FLAVIO AMÉRICO TONNETTI

Graduando em Filosofia na Universidade de São Paulo.

 

Espetacularização: a decadência e o resgate – 

Notas sobre a Filosofia de Jean-Jacques Rousseau

Flavio Américo Tonnetti

Resumo:

Este trabalho analisará a passagem do homem natural e sua transformação através da esfera social que, marcadas pelo olhar do outro, constituirão para Rousseau uma espécie de espetáculo, este por sua vez de extrema relevância e determinante nos processos do desenvolvimento social.

Palavras-chaves: Rousseau, representação, olhar do outro, espetáculo, exposição

Abstract:

This paper will analyze the passage of the natural man and its transformations through the social sphere that, marked for the other’s view, will constitute for Rousseau a kind of show, this in turn of extreme determinative relevance for the social development processes.

Key Words: Rousseau, representation, other's view, spectacle, show

 

Jean-Jacques Rousseau (1712-1778)Do homem natural ao homem social. Esta passagem, nos dirá Rousseau, será marcada por uma espécie de contrato ou pacto: um conjunto de convenções fundamentais que, mesmo não tendo sido formalmente declaradas, resultam implícitas na vida em sociedade. Este contrato social, que inclui compromissos recíprocos, faz com que nós nos alienemos em nossa integridade, cada um dando-se enquanto indivíduo - com nossa pessoa e posses - e se colocando sob uma vontade geral; em contrapartida, recebemos esse todo comum, fruto dessa vontade coletiva. No entanto, esta passagem, sendo algo não proveniente da Natureza e sim das convenções humanas, ocorrerá como uma espécie de degeneração do homem, um certo distanciamento, um afastamento de si: o amor de-si-mesmo transformado em amor-próprio; o ser relegado ao parecer, a não correspondência entre o agir e o falar, entre o agir e o discurso; a origem e o progresso da degeneração do homem, enfim, uma ordem social que, em todas suas instâncias, contraria a Natureza. Instaurando assim uma série de dicotomias que marcarão a obra e a filosofia de Rousseau, ao ler a sociedade e o homem em seu contrato.

Ao contrário do homem social, que vive em uma desigualdade mascarada onde a tranqüilidade reinante não passa de um conjunto de miragens e disfarces que vai, por assim dizer, escondendo o inferno da existência social e a predominância do mais completo antagonismo entre os indivíduos (Salinas 1997, p.38); o homem natural idealizado por Rousseau vive em si mesmo, na fartura e abundância, e não depende de nada, a não ser de si próprio e de sua força, para manter-se vivo e livre, e é assim, desta maneira, realmente feliz.  Mas, a medida em que um homem encontra outros e se agrupa, passa a afastar-se de si mesmo. O “outro”, enquanto elemento, passará a ser extremamente importante e crucial na vida em sociedade, pois é justamente para esse novo olhar que nos projetaremos. Eis que, nós homens, antes livres, agora acostumados[1], vivemos presos e esta prisão nos mostrar-se-á de diferentes aspectos, sendo um deles esta nossa predileção e dependência à opinião do outro.

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Nascendo livres, os homens se associam quando as condições que os cercam são de tal maneira adversas que atentam contra sua conservação no estado natural, então, em uma tentativa de unir forças para não perecerem, encontram esta forma de associação a qual chamamos corpo político e que só será possível graças ao contrato e este terá ainda que dar conta de fundamental problema: o de defender e proteger “a pessoa e os bens de cada associação, de qualquer força comum, e pela qual, cada um, unindo-se a todos, não obedeça, portanto, senão a si mesmo, ficando assim tão livre como dantes” (Rousseau, 1994b, I/4).

Se o contrato soluciona o problema da conservação sem cercear nossa liberdade, o que teria então ocorrido neste percurso, nesta passagem, para que degenerássemos a tal ponto e de tal maneira que levasse Rousseau à sua afirmação contundente de que por toda parte vivemos acorrentados?

