MOZART LACERDA FILHO

Aluno do quarto ano de História da Universidade de Uberaba (Uniube)

 

Gildo Macedo Lacerda – 

Um Protagonista Anônimo da História

Pensando a Micro-História e Suas Possibilidades

Mozart Lacerda Filho

 

Resumo:  

Estudo sobre Gildo Lacerda, ex-militante do Movimento Estudantil  e da Ação Popular (AP), durante o regime militar, assassinado pela repressão, em outubro de 1973, em Recife. A micro-história foi o referencial utilizado. Gildo teve uma militância intensa. Em Uberaba, foi um dos mais combativos militantes, sendo orador da União Estudantil Uberabense (UEU), presidente do Grêmio Machado de Assis do colégio Dr. José Ferreira e membro da Ação Popular. Em Belo Horizonte, em 1968, ingressa no curso de economia da UFMG. É eleito delegado para o XXX Congresso da UNE. Em 1969, elege-se vice-presidente da UNE e entra na clandestinidade. Quando a AP torna-se APML, Gildo é escolhido para a direção Nacional. Em 1972 casou-se com Mariluce Moura. Desse casamento, nasceria uma filha que jamais conheceu. As circunstâncias de sua morte ainda não foram esclarecidas e seu corpo jamais foi devolvido à família.

Palavras-chaves: Ditadura militar, Movimento Estudantil, Ação Popular, Micro-história, Uberaba.

Abstract

Study about Gildo Lacerda, ex-participating from “Movimento Estudantil” and Ação Popular (AP), during the military regime, murdered by the repression in october, 1973, in Recife. The micro-history was the poin of reference used. Gildo was an intense militant. In Uberaba, he was one of the bravest militants, being the one who made the speeches in União Estudantil Uberabense (UEU), president of Grêmio Machado de Assis from Colégio Dr. José Ferreira and member of the “Ação Popular” (Popular Action). In Belo Horizonte, in 1968, enters the economy course from UFMG. He´s elected delegate for the XXX UNE congress. In 1969 was elected vice-president of UNE and becames a clandestine. When “AP” becames APML, Gildo is chosen for Mariluce Moura. From this marriage, a girl who he never knew was Born. Yhe circunstances of his death haven´t been clarified yet; neither his body has ever been returned to his family.

Key words: Military Dictatorship, Estudantil Movement, Popular Action, Micro-history, Uberaba.

 

Hugo: Nem todos os meios são bons.

Hoederer: Todos os meios são bons se são eficazes (...).

A pureza é uma idéia de faquir, de monge. Vocês, os

intelectuais, os anarquistas, fazem da pureza um

pretexto para não fazer nada (...). Eu tenho as mãos

sujas. Até os cotovelos. Mergulhei as mãos na merda e no

sangue. [1]

 

Gildo à época em que foi  fichado por estar em Ibiúna. Foto feita, provavelmente, no Dops de Belo Horizonte. (Fonte: acervo do autor)01.  Uma Breve Introdução à Micro-História

Os anos 70 e 80 foram, numa visão mais generalizada, anos de crise na metodologia historiográfica. Houve, contudo, várias reações possíveis para essa crise, e a micro-história nada mais é que uma resposta a ela. Uma resposta que enfatiza a redefinição de conceitos e uma análise aprofundada dos instrumentos e métodos existentes.

Do ponto de vista metodológico, a micro-história avança nas pesquisas historiográficas por romper com a prática calcada na retórica e na estética (LEVI, 2000). O trabalho da micro-história tem se centralizado na busca de uma descrição mais realista do comportamento humano, empregando um modelo de ação que possa dar voz a personagens que, de outra maneira, ficariam no esquecimento. Segundo Levi (1992, p. 136), a micro-história  possui, portanto, um papel muito específico dentro da chamada nova história: “refutar o relativismo, o irracionalismo e a redução do trabalho do historiador a uma atividade puramente retórica que interprete os textos e não os próprios acontecimentos".

O espaço local, alçado em categoria central de análise, constitui uma nova possibilidade de análise no quadro das interdependências entre agentes e fatores determinantes de experiências históricas eleitas pela lupa do historiador. Nessa nova concepção, cada aparente detalhe, insignificante para um olhar apressado ou na busca exclusiva dos grandes contornos, adquire valor e significado na rede de relações plurais de seus múltiplos elementos constitutivos. Conforme enfatiza Reznik (2002, p. 3).

