Hugo:
Nem todos os meios são bons.
Hoederer:
Todos os meios são bons se são eficazes (...).
A
pureza é uma idéia de faquir, de monge. Vocês, os
intelectuais,
os anarquistas, fazem da pureza um
pretexto
para não fazer nada (...). Eu tenho as mãos
sujas.
Até os cotovelos. Mergulhei as mãos na merda e no
sangue.
01.
Uma Breve Introdução à Micro-História
Os
anos 70 e 80 foram, numa visão mais generalizada, anos de crise na
metodologia historiográfica. Houve, contudo, várias reações possíveis
para essa crise, e a micro-história nada mais é que uma resposta a
ela. Uma resposta que enfatiza a redefinição de conceitos e uma análise
aprofundada dos instrumentos e métodos existentes.
Do
ponto de vista metodológico, a micro-história avança nas pesquisas
historiográficas por romper com a prática calcada na retórica e na
estética (LEVI, 2000). O trabalho da micro-história tem se
centralizado na busca de uma descrição mais realista do
comportamento humano, empregando um modelo de ação que possa dar voz
a personagens que, de outra maneira, ficariam no esquecimento. Segundo
Levi (1992, p. 136), a micro-história
possui, portanto, um papel muito específico dentro da chamada
nova história: “refutar o relativismo, o irracionalismo e a redução
do trabalho do historiador a uma atividade puramente retórica que
interprete os textos e não os próprios acontecimentos".
O
espaço local, alçado em categoria central de análise, constitui uma
nova possibilidade de análise no quadro das interdependências entre
agentes e fatores determinantes de experiências históricas eleitas
pela lupa do historiador. Nessa nova concepção, cada aparente
detalhe, insignificante para um olhar apressado ou na busca exclusiva
dos grandes contornos, adquire valor e significado na rede de relações
plurais de seus múltiplos elementos constitutivos. Conforme enfatiza
Reznik (2002, p. 3).
Ao
eleger o local como circunscrição de análise, como escala própria
de observação, não abandonamos as margens (...), as normas, que,
regra geral, ultrapassam o espaço local ou circunscrições
reduzidas. A escrita da história local costura ambientes
intelectuais, ações políticas, processos econômicos que envolvem
comunidades regionais, nacionais e globais. Sendo assim, o exercício
historiográfico incide na descrição dos mecanismos de apropriação
– adaptação, resposta e criação – às normas que ultrapassam
as comunidades locais.
Dessa
forma, é possível afirmar, conforme Levi (1992, p. 139), que “o
princípio unificador de toda pesquisa micro-histórica é a crença
em que a observação microscópica revelará fatores previamente não
observados” numa abordagem tradicional. A descrição micro-histórica
serve para registrar uma série de acontecimentos ou fatos
significativos que, de outra forma, seriam imperceptíveis e que, no
entanto, podem ser interpretados por sua inserção num contexto mais
amplo, ou seja, na trama do discurso social.
Uma
vez que o homem não pode formular sistemas mentais, sem recorrer à
orientação de modelos de emoção públicos e coletivos, pois esses
modelos são os elementos essenciais com que ele percebe o mundo, um
estudo sobre a militância de Gildo Macedo Lacerda revela-nos como
pensavam e agiam os militantes de esquerda, nos anos de ditadura
militar. Acompanhar sua trajetória de vida é mergulhar no obscuro
mundo da vida dupla, da clandestinidade. É percorrer as lutas de
centenas de jovens que abriram mão de suas vidas particulares para
lutar em nome da liberdade coletiva. É poder sentir a dor de perder
entes queridos nas mãos da tortura e do ódio organizado. É não
poder ver os filhos nascerem, ou vê-los nascer na prisão. Ou seja, a
vida e luta de Gildo Macedo Lacerda foi a vida e luta de vários
outros agentes históricos que, assim como ele, ousaram desafiar a
ditadura que se vivia na época.
