Sobre
a Relação entre Revelação e Filosofia no Fasl al-Maqal de
Averróis
Daniel
Lara de Mário
RESUMO
Este
artigo procede à análise do Tratado Decisivo Determinando a
Conexão Entre a Lei e a Sabedoria, escrito por Averróis, e
contempla a investigação à qual este se lança, a delimitação
do problema e a demonstração da solução proposta, as conseqüências
decorrentes de tal solução, e a conclusão anunciada já no título
da obra, cujo propósito é determinar o estatuto da Filosofia
frente à Lei islâmica, e o modo de proceder de uma em função
da outra, mostrando que a atividade filosófica é obrigatória
aos que são aptos a esse procedimento.
PALAVRAS-CHAVE: Averróis; Filosofia islâmica;
Demonstração; Aristotelismo Medieval.
ABSTRACT
This article proceeds to the
analysis of the Decisive Treatise Determining the Connection
Between the Law and the Wisdom, written by Averróis, and it
contemplates the investigation to the one which he rushes; the
delimitation of the problem and the demonstration of the proposed
solution; the current consequences of such solution; the
conclusion already announced in the title of the work, whose
purpose is to determine the statute of the Philosophy front to the
Islamic Law; and the way of proceeding of one in function of the
other, showing that the philosophical activity is obligatory to
the that are capable to that procedure.
KEYWORDS: Averroes; Islamic
Philosophy; Demonstration; Medieval Aristotelism. |
Este
artigo examina o Tratado Decisivo Determinando a Conexão Entre a Lei
e a Sabedoria
(Kitab Fasl al Maqal wa taqrir ma bayn ash-shari’a wal-hikma min
al-ittisal), escrito por Averróis em 1179/80. Esta obra estabelece
a legitimidade da interpretação alegórica da Lei Revelada,
ou antes, estabelece o caráter de obrigatoriedade de se proceder a uma
demonstração da Lei através do silogismo demonstrativo,
procedimento aristotélico que é assumido de maneira categórica por
Averróis enquanto a forma da Filosofia, que aqui deve ser entendida
como a Sabedoria
constante do título da obra. Estão aqui contempladas a investigação
à qual Averróis (1126/1198) se lança; a delimitação do problema e a
demonstração da solução proposta; as conseqüências decorrentes de
tal solução; a conclusão anunciada já no título da obra. O Tratado
Decisivo demonstra a conexão existente entre a Lei e a Filosofia,
conexão que não significa acordo, nem harmonia, nem conciliação, nem
reconciliação, muito menos que a investigação filosófica seja uma
mera ferramenta para a interpretação do Corão (De Libera,1996,10).
Seu propósito é determinar o estatuto da filosofia frente à religião
revelada e o modo de proceder de uma em função da outra, mostrando que
a atividade filosófica é obrigatória (wajib) aos muçulmanos,
mas apenas aos que são aptos a esse procedimento. Como é verdadeiro o
conhecimento que se obtém através da demonstração,
este não contradiz o conhecimento verdadeiro consignado no Corão. Convém
ressaltar que o Tratado Decisivo, antes de ser um texto de
filosofia, constitui-se em uma fatwâ
(De Libera,1996,11), uma resposta legal a uma questão
formulada nos termos e nos registros da jurisdição religiosa.
Averróis
anuncia qual é e sob quais procedimentos se dará a sua investigação,
e esta se constitui na investigação da natureza da Filosofia frente à
Revelação, sob o ponto de vista da própria Revelação:
... a intenção
deste ensaio é inquirir, desde o ponto de vista positivo da religião
revelada, se por ventura a especulação sobre a filosofia e as ciências
lógicas é permitida segundo a religião revelada, ou se está
proibida, ou se esta a prescreve, bem seja a modo de recomendação, bem seja a
modo de obrigação. (Averróis,1996,§1,103).
Esta
divisão apresentada por Averróis na investigação a que se lança diz
respeito às cinco
qualificações que as ações humanas recebem no Islã, que são os
atos permitidos (mubah), indiferentes do ponto de vista da
Lei: a realização ou não destes não implica em castigo ou
recompensa; os atos recomendados (mandub ‘ilay-hi), cuja
realização implica em uma recompensa mas a não-realização não
implica em castigo; os obrigatórios (wajib), cuja realização
implica em recompensa e a não-realização em castigo; os atos desaconselhados
(makruh), cuja realização pode implicar em um castigo, mas a não-realização
não implica em recompensa; e os proibidos (haram), cuja
realização traz necessariamente castigo.
É
necessário estabelecer o caráter de obrigatoriedade da Filosofia ao muçulmano,
e Filosofia através da demonstração, de início estabelecendo não é
desaconselhada nem proibida. Para isso, Averróis apresenta uma definição
muito própria da Filosofia, sendo esta o estudo dos seres criados na
medida em que conduzem ao conhecimento de Deus : Se de um lado o ato
de filosofar não consiste em outra coisa que o exame racional dos
seres, e refletir sobre estes no
sentido de que constituem a prova da existência do Criador...(Averróis,1996,§2,103),
portanto, quanto mais excelente o conhecimento acerca dos seres criados,
provado ao longo do texto que este é obtido por meio da demonstração,
mais excelente será o conhecimento acerca do criador.