Ao eleger o local como circunscrição de análise, como escala própria de observação, não abandonamos as margens (...), as normas, que, regra geral, ultrapassam o espaço local ou circunscrições reduzidas. A escrita da história local costura ambientes intelectuais, ações políticas, processos econômicos que envolvem comunidades regionais, nacionais e globais. Sendo assim, o exercício historiográfico incide na descrição dos mecanismos de apropriação – adaptação, resposta e criação – às normas que ultrapassam as comunidades locais.

Dessa forma, é possível afirmar, conforme Levi (1992, p. 139), que “o princípio unificador de toda pesquisa micro-histórica é a crença em que a observação microscópica revelará fatores previamente não observados” numa abordagem tradicional. A descrição micro-histórica serve para registrar uma série de acontecimentos ou fatos significativos que, de outra forma, seriam imperceptíveis e que, no entanto, podem ser interpretados por sua inserção num contexto mais amplo, ou seja, na trama do discurso social.

Uma vez que o homem não pode formular sistemas mentais, sem recorrer à orientação de modelos de emoção públicos e coletivos, pois esses modelos são os elementos essenciais com que ele percebe o mundo, um estudo sobre a militância de Gildo Macedo Lacerda revela-nos como pensavam e agiam os militantes de esquerda, nos anos de ditadura militar. Acompanhar sua trajetória de vida é mergulhar no obscuro mundo da vida dupla, da clandestinidade. É percorrer as lutas de centenas de jovens que abriram mão de suas vidas particulares para lutar em nome da liberdade coletiva. É poder sentir a dor de perder entes queridos nas mãos da tortura e do ódio organizado. É não poder ver os filhos nascerem, ou vê-los nascer na prisão. Ou seja, a vida e luta de Gildo Macedo Lacerda foi a vida e luta de vários outros agentes históricos que, assim como ele, ousaram desafiar a ditadura que se vivia na época.

A abordagem metodológica utilizada neste estudo de caso divide-se em: a) bibliográfica e b) pesquisa oral. Num primeiro momento, foram lidos os principais autores que escreveram sobre o Golpe Militar de 1964, tais como René Armand Dreifuss, Caio Navarro de Toledo e o polêmico Elio Gaspari. Sobre o Movimento Estudantil, foram lidos os seguintes autores: José Luís Sanfelice, João Roberto Martins Filho e Luís Henrique Romanogli. Para a história da Ação Popular, consultamos Aldo Arantes e Jacob Gorender. Para a militância de Gildo Macedo Lacerda, consultamos Nilmário Miranda, Betinho Duarte, Samarone Lima. A respeito  do Movimento Estudantil Uberabense, consultamos oito caixas de documentos pertencentes ao Arquivo Municipal, que cobrem o período de 1950 a 1974. Consultamos também os arquivos da União Estudantil Uberabense, composto de 600 documentos, que cobrem o período de 1965 até 1995.

Na pesquisa oral, foram ouvidos parentes em 1º grau (mãe, irmã, ex-mulher), professores, amigos íntimos, colegas de faculdade e companheiros de militância. Essas pessoas localizam-se em Uberaba, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo. Essas entrevistas geraram mais de 15 horas de fitas e aproximadamente oitenta folhas de comunicação via internet (e-mail). Tanto para as entrevistas ao vivo quanto para as entrevistas via e-mail, foi utilizado um questionário padrão. Evidentemente, outras perguntas foram feitas, quando havia oportunidade e, principalmente, necessidade.

Para o embasamento teórico da micro-história, foram consultados, Giovanni Levi, Ronaldo Vainfas, Luís Resnik e Pierre Goubert. O trabalho jornalístico de André Azevedo também foi consultado como exemplo de aplicação de micro-história.

Antes de prosseguirmos, duas advertências se fazem necessárias: a) alguém poderia, achar que se trata de contribuir para a formação de um mito em torno da figura de Gildo. Não, não é essa a intenção. Ao contrário. O que se tentará o tempo todo é abordar o sujeito na sua dimensão histórica; b) essa busca pelo homem histórico, e não pelo mito, não pode, no entanto, suprimir ou ofuscar os fatos que verdadeiramente ocorreram. É sobre esses fatos que nos debruçaremos. É claro que muitos deles preferiríamos esquecer, justamente pela dor que nos trazem. Mas, exatamente para que não doam em mais ninguém, é que não podemos deixá-los no esquecimento.

