogol e suas personagens em Almas Mortas.

Para finalizar, resta-nos dizer que, se em Ivan Ilitch temos a constatação e presença da morte como pressuposto para se pensar no estúpido sentido que é viver numa sociedade alienada, no conto Kholstomér, ao contrário, o autor nos coloca diante da vida, da vida de um cavalo, com o objetivo de demonstrar a inutilidade das ações humanas ante o discurso de posse e propriedade; e mais, nos impõem ainda, a idéia de que nenhuma palavra oferece a justificativa para a aplicação de qualquer discurso ou ação. Portanto, a inefável condição da vida humana, relatada em ambas as obras, emerge como crítica e condenação de Tolstói à sociedade, não apenas russa, mas a toda Europa...a toda a humanidade, pois, acima de tudo, o nosso autor é um moralista, e é também neste sentido que devemos entendê-lo.

 

Bibliografia

1 – Fontes Primárias:

TOLSTÓI, L. N. O diabo e outras histórias: Kholstomér, A história de um cavalo. Tradução de B. Morabito & B. Ricci. São Paulo: Editora Cosac & Naify, 2000.

----------------------. A Morte de Ivan Ilitch. Tradução de G. L. Pereira; Introdução e comentários de P. Rónai. São Paulo: Editora Saraiva, 1963.

----------------------. Três Mortes. Tradução de B. Morabito & e B. Ricci. São Paulo: Editora Cosac & Naify, 2000.

2 – Secundária:

GRUNWALD, K. Pequena História das Grandes Nações: União Soviética. Tradução de G. E. Roth. São Paulo: Editora Círculo do Livro S.A., 1978.

 

[**] O enredo deste conto é, na verdade, uma história criada por M. A. Stakhóvitch, autor de Notchnói (Noturno) e Naiêzdniki (Os cavaleiros), e transmitida para Tolstói pelo próprio Stakhóvitch (cf., TOLSTÓI. L. N. O diabo e outras histórias. Tradução de B. Morabito e B. Ricci. Introdução e comentários de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora Cosac & Naify, 2.000, p. 49).

[1] A pronúncia correta para o nome Liev, em Russo é: Lhof N. Tolstói.

[2] Ler a introdução feita por Paulo Rónai a TOLSTÓI. L. N. A morte de Ivan Ilitch. Tradução de G. L. de M. Pereira. São Paulo: Editora Saraiva, 1.963, p. VIII.

[3] Idem. p. XIII.

[4] Ibidem. pp. VIII e IX.

[5] Cf. TOLSTÓI. L. N.Kholstomér, in: O diabo e outras histórias. p. 51.

[6] Ver em notas introdutórias de Paulo Bezerra a Tolstói. L. N. em: O diabo e outras histórias, p. 13.

[7] Idem. p. 14.

[8] Cf. TOLSTÓI. L. Kholstomér. p. 63.

[9] Idem. pp. 89 e 100.

[10] Ibidem. p. 74.

[11] Ibid. pp. 74/75.

[12] Ibi. p. 75.

[13] Ibi. p. 76.

[14] Ibi. pp. 98/99 e 100.

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Última atualização: 03 dezembro, 2004.