A
abordagem metodológica utilizada neste estudo de caso divide-se em:
a) bibliográfica e b) pesquisa oral. Num primeiro momento, foram
lidos os principais autores que escreveram sobre o Golpe Militar de
1964, tais como René Armand Dreifuss, Caio Navarro de Toledo e o polêmico
Elio Gaspari. Sobre o Movimento Estudantil, foram lidos os seguintes
autores: José Luís Sanfelice, João Roberto Martins Filho e Luís
Henrique Romanogli. Para a história da Ação Popular, consultamos
Aldo Arantes e Jacob Gorender. Para a militância de Gildo Macedo
Lacerda, consultamos Nilmário Miranda, Betinho Duarte, Samarone Lima.
A respeito do Movimento
Estudantil Uberabense, consultamos oito caixas de documentos
pertencentes ao Arquivo Municipal, que cobrem o período de 1950 a
1974. Consultamos também os arquivos da União Estudantil Uberabense,
composto de 600 documentos, que cobrem o período de 1965 até 1995.
Na
pesquisa oral, foram ouvidos parentes em 1º grau (mãe, irmã,
ex-mulher), professores, amigos íntimos, colegas de faculdade e
companheiros de militância. Essas pessoas localizam-se em Uberaba,
Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo. Essas entrevistas geraram
mais de 15 horas de fitas e aproximadamente oitenta folhas de comunicação
via internet (e-mail). Tanto para as entrevistas ao vivo quanto para
as entrevistas via e-mail, foi utilizado um questionário padrão.
Evidentemente, outras perguntas foram feitas, quando havia
oportunidade e, principalmente, necessidade.
Para
o embasamento teórico da micro-história, foram consultados, Giovanni
Levi, Ronaldo Vainfas, Luís Resnik e Pierre Goubert. O trabalho
jornalístico de André Azevedo também foi consultado como exemplo de
aplicação de micro-história.
Antes
de prosseguirmos, duas advertências se fazem necessárias: a) alguém
poderia, achar que se trata de contribuir para a formação de um mito
em torno da figura de Gildo. Não, não é essa a intenção. Ao contrário.
O que se tentará o tempo todo é abordar o sujeito na sua dimensão
histórica; b) essa busca pelo homem histórico, e não pelo mito, não
pode, no entanto, suprimir ou ofuscar os fatos que verdadeiramente
ocorreram. É sobre esses fatos que nos debruçaremos. É claro que
muitos deles preferiríamos esquecer, justamente pela dor que nos
trazem. Mas, exatamente para que não doam em mais ninguém, é que não
podemos deixá-los no esquecimento.
02.
Uma pequena biografia
Gildo
Macedo Lacerda nasceu em Ituiutaba em 08 de julho de 1949. Estaria
hoje, portanto com 55 anos. Dona Célia, a mãe, juntamente com o pai,
seu Agostinho cuidavam de uma fazenda, fruto do trabalho de ambos.
Tiveram,
Célia e Agostinho, 4 filhos: Gilberto, que morre 3 meses depois do
nascimento, Márcia, Gildo e Maria Aparecida. Com o intuito de lhes
proporcionar uma educação mais refinada, a família Macedo Lacerda
se muda para a cidade
mineira de Uberaba em 1963 e vai morar na Praça Dr. Thomás Ulhôa nº
24. Seu Agostinho vende a fazenda em Ituiutaba e adquire outra no
município de Veríssimo, MG.
Gildo
vai estudar no Colégio Triângulo (cuja entrada era pela rua Padre
Jerônimo), onde hoje é o campus I da Universidade de Uberaba. Lá
cursa a 7ª e 8ª séries do ensino fundamental, antigamente 3ª e 4ª
séries do curso ginasial. Em 1965, transfere-se para o Colégio
Cenecista Dr. José Ferreira, onde ficaria por mais dois anos.
Os
tempos de “Zezão”, como já era conhecida a referida casa de
educação, foram os mais intensos. Gildo se dividia entre algumas
atividades: Presidente do Grêmio Estudantil Machado de Assis, ativo
participante do NATA – Núcleo Artístico de Teatro Amador -, orador
da Mocidade Espírita Batuíra e apresentador de programas radiofônicos
ligado ao espiritismo. Isso sem falar das leituras dos clássicos da
esquerda revolucionária, tais como Marx e Althusser, e da participação
no movimento estudantil, quando foi orador da União Estudantil
Uberabense (UEU) e do Partido Unificador Estudantil. Sua mãe ainda se
lembra de várias reuniões feitas em casa, onde Gildo e companheiros
discutiam, entre outras coisas, política (local e nacional), teatro e
a participam dos estudantes no movimento estudantil.