02. Uma pequena biografia

Gildo Macedo Lacerda nasceu em Ituiutaba em 08 de julho de 1949. Estaria hoje, portanto com 55 anos. Dona Célia, a mãe, juntamente com o pai, seu Agostinho cuidavam de uma fazenda, fruto do trabalho de ambos.

Tiveram, Célia e Agostinho, 4 filhos: Gilberto, que morre 3 meses depois do nascimento, Márcia, Gildo e Maria Aparecida. Com o intuito de lhes proporcionar uma educação mais refinada, a família Macedo Lacerda se muda para  a cidade mineira de Uberaba em 1963 e vai morar na Praça Dr. Thomás Ulhôa nº 24. Seu Agostinho vende a fazenda em Ituiutaba e adquire outra no município de Veríssimo, MG.

Gildo vai estudar no Colégio Triângulo (cuja entrada era pela rua Padre Jerônimo), onde hoje é o campus I da Universidade de Uberaba. Lá cursa a 7ª e 8ª séries do ensino fundamental, antigamente 3ª e 4ª séries do curso ginasial. Em 1965, transfere-se para o Colégio Cenecista Dr. José Ferreira, onde ficaria por mais dois anos.

Os tempos de “Zezão”, como já era conhecida a referida casa de educação, foram os mais intensos. Gildo se dividia entre algumas atividades: Presidente do Grêmio Estudantil Machado de Assis, ativo participante do NATA – Núcleo Artístico de Teatro Amador -, orador da Mocidade Espírita Batuíra e apresentador de programas radiofônicos ligado ao espiritismo. Isso sem falar das leituras dos clássicos da esquerda revolucionária, tais como Marx e Althusser, e da participação no movimento estudantil, quando foi orador da União Estudantil Uberabense (UEU) e do Partido Unificador Estudantil. Sua mãe ainda se lembra de várias reuniões feitas em casa, onde Gildo e companheiros discutiam, entre outras coisas, política (local e nacional), teatro e a participam dos estudantes no movimento estudantil.

E nessas reuniões uma sigla se torna comum na boca dos estudantes: AP, ou seja, Ação Popular. Pode-se afirmar que Gildo, nessa época, já teria tomado contato com o programa básico da organização e a ela teria se aliado.

03. A Ação Popular (AP) no Brasil e no Triângulo Mineiro

A AP surgiu, principalmente,[2] dos quadros da Juventude Universitária Católica (JUC) em 1963. Após o golpe de 64, parte de seus membros defenderam a aproximação com o PC do B, Partido Comunista do Brasil, num processo de fusão que só se completaria em 1973 (CAMPOS FILHO, 1997). A aproximação entre as duas organizações era muito forte, com base na atuação do movimento estudantil, consolidando-se com a adoção de uma linha revolucionária semelhante: a defesa das concepções maoístas e, sobretudo, dos princípios leninistas acerca da revolução e da forma de organização partidária. Enfatiza Mir (1994, p. 453):

O programa básico da AP afirmava a existência de uma nova época histórica, a época em que o imperialismo caminha para a ruína completa e o socialismo avança para a vitória em escala mundial. O maoísmo, ou o pensamento de Mao Tsé-Tung, afirmava, é a terceira etapa do marxismo, o marxismo-leninismo de nossa época, o marxismo levado a uma etapa completamente nova.

Com o AI-5, instaurado em 13 de dezembro de 1968, alguns dirigentes da AP passaram a defender idéias mais radicais e o caminho da luta armada (que originalmente era pensada apenas no campo) tornava-se cada vez mais próximo.  A partir de 1971 passam a defender a união de todas as correntes marxistas-leninistas (1999, MIRANDA). Como a fusão com o PC do B não era consenso dentro da Ação Popular, o grupo dissidente passou a denominar-se AP-ML – Ação Popular Marxista Leninista (SOARES, 2004).