Averróis afirma que o chamamento ao exame racional destes mesmos
seres criados está expresso na própria Lei: Por outra parte, o
texto revelado recomenda, às vezes, o estudo desses seres existentes e
a ele exorta...(Averróis,1996,§2,105); logo, este exame racional
dos seres criados, que é a própria Filosofia, está recomendada na própria
Lei, e àquela só resta a possibilidade da recomendação ou da
obrigatoriedade. Estão descartados o desaconselhamento e a proibição.
Para
mostrar que não se trata de um mero convite, Averróis apela para a
autoridade do Corão, citando trechos para embasar sua afirmação
da obrigatoriedade:
Que
a Revelação nos apela a refletir sobre os seres existentes e possuir
conhecimento sobre eles por meio da razão está claro e expresso em vário
versos do Livro de Deus... Assim, por exemplo, disse: “Considerai vós
que possuem entendimento”, que é um enunciado unívoco de característica
obrigatória do uso do silogismo racional, ou do racional e do jurídico.
Ou outro enunciado divino: “Porque não põem vocês a atenção no
reino dos céus e na terra e em todas as coisas que Deus criou?”,
determinante enunciado de maneira unívoca ao exame racional de todos os
seres. Além do mais, ensina Deus... que Abraão foi um daqueles a quem
destingiu e enobreceu com esse conhecimento, quando, com efeito, disse:
“E foi como mostramos a Abraão o reino dos céus e da terra, para que
se contasse entre os persuadidos. ” ... e em outros incontáveis versículos
a mais. (Averróis,1996,§3,105)
Estabelecendo
pois ao longo do terceiro parágrafo que a Lei muito mais que
simplesmente dita, mas torna obrigatório o estudo dos seres criados via
exame racional, e tendo estabelecido no início do segundo parágrafo
que este exame racional dos seres criados é a Filosofia, tenho
portanto o estabelecimento final no quarto parágrafo de que a
Filosofia é obrigatória do ponto de vista positivo da religião
revelada.
A partir desta conclusão, resta
agora estabelecer o modo
pelo qual a Filosofia procede a esse exame, e esta se faz da melhor
maneira possível e de forma mais excelente por meio da inferência do
desconhecido pelo conhecido, uma operação lógica por meio de
silogismos demonstrativos. Deste modo, estabelecendo a obrigatoriedade
da Filosofia, e sendo o silogismo seu meio mais excelente, a Lei torna
obrigatória a própria argumentação silogística, cuja forma perfeita
é o silogismo demonstrativo, a própria
demonstração:
Se, pois, está bem
estabelecido que a Revelação declara obrigatório o exame dos seres
por meio da razão e a reflexão sobre o que são, e se esta reflexão não
é outra coisa que o ato de inferir do conhecido o desconhecido, e isto
é no que de fato consiste o silogismo, ou coisa que se opera com o
silogismo, resulta que temos a obrigação de aplicar nossa especulação
aos seres existentes por meio do silogismo. E é evidente que o
procedimento deste exame o
qual impõe a Revelação é o mais perfeito e que recorre ao silogismo
mais perfeito, que é o silogismo demonstrativo. (Averróis,1996,§4,107)
Ora, se para Averróis o exame
racional dos seres através da demonstração consiste no exercício da
Filosofia, e investigar os seres através da demonstração me remete ao
conhecimento daquele que é o criador, é determinante que para
entender essa dedução, se tenha em mente que Averróis é muçulmano,
mas antes disso, é aristotélico, para quem há a necessidade de se
proceder à investigação do mundo via demonstração, forma por excelência
da investigação filosófica, e é nesse caminho, visando o
estabelecimento da conexão entre estes dois discursos, o filosófico e
o teológico, que o autor apresenta um texto silogístico, nos moldes
construídos por Aristóteles para esse procedimento filosófico, através
do relacionamento de premissas entre si para extrair delas conclusões
demonstradas, ou seja, a investigação filosófica apodíctica.
Antes de prosseguir no estudo da obra em questão, é necessário fazer
uma remissão aos estudos lógicos
de Aristóteles,
no que se refere ao silogismo e à teoria da demonstração, para que se
estabeleça o perfeito entendimento do estudo a que se propõe Averróis
e evite-se desta maneira problemas de leitura e
de interpretação da obra proposta.
A
definição de Aristóteles para silogismo é a de um argumento no qual
certos juízos, tendo sido assumidos como premissas, ou primeiros princípios,
produzam necessariamente uma
conclusão que não necessita de outro termo exterior para que venha a
ser conhecida, a não ser os três que lhe fazem parte: o termo maior
que se liga a um menor através de um médio; em outras palavras, o
silogismo é um argumento no qual a conclusão, desconhecida, venha a
partir do que é conhecido,
as premissas,
que são formadas por três termos:
E
o silogismo é um enunciado no qual, assentadas certas coisas, se segue
necessariamente algo distinto do já estabelecido pelo simples fato
destas coisas se darem.