E
nessas reuniões uma sigla se torna comum na boca dos estudantes: AP,
ou seja, Ação Popular. Pode-se afirmar que Gildo, nessa época, já
teria tomado contato com o programa básico da organização e a ela
teria se aliado.
03.
A Ação Popular (AP) no Brasil e no Triângulo Mineiro
A
AP surgiu, principalmente,
dos quadros da Juventude Universitária Católica (JUC) em 1963. Após
o golpe de 64, parte de seus membros defenderam a aproximação com o
PC do B, Partido Comunista do Brasil, num processo de fusão que só
se completaria em 1973 (CAMPOS FILHO, 1997). A aproximação entre as
duas organizações era muito forte, com base na atuação do
movimento estudantil, consolidando-se com a adoção de uma linha
revolucionária semelhante: a defesa das concepções maoístas e,
sobretudo, dos princípios leninistas acerca da revolução e da forma
de organização partidária. Enfatiza Mir (1994, p. 453):
O
programa básico da AP afirmava a existência de uma nova época histórica,
a época em que o imperialismo caminha para a ruína completa e o
socialismo avança para a vitória em escala mundial. O maoísmo, ou o
pensamento de Mao Tsé-Tung, afirmava, é a terceira etapa do
marxismo, o marxismo-leninismo de nossa época, o marxismo levado a
uma etapa completamente nova.
Com
o AI-5, instaurado em 13 de dezembro de 1968, alguns dirigentes da AP
passaram a defender idéias mais radicais e o caminho da luta armada
(que originalmente era pensada apenas no campo) tornava-se cada vez
mais próximo. A partir
de 1971 passam a defender a união de todas as correntes
marxistas-leninistas (1999, MIRANDA). Como a fusão com o PC do B não
era consenso dentro da Ação Popular, o grupo dissidente passou a
denominar-se AP-ML – Ação Popular Marxista Leninista (SOARES,
2004).
Aqui,
no Triângulo Mineiro, principalmente em Uberaba e Uberlândia, a AP
vai ser introduzida por volta de 1966, por militantes vindos de Belo
Horizonte. Supõe-se que um deles teria sido
José Carlos Novaes da Mata Machado, filho do deputado cassado
pelo AI-5, Edgar Godoi da Mata Machado. Ele era estudante da Faculdade
de Direito da UFMG e teria vindo para Uberaba por volta de 1967, como
dirigente da AP, no intuito de ampliar os quadros da organização no
interior do Estado.
Numa
visita de 3 dias, outros militantes da AP, também vindos de Belo
Horizonte, entram em contato com, entre outros, Danival Roberto Alves
(2004), então estudante de filosofia na Faculdade São Tomás de
Aquino, a Fista, que assim descreve o encontro:
A
reunião foi na casa da Vilma Valim. Foi lá que Antônio José Duarte
Jácomo, egresso de JUC (Juventude Universitária Católica), e depois
de AP, cede-me a gestão dos trabalhos. Esse encontro de três dias
ocorre a portas fechadas e lacradas, em face da vigilância exercida
pela repressão.
Danival
Roberto Alves, hoje diretor do Colégio Cenecista Dr. José Ferreira,
torna-se, então, o responsável pelos trabalhos da AP em Uberaba e
região. Fazia parte da sua função, portanto, atrair novos quadros
para o movimento de resistência contra a ditadura. Ainda como
estudante, Danival passa a dar aulas no Colégio Cenecista Dr. José
Ferreira, onde, como já dissemos, Gildo vai estudar. É certo que,
com o afastamento de Danival à frente da AP, Gildo assume seu comando
no Triângulo Mineiro, até sua ida para Belo Horizonte.
E
é como membro da AP que, no final de 1966, Gildo, com 17 anos,
muda-se para Belo Horizonte. Vai morar na rua Guajajaras com as duas
irmãs, na pensão da dona Sebastiana.
Na
capital mineira, faz o 3º Científico integrado ao pré-vestibular e
em 1968, entra para a
FACE, Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de
Minas Gerais, realizando, assim, um antigo sonho seu e de seus
familiares (LACERDA, Célia, 2004).