Aqui, no Triângulo Mineiro, principalmente em Uberaba e Uberlândia, a AP vai ser introduzida por volta de 1966, por militantes vindos de Belo Horizonte. Supõe-se que um deles teria sido  José Carlos Novaes da Mata Machado, filho do deputado cassado pelo AI-5, Edgar Godoi da Mata Machado. Ele era estudante da Faculdade de Direito da UFMG e teria vindo para Uberaba por volta de 1967, como dirigente da AP, no intuito de ampliar os quadros da organização no interior do Estado.[3]

Numa visita de 3 dias, outros militantes da AP, também vindos de Belo Horizonte, entram em contato com, entre outros, Danival Roberto Alves (2004), então estudante de filosofia na Faculdade São Tomás de Aquino, a Fista, que assim descreve o encontro:

A reunião foi na casa da Vilma Valim. Foi lá que Antônio José Duarte Jácomo, egresso de JUC (Juventude Universitária Católica), e depois de AP, cede-me a gestão dos trabalhos. Esse encontro de três dias ocorre a portas fechadas e lacradas, em face da vigilância exercida pela repressão.

Danival Roberto Alves, hoje diretor do Colégio Cenecista Dr. José Ferreira, torna-se, então, o responsável pelos trabalhos da AP em Uberaba e região. Fazia parte da sua função, portanto, atrair novos quadros para o movimento de resistência contra a ditadura. Ainda como estudante, Danival passa a dar aulas no Colégio Cenecista Dr. José Ferreira, onde, como já dissemos, Gildo vai estudar. É certo que, com o afastamento de Danival à frente da AP, Gildo assume seu comando no Triângulo Mineiro, até sua ida para Belo Horizonte.

E é como membro da AP que, no final de 1966, Gildo, com 17 anos, muda-se para Belo Horizonte. Vai morar na rua Guajajaras com as duas irmãs, na pensão da dona Sebastiana.

Na capital mineira, faz o 3º Científico integrado ao pré-vestibular e em 1968, entra para  a FACE, Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais, realizando, assim, um antigo sonho seu e de seus familiares (LACERDA, Célia, 2004).

A UFMG era a maior base da AP em Minas Gerais e contava com mais de 60 ativos militantes. Gildo, devido a suas idéias, logo se torna uma referência no movimento estudantil e estreita laços com José Carlos Novaes da Mata Machado, então estudante de direito na mesma universidade e com José Matheus Pinto Filho, militante que, em 1966 tinha organizado o Congresso da UNE (União Nacional dos Estudantes), realizado na Igreja de São Francisco de Assis (DUARTE, 1994). Os três passam boa parte de 1968 se revezando entre os estudos e as viagens a serviço do movimento estudantil e da AP.

1968 seria também seria o ano da primeira prisão de Gildo.

04. XXX CONGRESSO DA UNE: A PRIMEIRA PRISÃO

A direção nacional da UNE sabia que a realização de seu congresso anual ocorreria sob forte vigilância do regime militar. Não obstante, realizá-lo seria uma importante vitória sobre a repressão (LIMA, 1998). É neste clima de insegurança, misturado à necessidade de se fazer algo, que é marcado para outubro de 1968 o XXX Congresso Nacional dos Estudantes. O local: Sítio Murundu, distante 22 quilômetros de Ibiúna, uma pequena cidade a 70 quilômetros de São Paulo. Vários estudantes de Minas Gerais, mesmo sabendo do risco que seria participar do congresso, dirigiram-se para lá. Entre eles, Gildo e José Carlos. Samarone Lima (1998, p. 64/65), autor da biografia de José Carlos Novaes da Mata Machado, descreve assim a ida de ambos para Ibiúna:

Gildo e José Carlos viajaram no dia 9 de outubro. Saíram de Belo Horizonte no último ônibus e chegaram a São Paulo no dia 10. Para participar do Congresso, teriam de encontrar Luís Custódio Costa Martins, um estudante de Agronomia da Faculdade de Botucatu e também militante da AP (...) O esquema para chegar ao local previa várias etapas. O motorista iria até um ponto da rodovia, estacionaria o carro e abriria o capô. Alguém chegaria com a pergunta-chave:

- Você tem pneu da Volkswagen?

A resposta deveria ser:

- Não, eu tenho da Fenemê.

Custódio seguiu a orientação. A resposta foi a combinada e José Carlos desceu, junto com Gildo. Dali seguiriam para o encontro.

No afã de se realizar o encontro, os estudantes acabaram se descuidando das normas de segurança e para que a repressão descobrisse onde seria realizado o Congresso foi uma questão de tempo. Ítalo Ferrigno, delegado titular do DOPS, que comandou a operação, mais tarde diria que, desde o dia 7 de outubro, a repressão já sabia que o XXX encontro da UNE seria em Ibiúna (LIMA, 1998). O que se aguardava para prendê-los era apenas o momento certo. Deixaram para a manhã do dia 12 por julgar que todos os líderes já estariam presentes. Zuenir Ventura (1998, p.220), jornalista carioca narra assim esse episódio:

Na chuvosa manhã de Sábado, 12 de outubro, a polícia invadiu o sítio Murundu, nas imediações da cidade [Ibiúna], e prendeu um número de estudantes que varia, conforme a fonte, de setecentos a mil e quinhentos, pondo fim ao XXX Congresso da UNE que ali se realizava – e ao sonho estudantil.