A resposta, talvez, possa ser encontrada no que chamarei aqui de “desrespeito”, ou “descaso”, para com a soberania da vontade geral. O homem - somos levados a crer - parece fadado à representação. Por um motivo ou por outro, onde quer que esteja, e em todos os âmbitos, o homem representa - desde as línguas e o pensamento[2]; passando pela vida em sociedade e pela política; até culminar nas artes, grau máximo de representação. O fato de ser o homem este ente ator não é em si um problema, é algo que ocorre na própria passagem do estado natural ao estado social com a criação daquele corpo político, como nos fará ver Salinas (1997) em seu Paradoxo[3]. O problema surge quando, o homem, ao querer representar demais, erra, ao pretender, na vida política,  querer no lugar do outro. Tudo se pode representar, exceto a vontade alheia, exceto a própria vontade que, sendo representada, não é e nem pode ser signo, mas somente “outra” no lugar daquela. Alienar a soberania é deixar de ocupar um lugar que lhe é próprio, fundamental e de direito, é atentar contra a soberania da vontade geral, é a degeneração do corpo político, e é neste sentido que penso em um “desrespeito”, em um “descaso”. Ora, e quando ocorrerá este grau máximo de degeneração e de descaso, senão quando os cidadãos elegem deputados ou representantes para querer em seus lugares? Pois,

Logo que o serviço público deixa de ser a principal ocupação dos cidadãos, e estes preferem seu interesse particular ao interesse público, o Estado se aproxima de sua ruína. É preciso ir ao combate, e então pagam às tropas e deixam-se ficar em casa. É preciso ir ao conselho, mas nomeiam deputados e permanecem em casa. Por força da preguiça e do dinheiro, tem soldados para servir à pátria e representantes para vendê-la (Rousseau, 1994b, III/15).

Sendo a vida pública representação mesmo quando não degenerada em seu grau máximo - a de representação por deputados - é preciso sim que representemos e é, portanto, necessário encontrar a melhor forma de o fazê-lo. Isto significa que deveremos encontrar uma forma em que sejamos ao mesmo tempo representantes e representados, onde ocupemos o nosso próprio lugar e de nossa vontade, para afirma-la em si mesma. E isto só se dá “no momento em que o povo está legitimamente reunido em corpo soberano” onde “toda jurisdição de governo cessa, o poder executivo suspende-se, e a pessoa do último cidadão é tão sagrada e inviolável quanto a do primeiro magistrado porque onde se acha o representado não há representante” (Rousseau, 1994b, III/14); assim teremos nas assembléias populares um ambiente onde o hiato entre a pessoa do ator e a figura do personagem esteja reduzido, onde possamos interpretar a nós mesmos e somente a nós, e onde todos juntos, atuando ao mesmo tempo, sejam simultaneamente espectadores e espetáculo.

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Reconhecer que existem graus, maiores e menores, de representação é admitir uma escala, entre um extremo e outro – inclusive dentre aquelas dicotomias citadas em princípios deste discurso – e que existem para as coisas diferentes medidas. Seja no âmbito político do Contrato, seja no repúdio pelo teatro na Carta a d`Alembert, ou mesmo na educação do Emílio, existirá sempre uma gradação, dum melhor a um pior, dum menos a um mais.

Entretanto, é necessário estar atento em nossa leitura e cuidar para que não tomemos a medida como aplicação, a escala como programa. Salinas nos alertará para isto ao dizer que “o universo da política é necessariamente este domínio no qual não pode haver adequação ou coincidência perfeita entre a idéia e a realidade” pois “a própria idéia é definida como princípio articulador, o pólo diretor, a norma” e “a medida do possível não é o existente, mas o ideal”. Outro que também nos chamará atenção para isto é Milton Meira Nascimento (1986):

fazer da escala [contrato social] um programa [projeto político] é atribuir um papel secundário às condições reais, concretas, a partir das quais se pode esboçar um projeto político. A escala, o instrumental, na sua totalidade, não pode estar em harmonia com a realidade factual empírica que está sendo objeto de análise. Mas, esta realidade deve corresponder a um determinado ponto da escala.

e ainda,

o político, segundo Rousseau, não elabora antes o modelo ideal e depois tenta realiza-lo na prática. A eficácia de sua ação reside na capacidade com que consegue captar os usos, os costumes e as opiniões, isto é, as características essenciais de um povo, as condições específicas nas quais ele deve agir.