A
UFMG era a maior base da AP em Minas Gerais e contava com mais de 60
ativos militantes. Gildo, devido a suas idéias, logo se torna uma
referência no movimento estudantil e estreita laços com José Carlos
Novaes da Mata Machado, então estudante de direito na mesma
universidade e com José Matheus Pinto Filho, militante que, em 1966
tinha organizado o Congresso da UNE (União Nacional dos Estudantes),
realizado na Igreja de São Francisco de Assis (DUARTE, 1994). Os três
passam boa parte de 1968 se revezando entre os estudos e as viagens a
serviço do movimento estudantil e da AP.
1968
seria também seria o ano da primeira prisão de Gildo.
04.
XXX CONGRESSO DA UNE: A PRIMEIRA PRISÃO
A
direção nacional da UNE sabia que a realização de seu congresso
anual ocorreria sob forte vigilância do regime militar. Não
obstante, realizá-lo seria uma importante vitória sobre a repressão
(LIMA, 1998). É neste clima de insegurança, misturado à necessidade
de se fazer algo, que é marcado para outubro de 1968 o XXX Congresso
Nacional dos Estudantes. O local: Sítio Murundu, distante 22 quilômetros
de Ibiúna, uma pequena cidade a 70 quilômetros de São Paulo. Vários
estudantes de Minas Gerais, mesmo sabendo do risco que seria
participar do congresso, dirigiram-se para lá. Entre eles, Gildo e
José Carlos. Samarone Lima (1998, p. 64/65), autor da biografia de
José Carlos Novaes da Mata Machado, descreve assim a ida de ambos
para Ibiúna:
Gildo
e José Carlos viajaram no dia 9 de outubro. Saíram de Belo Horizonte
no último ônibus e chegaram a São Paulo no dia 10. Para participar
do Congresso, teriam de encontrar Luís Custódio Costa Martins, um
estudante de Agronomia da Faculdade de Botucatu e também militante da
AP (...) O esquema para chegar ao local previa várias etapas. O
motorista iria até um ponto da rodovia, estacionaria o carro e
abriria o capô. Alguém chegaria com a pergunta-chave:
-
Você tem pneu da Volkswagen?
A
resposta deveria ser:
-
Não, eu tenho da Fenemê.
Custódio
seguiu a orientação. A resposta foi a combinada e José Carlos
desceu, junto com Gildo. Dali seguiriam para o encontro.
No
afã de se realizar o encontro, os estudantes acabaram se descuidando
das normas de segurança e para que a repressão descobrisse onde
seria realizado o Congresso foi uma questão de tempo. Ítalo Ferrigno,
delegado titular do DOPS, que comandou a operação, mais tarde diria
que, desde o dia 7 de outubro, a repressão já sabia que o XXX
encontro da UNE seria em Ibiúna (LIMA, 1998). O que se aguardava para
prendê-los era apenas o momento certo. Deixaram para a manhã do dia
12 por julgar que todos os líderes já estariam presentes. Zuenir
Ventura (1998, p.220), jornalista carioca narra assim esse episódio:
Na
chuvosa manhã de Sábado, 12 de outubro, a polícia invadiu o sítio
Murundu, nas imediações da cidade [Ibiúna], e prendeu um número de
estudantes que varia, conforme a fonte, de setecentos a mil e
quinhentos, pondo fim ao XXX Congresso da UNE que ali se realizava –
e ao sonho estudantil.
Gildo
é então preso e fichado. Abre-se um IPM (Inquérito Policial
Militar) e ele é mandado de volta para seu Estado, como era praxe
nessas ocasiões. Em Belo Horizonte, fica preso no DOPS da capital
mineira. Por ser sua primeira prisão e ter residência fixa, Gildo é
liberado 40 dias depois. Entra de vez para a clandestinidade.
Com
base no Decreto-lei 477, editado em fevereiro de 1969 pelo General
Costa e Silva, Gildo é expulso da FACE e transfere-se primeiramente
para São Paulo, mais especificamente para o ABC paulista, onde lhe
interessava estabelecer contatos diretamente com a massa trabalhadora
(SOARES, 2004). Posteriormente se dirige para o Rio de Janeiro. Sua
luta para fugir das perseguições impostas pela repressão eram
constantes.