Gildo é então preso e fichado. Abre-se um IPM (Inquérito Policial Militar) e ele é mandado de volta para seu Estado, como era praxe nessas ocasiões. Em Belo Horizonte, fica preso no DOPS da capital mineira. Por ser sua primeira prisão e ter residência fixa, Gildo é liberado 40 dias depois. Entra de vez para a clandestinidade.

Com base no Decreto-lei 477, editado em fevereiro de 1969 pelo General Costa e Silva, Gildo é expulso da FACE e transfere-se primeiramente para São Paulo, mais especificamente para o ABC paulista, onde lhe interessava estabelecer contatos diretamente com a massa trabalhadora (SOARES, 2004). Posteriormente se dirige para o Rio de Janeiro. Sua luta para fugir das perseguições impostas pela repressão eram constantes.

Em abril de 1969, um “mini” congresso é realizado num sítio em Jacarepaguá (WEID, 2004), e Gildo, então presidente do DCE de Minas Gerais, é eleito um dos vice-presidentes da União Nacional dos Estudantes (UNE) para a gestão 69/70. Na presidência, Jean-Marc van der Weid, antigo militante da AP.  Esta seria a última diretoria, uma vez que a entidade seria totalmente desarticulada pelas forças da ditadura. Juntamente com Jean Marc e Gildo, foram eleitos também: Honestino Guimarães, presidente da Federação dos Estudantes de Brasília; José Genoino Neto, presidente do DCE do Ceará; Helenira Resende, do Centro Acadêmico de Letras da USP; Humberto Câmara, da UEE de Pernambuco e Ronald Rocha, do Rio de Janeiro (ROMAGNOLI & GONÇALVES 1979).

Em 1972, Gildo, já como dirigente nacional da Ação Popular Marxista-Leninista (APML), foi deslocado para Salvador, BA, “onde dirigiu a implantação do trabalho camponês da organização no Nordeste” (DUARTE, 1994, p. 42). Na cidade baiana, utilizava o nome de Cássio Oliveira Alves, sob o qual vivia e trabalhava (MIRANDA, 1999). É provável que, durante sua estada em Salvador, Gildo conhecesse aquela que viria ser a sua companheira e com quem teria uma filha, batizada com o nome de Tessa: Mariluce Moura, jornalista baiana e também militante da AP.

Com medo de que sua família em Uberaba fosse molestada pelos agentes da repressão, Gildo enviava suas cartas para um amigo do pai em Veríssimo e este, então, as repassava a seu pai Agostinho.

Numa dessas cartas, ele manifestava a tristeza por não receber notícias da família e a saudade que sentia de todos. Incomodava-lhe também o fato de não poder apresentar sua companheira, Mariluce, a seus familiares.

Muito tempo sem ver a família, o desejo de que seus pais conhecessem Mariluce e, sobretudo, o número de prisões efetuadas pelo governo Médici fazem o casal Gildo e Mariluce, no começo de Outubro de 1973, vir para o sítio da família, em Veríssimo. Nesse tempo, Mariluce já suspeitava estar grávida. A filha Tessa nasceria 8 meses após a morte do pai.

05. AS TORTURAS E A MORTE

Gildo e Mariluce foram presos no dia 22 de outubro de 1973, logo que regressaram para Salvador. Ele, por volta de meio-dia, ao sair de casa. Ela, uma hora depois, em frente ao Elevador Lacerda, importante ponto turístico da capital baiana.

Foram levados, junto com outros presos, para a Superintendência da Polícia Federal da capital baiana. Mariluce estava grávida de 2 meses, confirmando suas suspeitas. À noite, ela e Gildo foram separados e cada um foi para uma sala. Nunca mais se veriam.