E isto se observa claramente quando Rousseau, ao escrever as Considerações sobre o governo da Polônia e o Projeto de Constituição para Córsega, lida com a realidade e não com a idealidade, no entanto se ainda sobrarem dúvidas nos resta ainda a declaração, anterior ao início do contrato de que “se fosse príncipe ou legislador, não perderia o tempo em dizer o que deve faze-se. Efetuá-lo-ia ou, então, me calaria” assim, citando novamente Milton Meira, fica “claro, portanto, que a ação política não se guia por um modelo ou por um projeto abstrato, idealizado como a melhor forma de governo possível”.

Estendendo esta questão para a educação e para o Emile, onde o ideal pareceria-nos menos impossível em sua aplicação e onde talvez pudéssemos encontrar até meios para a realização de tal projeto pedagógico, isto de nada valeria, pois mesmo nosso querido Emile estaria condenado, juntamente com sua amada Sophie, a perecer de toda sorte de desgraças e descontentamentos e à viver em profunda infelicidade e desilusão. O que dizer então neste caso? Teria Rousseau fracassado em seu projeto? A esta questão, creio encontrarmos a solução operando em um outro registro, não do fracasso, mas do alerta, de que devemos, sempre, considerar o real, o domínio das paixões humanas e da opinião pública.

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Da mesma forma que na música, em oposição ao tédio que acompanha de perto toda harmonia; encontramos no canto das vindimadoras - analisado minuciosamente por Starobinski (1991)- a mais pura melodia, em uníssono, que nos apresenta e nos remete a maior naturalidade possível, à inocência e à pureza, onde a degradação é menor; podemos também colocar a simplicidade da festa em oposição à obscuridade do teatro. Trata-se, nestes e em outros âmbitos, de um embate, uma oposição do amor e da natureza à civilização, tema evidente principalmente na Nova Heloísa, mas fundamental também no Contrato e no Emílio. Na verdade, as vindimas, como todo o resto, “são apenas um pretexto, uma causa ocasional, (…) seu verdadeiro objeto está na abertura dos corações” (NASCIMENTO). A questão do passional, do sentimento e do coração se fará de extrema importância, tanto na degeneração do homem quanto em sua recuperação, e preocupará Rousseau desde seus primeiros escritos, ao indicar que, para o Senhor de Sainte-Marie: “O objetivo que devemos nos propor na Educação do jovem é o de forma-lhe o coração, o juízo e o espírito; e isso na ordem em que estou citando” (grifos meus) (ROUSSEAU, 1994c); até os últimos, quando, pela boca do Emile, afirma que “a sabedoria primeira está em querer aquilo que é, e acertar o coração pelo próprio destino” (ROUSSEAU, 1994a).

No entanto, é necessário observar que, a mesma festa, preferida por Rousseau, onde predomina a união dos homens e o cair dos véus, é que, em princípios da associação dos homens, iniciará sua corrupção. É necessário atentar então para os moldes deste paradoxo, desta “festa” que é ao mesmo tempo corruptora e redentora.

Observemos as considerações de Salinas sobre a festa em sua origem:

A festa primitiva é essencialmente ambivalente: ela é laço, união, fusão, no momento mesmo em que é diferenciação, em que é separação entre um sujeito que vê, compara e prefere e um objeto que se mostra ou um outro sujeito que se exibe como objeto. Os homens reúnem-se, separando-se num mesmo movimento: reúnem-se, pois abandonam o isolamento primitivo, mas separam-se de novo na medida em que se destacam, distinguem-se uns dos outros ao se oferecerem em espetáculo, uns para os outros, e ao entrarem em conflito, em disputa ou em contradição com seu duplo. (SALINAS, p. 45).