Em
abril de 1969, um “mini” congresso é realizado num sítio em
Jacarepaguá (WEID, 2004), e Gildo, então presidente do DCE de Minas
Gerais, é eleito um dos vice-presidentes da União Nacional dos
Estudantes (UNE) para a gestão 69/70. Na presidência, Jean-Marc van
der Weid, antigo militante da AP.
Esta seria a última diretoria, uma vez que a entidade seria
totalmente desarticulada pelas forças da ditadura. Juntamente com
Jean Marc e Gildo, foram eleitos também: Honestino Guimarães,
presidente da Federação dos Estudantes de Brasília; José Genoino
Neto, presidente do DCE do Ceará; Helenira Resende, do Centro Acadêmico
de Letras da USP; Humberto Câmara, da UEE de Pernambuco e Ronald
Rocha, do Rio de Janeiro (ROMAGNOLI & GONÇALVES 1979).
Em
1972, Gildo, já como dirigente nacional da Ação Popular
Marxista-Leninista (APML), foi deslocado para Salvador, BA, “onde
dirigiu a implantação do trabalho camponês da organização no
Nordeste” (DUARTE, 1994, p. 42). Na cidade baiana, utilizava o nome
de Cássio Oliveira Alves, sob o qual vivia e trabalhava (MIRANDA,
1999). É provável que, durante sua estada em Salvador, Gildo
conhecesse aquela que viria ser a sua companheira e com quem teria uma
filha, batizada com o nome de Tessa: Mariluce Moura, jornalista baiana
e também militante da AP.
Com
medo de que sua família em Uberaba fosse molestada pelos agentes da
repressão, Gildo enviava suas cartas para um amigo do pai em Veríssimo
e este, então, as repassava a seu pai Agostinho.
Numa
dessas cartas, ele manifestava a tristeza por não receber notícias
da família e a saudade que sentia de todos. Incomodava-lhe também o
fato de não poder apresentar sua companheira, Mariluce, a seus
familiares.
Muito
tempo sem ver a família, o desejo de que seus pais conhecessem
Mariluce e, sobretudo, o número de prisões efetuadas pelo governo Médici
fazem o casal Gildo e Mariluce, no começo de Outubro de 1973, vir
para o sítio da família, em Veríssimo. Nesse tempo, Mariluce já
suspeitava estar grávida. A filha Tessa nasceria 8 meses após a
morte do pai.
05.
AS TORTURAS E A MORTE
Gildo
e Mariluce foram presos no dia 22 de outubro de 1973, logo que
regressaram para Salvador. Ele, por volta de meio-dia, ao sair de
casa. Ela, uma hora depois, em frente ao Elevador Lacerda, importante
ponto turístico da capital baiana.
Foram
levados, junto com outros presos, para a Superintendência da Polícia
Federal da capital baiana. Mariluce estava grávida de 2 meses,
confirmando suas suspeitas. À noite, ela e Gildo foram separados e
cada um foi para uma sala. Nunca mais se veriam.
No
dia seguinte, 23, Mariluce foi transferida para o quartel do Forte de
São Pedro. Gildo, juntamente com Oldack Miranda, jornalista de
Salvador, foi levado ao Quartel do Barbalho. Gildo é, posteriormente,
transferido para o DOI-CODI do Recife, onde foi violentamente
torturado. Por ser dirigente nacional da AP, seus algozes, usando as
mais cruéis formas de tortura, tentaram
arrancar dele todas as informações possíveis. Como Gildo
nada dizia, foi brutalmente assassinado no dia 28. Neste mesmo dia,
Mariluce recebe a notícia de que Gildo fora levado para uma longa
viagem.
No
dia 1º de novembro, um oficial dizendo-se capelão, conta-lhe que
Gildo estava morto desde 28 de outubro. Para confirmar a história,
apresentava-lhe um recorte de jornal que trazia a versão oficial de
sua morte.
06.