No dia seguinte, 23, Mariluce foi transferida para o quartel do Forte de São Pedro. Gildo, juntamente com Oldack Miranda, jornalista de Salvador, foi levado ao Quartel do Barbalho. Gildo é, posteriormente, transferido para o DOI-CODI do Recife, onde foi violentamente torturado. Por ser dirigente nacional da AP, seus algozes, usando as mais cruéis formas de tortura, tentaram  arrancar dele todas as informações possíveis. Como Gildo nada dizia, foi brutalmente assassinado no dia 28. Neste mesmo dia, Mariluce recebe a notícia de que Gildo fora levado para uma longa viagem.

No dia 1º de novembro, um oficial dizendo-se capelão, conta-lhe que Gildo estava morto desde 28 de outubro. Para confirmar a história, apresentava-lhe um recorte de jornal que trazia a versão oficial de sua morte.

06. A FARSA

Márcia Macedo Lacerda, irmã mais velha de Gildo, então com 25 anos, assistia ao Jornal Nacional naquele 1º de novembro de 1973. Com sua nacionalmente conhecida voz, Cid Moreira assim anunciava (MIRANDA e TIBÚRCIO, 1999, p. 495):

Entre outras prisões, caiu em São Paulo José Carlos Novaes da Mata Machado e, em Salvador, Gildo Macedo Lacerda. Interrogados, "abriram” um ponto com o dirigente “Antônio” [possivelmente Paulo Stuart Wright, outro dirigente da AP] às 19:30 do dia 28, à avenida Caxangá com general Polidoro, no Recife. À hora aprazada um homem forte, louro, branco, percebendo a armadilha, abriu fogo contra seus companheiros aos gritos de “traidores”. Mesmo ferido, teria escapado depois de deixar Gildo morto e José Carlos mortalmente ferido.

Essa foi a versão oficial da morte de Gildo. Esses “tiroteios” era uma das formas mais usadas pela repressão para justificar a morte de algum preso político. Os militantes da AP, ao ouvirem a versão do Governo, imediatamente perceberam a farsa.

Os restos mortais de Gildo nunca foram devolvidos à família. Primeiramente, o corpo foi para a vala comum no Buraco do Inferno. Em 1986, foi transferido para outra vala comum, no Cemitério Parque das Flores.

07. A TRAIÇÃO

Em 1971, Gilberto Prata não queria mais ser revolucionário. Cansara da militância. Saiu da AP, foi cuidar da vida. Providenciou documentos e resolveu acompanhar as coisas de longe. Entretanto, em fevereiro 1973 foi procurado pelo CIEX – Centro de Informação do Exército[4] e decidiu colaborar (ainda hoje não se sabe bem porque)[5]. Sua missão: fingir voltar à militância na AP, descobrir onde estavam escondidos suas principais lideranças e entregá-las para a repressão. No comando da operação, o delegado Sérgio Paranhos Fleury, responsável pelo DOPS de São Paulo e um dos mais temidos torturadores do país (LIMA, 1998).

O trunfo que Gilberto tinha nas mãos é justamente o que torna sua traição mais chocante: ele era irmão de Maria Madalena Prata Soares e cunhado de José Carlos Novaes da Mata Machado, importantes líderes da AP naquele momento. Ao primeiro sinal de que queria voltar às operações da AP, foi recebido com entusiasmo pela irmã e pelo cunhado.

A partir daí, Gilberto serviu de “guia” para a repressão policial-militar. Quando os agentes perdiam José Carlos, Madalena, Gildo e outros militantes que passaram a ser seguidos, Gilberto restabelecia o elo. Isso podia ser em Salvador, no Recife, Rio de Janeiro e em São Paulo.

Em 1993, em depoimento perante a Comissão Externa sobre os Mortos e Desaparecidos da Câmara Federal, onde fica público seu papel, Gilberto revela (MIRANDA e TIBÚRCIO, 1999, p. 498):

No período [maio a outubro de 1973], quem era da AP e entrou em contato comigo direta ou indiretamente, como José Carlos, Gildo, Madalena,  dançou [foi preso] e tenho certeza absoluta de que se alguém pode dar conta de onde estão os corpos [dos que foram mortos] é o pessoal do CIEX”.

De algum modo, a morte de Gildo e de vários outros militantes da AP decorreram do “trabalho” de Gilberto Prata Soares como guia da repressão.