Assim, a festa traria em si o germe de sua corrupção. Reunidos e ociosos, os homens, encontraram no canto e na dança, os “verdadeiros filhos do amor e do lazer”. Juntos, brincando e se desenvolvendo, eles encontram na festa um preenchimento para esta nova temporalidade, criada a partir da associação, do pacto ou contrato, e podem, nestes momentos de ociosidade, intensificar os laços sociais que unem o grupo. Mas, o amor de-si-mesmo degenerando em amor-próprio, faz com que estes mesmos foliões, impulsionados por esta nova mola propulsora do reconhecimento, ajam segundo o olhar do outro, buscando o apreço da opinião, numa diferenciação que o afastará gradualmente de si mesmo, de sua essência e irá, pouco a pouco, construindo um padrão coletivo, uma série de costumes e hábitos, uma moral social.

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A pitié, paixão natural derivada do amor de-si-mesmo, que nos faz sensibilizarmo-nos com nossos semelhantes, em uma espécie de empatia, comiseração e compaixão, já anuncia desde o princípio esta vocação humana: a de se projetar para fora de si mesmo. Evidência de que no embate contra a representação devemos nos curvar, pois não há como combater o que está em nós constituindo-nos e não pode haver luta contra si próprio. Ao contrário, é preciso entender este movimento da alma humana e operar com estes mesmos elementos, que nos são muito caros e inerentes, e transforma-los, de tal maneira que, ao invés de operarem o mal, degenerando-nos, operarão o bem, e restituirão nossa liberdade em um resgate de nós mesmos e de nossa “dignidade” humana.

Portanto, para entender o homem em seu espetáculo e transformá-lo é necessário recorrer às paixões, presentes, sobretudo, na opinião pública. Rousseau só se fará ouvido ao recorrer a estas mesmas paixões da opinião pública, ao utilizar-se das mais lindas paisagens libertas do véu e devolvidas ao brilho, escrevendo um belo romance - que toque os corações, ao invés de um tratado -, escrevendo La Nouvelle Heloise:

Imaginai a variedade, a grandeza, a beleza de mil surpreendentes espetáculos; o prazer de ver ao redor de si apenas objetos inteiramente novos, pássaros estranhos, plantas curiosas e desconhecidas, de observar de alguma maneira uma outra natureza, e de se encontrar em um novo mundo. Tudo isso constitui para os olhos uma mescla inexprimível cujo encanto aumenta ainda pela sutileza do ar que torna as cores mais vivas, os traços mais marcados, aproxima todos os pontos de vista; as distâncias parecem menores que nas planícies, onde a espessura do ar cobre a terra de um véu, o horizonte apresenta aos olhos mais objetos do que ele parece poder conter: enfim, o espetáculo tem não sei o que de mágico, de sobrenatural que arrebata o espírito e os sentidos; esquece-se de si mesmo, não se sabe mais onde se está” (ROUSSEAU, 1963, I/XXIII).

Repare como o cidadão de Genebra instiga nossos sentidos. Ele recorre a imagens, nos dá movimento. Ele quer nos fazer salivar, quer tocar nossa pele, quer mobilizar nosso coração, quer mover nossa compaixão e quer nossa pitié aflorada. Assim - ao atiçar a curiosidade do voyer - do grande público se fará conhecido e, por de trás das cartas de dois amantes, eis que se revela o escritor do Contrato que, engenhoso, faz excelente uso mobilizador dos costumes e da opinião, pois não é simples recurso que usa, mas um duplo: exige as paixões no texto e no gênero.

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Como pode o governo agir sobre os costumes? Respondo que é através da opinião pública. Se na solidão nossos hábitos nascem de nossos próprios sentimentos, na sociedade eles nascem da opinião dos outros. Quando não se vive em si mesmo, mas nos outros, são os julgamentos deles que ordenam tudo; nada parece bom ou desejável aos particulares além do que o público aprovou, e a única felicidade conhecida pela maior parte dos homens é a de ser considerado feliz. (ROUSSEAU, 1967, p. 144).

Não podendo vencer essa nossa nova natureza social, império da opinião pública e dos costumes, cujo referencial imediato está em Locke na Law of Opinion[4], o que nos resta, e também a qualquer Governo que pretenda preservar seus cidadãos, é operar com essa nova ordem, em uma ação restauradora, do homem em sua natureza.