A FARSA
Márcia
Macedo Lacerda, irmã mais velha de Gildo, então com 25 anos,
assistia ao Jornal Nacional naquele 1º de novembro de 1973. Com sua
nacionalmente conhecida voz, Cid Moreira assim anunciava (MIRANDA e
TIBÚRCIO, 1999, p. 495):
Entre
outras prisões, caiu em São Paulo José Carlos Novaes da Mata
Machado e, em Salvador, Gildo Macedo Lacerda. Interrogados,
"abriram” um ponto com o dirigente “Antônio”
[possivelmente Paulo Stuart Wright, outro dirigente da AP] às 19:30
do dia 28, à avenida Caxangá com general Polidoro, no Recife. À
hora aprazada um homem forte, louro, branco, percebendo a armadilha,
abriu fogo contra seus companheiros aos gritos de “traidores”.
Mesmo ferido, teria escapado depois de deixar Gildo morto e José
Carlos mortalmente ferido.
Essa
foi a versão oficial da morte de Gildo. Esses “tiroteios” era uma
das formas mais usadas pela repressão para justificar a morte de
algum preso político. Os militantes da AP, ao ouvirem a versão do
Governo, imediatamente perceberam a farsa.
Os
restos mortais de Gildo nunca foram devolvidos à família.
Primeiramente, o corpo foi para a vala comum no Buraco do Inferno. Em
1986, foi transferido para outra vala comum, no Cemitério Parque das
Flores.
07.
A TRAIÇÃO
Em
1971, Gilberto Prata não queria mais ser revolucionário. Cansara da
militância. Saiu da AP, foi cuidar da vida. Providenciou documentos e
resolveu acompanhar as coisas de longe. Entretanto, em fevereiro 1973
foi procurado pelo CIEX – Centro de Informação do Exército
e decidiu colaborar (ainda hoje não se sabe bem porque).
Sua missão: fingir voltar à militância na AP, descobrir onde
estavam escondidos suas principais lideranças e entregá-las para a
repressão. No comando da operação, o delegado Sérgio Paranhos
Fleury, responsável pelo DOPS de São Paulo e um dos mais temidos
torturadores do país (LIMA, 1998).
O
trunfo que Gilberto tinha nas mãos é justamente o que torna sua traição
mais chocante: ele era irmão de Maria Madalena Prata Soares e cunhado
de José Carlos Novaes da Mata Machado, importantes líderes da AP
naquele momento. Ao primeiro sinal de que queria voltar às operações
da AP, foi recebido com entusiasmo pela irmã e pelo cunhado.
A
partir daí, Gilberto serviu de “guia” para a repressão
policial-militar. Quando os agentes perdiam José Carlos, Madalena,
Gildo e outros militantes que passaram a ser seguidos, Gilberto
restabelecia o elo. Isso podia ser em Salvador, no Recife, Rio de
Janeiro e em São Paulo.
Em
1993, em depoimento perante a Comissão Externa sobre os Mortos e
Desaparecidos da Câmara Federal, onde fica público seu papel,
Gilberto revela (MIRANDA e TIBÚRCIO, 1999, p. 498):
No
período [maio a outubro de 1973], quem era da AP e entrou em contato
comigo direta ou indiretamente, como José Carlos, Gildo, Madalena,
dançou [foi preso] e tenho certeza absoluta de que se alguém
pode dar conta de onde estão os corpos [dos que foram mortos] é o
pessoal do CIEX”.
De
algum modo, a morte de Gildo e de vários outros militantes da AP
decorreram do “trabalho” de Gilberto Prata Soares como guia da
repressão.
08.
AS MÃOS SUJAS.
A
epígrafe que abre este trabalho cita um trecho da peça de teatro
“As mãos sujas” de Jean-Paul Sartre, importante filósofo
existencialista do século XX, lançada em 1947. Nesta obra, Sartre
tenta mostrar que, em certos momentos da vida de um militante de
esquerda (e isso vale também para qualquer um de nós), mais
importante do que discutir qual o caminho a ser tomado é tomar um
caminho. Ou seja, é importante sujar as mãos, envolver-se com as
questões que estão ao nosso redor. Não nos cabe, ao menos nessa
hora, dizer se o caminho de luta tomado por Gildo e por tantos outros
foi ou não o mais correto. Interessa-nos mostrar que alguns não se
omitiram diante dos problemas que tinham de ser enfrentados, mesmo
tendo que pagar com suas próprias vidas.
Mais
que dar nome ao Diretório Central dos Estudantes, Gildo Macedo
Lacerda, com sua trajetória de vida, nos ensina que a liberdade deve
ser perseguida sempre e que somos todos responsáveis por ela.