08. AS MÃOS SUJAS.

A epígrafe que abre este trabalho cita um trecho da peça de teatro “As mãos sujas” de Jean-Paul Sartre, importante filósofo existencialista do século XX, lançada em 1947. Nesta obra, Sartre tenta mostrar que, em certos momentos da vida de um militante de esquerda (e isso vale também para qualquer um de nós), mais importante do que discutir qual o caminho a ser tomado é tomar um caminho. Ou seja, é importante sujar as mãos, envolver-se com as questões que estão ao nosso redor. Não nos cabe, ao menos nessa hora, dizer se o caminho de luta tomado por Gildo e por tantos outros foi ou não o mais correto. Interessa-nos mostrar que alguns não se omitiram diante dos problemas que tinham de ser enfrentados, mesmo tendo que pagar com suas próprias vidas.

Mais que dar nome ao Diretório Central dos Estudantes, Gildo Macedo Lacerda, com sua trajetória de vida, nos ensina que a liberdade deve ser perseguida sempre e que somos todos responsáveis por ela.

 

[1] SARTRE, Jean-Paul. As mãos sujas. Citado em www.primeiraleitura.com.br . Acessado em 20/05/2004.

[2]  Adotamos essa simplificação para o surgimento da AP, uma vez que não é objetivo desse trabalho tecer longos comentários sobre esse tema. Nas referências, indicamos trabalhos que cumprem bem esse papel.

[3] Sobre a vinda de José Carlos Novaes da Mata Machado à Uberaba, foram ouvidas duas pessoas: Madalena Prata, sua ex-companheira e Danival Roberto Alves, um dos primeiros dirigentes da AP no Triângulo Mineiro. Para Madalena, é possível que José Carlos realmente estivesse por aqui, uma vez que ele tinha uma namorada em Uberaba, que estudava no Colégio Nossa Senhora das Dores. Já Danival reconhece José Carlos quando o autor mostra-lhe uma fotografia, publicada no livro “Dos Filhos Desse Solo” (ver bibliografia).

[4] Com relação a nomenclatura dessa sigla, não há consenso. Os autores Samarone Lima, Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio grafam Ciex, com o x no final, e em letras minúsculas. Já Elio Gaspari, em seu trabalho sobre a ditadura militar, traz a grafia CIE, sem o x e em letras maiúsculas. Para referência completa dos autores, ver referências bibliográficas.

[5] Há duas hipóteses que tentam explicar a traição de Gilberto Prata. Segundo sua irmã, Madalena Prata, Gilberto exerceu o poder de irmão mais velho, que julga ter o direito de decidir o destino da irmã. Ou seja, para Madalena, a traição foi fruto do machismo que impera nas relações familiares. No entanto, Nilmário Miranda, em seu livro (ver referências bibliográficas), afirma que Gilberto Prata recebeu, por 8 anos, ajuda de custo do CIEX.

 

Referências:

Acervo de documentos da União Estudantil Uberabense, UEU.

Arquivo Público Municipal de Uberaba, MG

AZEVEDO, André. Cotidianos culturais e outras histórias – A cidade sob novos olhares. Uberaba, MG: Editora da Universidade de Uberaba. 2004.

DUARTE, Betinho (organizador). Rua Viva – Homenagem aos mortos e desaparecidos políticos mineiros. Editado pela Assembléia dos deputados de Minas Gerais. 1994.

DREIFUSS, René, Armand. 1964: A conquista do Estado - ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis, RJ: Vozes, 1981.

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LIMA, Haroldo & ARANTES, Aldo. A História da Ação Popular - da JUC ao PC do B. São Paulo, SP: Alfa Ômega, 1984.

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MIRANDA, Nilmário e TIBÚRCIO, Carlos. Dos filhos desse solo. São Paulo, SP: Boitempo Editorial e Fundação Perseu Abramo,  1999.

REZNIK, Luís. Qual o lugar da história local?. Artigo publicado em no site história local, acessado em 25.08.2004.

ROMAGNOLI, Luis Henrique & GONÇALVES, Tânia. A volta da UNE – De Ibiúna a Salvador. São Paulo, SP: Alfa-Ômega. 1979.

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VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas anônimos da história. São Paulo, SP: Campus, 2002.

Depoimentos:

01. Célia Garcia Macedo Lacerda – Mãe.

02. Danival Roberto Alves – Ex-professor e ex-companheiro de militância.

03. Jean Marc van der Weid  - Ex-companheiro de militância (via e-mail).

04. Maria Aparecida Macedo Lacerda – Irmã

05. Maria Madalena Prata Soares – Ex-companheira de militância.

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Última atualização: 03 dezembro, 2004.