Sabemos, neste ponto, que anular as paixões dominantes é empreitada impossível, portanto, todo esforço deve ir no sentido de fazer destas mesmas paixões o suporte principal para nossa ação: a de estabelecer o querer geral como querer dominante e diminuir assim a força nefasta dos interesses particulares, do querer comezinho e individual, tão presentes nesta sociedade do espetáculo. Para isso deve-se, como nos recomenda Rousseau nas Considerações sobre o governo da Polônia, incentivar o amor à pátria, convertendo o “espetáculo”, de patologia à cura, de algoz à benfeitor; e sobre isto é, também Salinas, contundente ao afirmar que, em relação ao amor à pátria deve-se fazer “culto sagrado”. Salinas nos indicará ainda os caminhos para essa empresa - de transformar a pátria em “religião”: “por meio de jogos e espetáculos cívicos e por meio da educação que fortaleça a busca do reconhecimento público” sendo “o método adequado é tornar a Pátria imaginária um espetáculo, é o de encarná-la através de cerimônias” e “criar mecanismos através dos quais se constitua um espaço público e a “opinião pública” efetivamente prevaleça como instância suprema de avaliação de conduta” (SALINAS, p. 126-127).

O único meio de impedir a corrupção é implantar estes jogos e festas cívicas que tenham por único objetivo suscitar o amor à pátria, instituindo assim o patriotismo como pilar fundamental desta sociedade e tornar a pátria sempre presente através de múltiplas formas de representação, utilizando-se inclusive de símbolos e adereços.

Teremos então pintado uma nova festa social, onde todos se mostrarão a todos, onde estarão abertos os corações e onde teremos realizada a epifania da transparência tão sonhada por Rousseau. Esta festa, à imagem daquela das vindimas que faz surgir a imagem de inocência dos primeiros tempos e que não tem, contudo, “em sua intenção, nada de “memorativo” nem comemorativo”, e que nasce “de improviso, por geração espontânea, no concurso de um grupo humano em que ninguém tem mais nada a esconder daquilo que pensa e daquilo que sente” e onde

os homens não estão alegres porque foram convidados para uma festa: esta é apenas a manifestação visível da alegria que os homens sentem em encontrar-se reunidos – de uma alegria cujo excesso e cujo transbordamento inesperados explodem nos gestos exteriores de júbilo, em jogos, cerimônias, cantos... (STAROBINSKI, 1991, p. 103)

Será a mesma em que o pai enternecido, olhando para o filho, dirá: - ama o teu país![5]

Assim, aquilo que é, no plano do indivíduo, paixão degenerada em amor-próprio, será, no plano coletivo, benéfico patriotismo onde, citando novamente Starobinski (1991):

os privilégios da pureza e da inocência encontram-se reconquistados em conseqüência da confiança absoluta que abre as almas umas às outras. A alienação total pela qual os seres se oferecem e se tornam mutuamente visíveis lhes restitui finalmente o direito de existir como pessoas autônomas e livres; a partir daí, não sofrem solidão nem servidão; sua existência pessoal é justificada e sustentada pelo reconhecimento de outrem, fundada em uma benevolência unânime.

Do homem social ao homem natural. Aqui, temos findado um movimento contrário à degeneração do homem, encontrando assim, em Rousseau, a maneira apropriada de - parafraseando o título de Starobinski - vencer o obstáculo e restaurar a transparência. Assim, o veneno é transformado em antídoto e a decadência em resgate.

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Referências Bibliográficas

Nascimento, Milton Meira. Entre a escala e o programa. In: Revista Discurso. São Paulo. n 17, 1986.

__________. Opinião, Opinião Pública e Lei dos Costumes. In: Opinião Pública e Revolução, São Paulo, Edusp-Nova Stela, 1989.

PRADO JR, Bento. Gênese e Estrutura dos Espetáculos. In: Estudos CEBRAP. São Paulo. n 14, 1976.

________. A força da voz e a violência das coisas. In: ROUSSEAU, Ensaio Sobre a Origem das Línguas. Campinas. Editora da UNICAMP, 1998.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. A Nova Heloísa. São Paulo. Brasil Editora S.A. 1963.

________. Emile e Sophie ou os Solitários. Florianópolis. Editora Paraula. 1994(a).

________. Lettre a d´Alembert. Paris. Guarnier-Flammarion. 1967

________. O Contrato Social. Campinas. HUCITEC e Editora da UNICAMP, 1994(b).

________. Projeto Para a Educação do Senhor de Sainte-Marie. Florianópolis. Editora Paraula. 1994(c).

Salinas Fortes, Luiz Roberto. Paradoxo do Espetáculo. São Paulo, Discurso Editorial, 1997.

Starobinski, Jean. Jean Jacques Rousseau: A Transparência e o Obstáculo. São Paulo. Cia das Letras, 1991.

 

[1] Sobre a passagem do natural ao social e comentando a formação das primeiras nações naturais e da família, Salinas (1997) nos fala em hábito. O hábito é o que levaria o grupo a permanecer unido, o que poderia ser visto já aqui como uma espécie de perda da autonomia. Salinas prosseguirá falando desta nova temporalidade, pós-natural das primeiras sociedades e da família, onde em princípio, existia a decisão por parte dos elementos do grupo de permanecerem juntos, decisão esta que a posteriori será conservada continuamente, como por hábito ou costume, tendo sido aquela primeira decisão esquecida, somente se faz a manutenção de um modelo pré-existente. Difícil é crer que uma vez juntos, os homens desatariam seus nós e retornariam para um estado de Natureza. A necessidade motivou as primeiras associações, mas o costume as perpetuou. Parece ser este também o caso dos escravos que acostumados se submetem ao julgo dos senhores e podendo sacudir este julgo não o fazem. E o que dizer da ordem social que é o “direito sagrado que serve de base a todos os demais” (Contrato, livro I, cap. 1) e que é fundado em convenções? E o que são convenções senão hábitos e costumes cristalizados?

Temos então uma sociedade acostumada, pouco capaz de volver às suas origens e de resgatar sua liberdade. Vemos a Lei, signo da vontade soberana, cristalizada e, assim sendo, não tornamos a nos indagar, de tempos em tempos, sobre sua utilidade e finalidade e, acostumados, vemos o Estado ruir e o Soberano degradar-se, enquanto em casa quedamos atados aos comezinhos interesses particulares.

[2] Sobre a linguagem ver ensaio de Bento Prado Jr. (1998): A força da voz e a violência das coisas.

[3] Salinas (1997): “para viver em sociedade os indivíduos devem viver como se não fossem meramente indivíduos, como se fossem suportes de uma outra realidade que os ultrapassa” [pág 108].

[4] A respeito desta questão Milton Meira (1989) em capítulo intitulado “Opinião, Opinião Pública e Lei dos Costumes” escreve: “quando se trata da reputação, da consideração, do julgamento público, o estatuto da opinião aparece como o de uma instância julgadora, detentora de uma verdade, inscrita talvez na natureza do homem como uma espécie de razão, juiz do bem e do mal. É este o sentido de Law of Opinion de John Locke, e será retomado por Rousseau quando este se refere à “mais importante de todas as leis, que não se grava nem no mármore nem no bronze, mas no coração dos cidadãos”.

[5] No repudio ao teatro presente na Carta, Rousseau narra uma experiência - analisada por Starobinski no capítulo 5, no subtítulo A Festa, da obra citada - onde seu pai, emocionado e sentimentalmente envolvido ao final de uma destas festas, o teria abraçado e, enternecido, lhe dito: “Jean Jacques, ama o teu país. Vês estes bons genebrinos? São todos amigos, são todos irmãos, a alegria e a concórdia reinam no meio deles...” (Lettre à d’Alembert - Paris, Garnier-Flammarion, 1967, pág. 248)

Interessante é notar aqui que, também o repúdio de Rousseau ao teatro não se fará tão somente por ser o teatro essa opacidade, essa antro escuro onde se reúne uma pequena porção de pessoas para esquecerem de si mesmos e de outrem, e onde a representação atinge o máximo de degeneração. Seu repúdio reside sobretudo no medo de que o teatro opere mudanças nos costumes, mudanças estas imprevisíveis e irreversíveis e cujos riscos e danos não podemos calcular.

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Última atualização: 03 dezembro, 2004.