Entendo o simples fato dessas coisas se darem o fato de que algo siga em
virtude dessas coisas, e entendo o fato de que algo siga em virtude de
algo o que não precise de nenhum termo alheio para que a conclusão se
dê necessariamente. (Aristóteles,2001,5).
Isto
acontece quando uma relação sujeito-predicado
entre os termos maior e menor é inferida de relações sujeito
predicado entre eles e um terceiro termo, um termo médio:
... quando
três termos estão relacionados entre eles de forma que o último está
incluído no médio como um todo, e o médio está incluído, ou não,
no primeiro como um todo, existe aí necessariamente um silogismo
perfeito ligando os extremos (Aristóteles,2001,13)
Neste
tipo de raciocínio, o movimento do pensamento
se processa numa mesma direção: do termo menor ao maior através
do médio; a progressão das premissas até chegar à conclusão é a
explicação do que estava implícito, a atualização do conhecimento
que era apenas potencial. A demonstração é um argumento que
possibilita conhecimento e não opinião, e como tal, suas premissas
devem ser verdadeiras; imediatas e indemonstráveis, sob risco de se
seguir numa remissão ao infinito de demonstração de premissas; mais
inteligíveis do que a conclusão a que se chega através delas e
anteriores a esta; e devem por fim ser causas da conclusão, ou seja, o
conhecimento da conclusão deve ser causado pelas premissas.
Este
é portanto a argumentação silogística desenvolvida por Averróis: a
Filosofia examina racionalmente os seres (§2); o exame racional dos
seres é expresso no Corão (§3); logo, a Filosofia é obrigatória
pelo próprio Corão (§3/§4). A primeira premissa é afirmada
no início do texto, quando Averróis procede à sua classificação da
Filosofia; a segunda premissa consiste na interpretação proposta
das passagens do Corão, provando assim ao leitor a
obrigatoriedade da Filosofia. O segundo momento da argumentação
consiste em que, se a Revelação dita a Filosofia (§3/§4), e sendo o
modo de proceder por excelência da Filosofia através do silogismo
demonstrativo (§4), a demonstração é obrigatória pela Revelação (§4).
Portanto, a Filosofia, dentre os cinco tipos de ações humanas (§1),
é obrigatória, e sendo assim, sua proibição constitui-se em um ato
proibido, necessariamente condenado.
Algumas
conseqüências decorrem desta conclusão: do mesmo modo que a Filosofia
é obrigatória, o estudo da maneira desta
proceder também o é; assim Averróis exorta a este exercício
em seu texto, apoiando-se na obrigatoriedade imposta pela Lei. Tal é o
estudo das operações por meio das quais se procede ao filosofar:
Portanto,
incumbe aos fiéis por lei positiva da Revelação, à qual hão de
obedecer, o especular sobre os seres existentes; mas também os incumbe,
antes de especular, a obrigação de conhecer essas coisas que, com relação
à especulação, equivalem aos instrumentos das operações. (Averróis,1996,§5,107)
Quando
Averróis expõe que se deve estudar as operações pelas quais
procedemos à Filosofia, o faz tendo por meta o estudo da Lógica, tal
qual ela foi estruturada e concebida. Sob essa perspectiva de
obrigatoriedade imposta pela Lei, a Lógica não deve ser considerada
como uma inovação
herética, ou seja, o fato daquela não existir, ou não estar
contemplada nos primeiros tempos do Islã não a afasta do escopo da
obrigação:
É possível
que alguém objete que esta espécie de estudo sobre o proceder filosófico
seja uma inovação herética, já que esta não existia nos primeiros
tempos do Islã, mas também o estudo do raciocínio jurídico é algo
que se inventou depois dos primeiros tempos, e sem dúvida, não há
quem diga que seja inovação ou heresia.(Averróis,1996,§7,109)
Se
se deve conhecer estes instrumentos das operações, sou levado
então a mais uma conseqüência que decorre da obrigatoriedade da
Filosofia: o estudo dos pensadores antigos que estabeleceram os
instrumentos das operações, bem como as formas do pensamento filosófico,
da mesma maneira que se estuda os juristas antigos em questões sobre a
Lei islâmica, pois o conhecimento não vem do nada, ele é fruto de
sucessivos trabalhos dos que sempre nos antecedem:
Se
ninguém houvesse se dedicado ao estudo da natureza e das espécies do
proceder filosófico, estaríamos obrigados a inaugurar esse trabalho, a
fim de que os que viessem depois
de nós pudessem encontrar
ajuda nos que os precederam e assim se aperfeiçoasse o conhecimento
nesse sentido. O mesmo se pode assegurar do raciocínio jurídico por
analogia que empregam os juízes: é difícil que um só homem tenha
inventado todas as leis necessárias para seu emprego direto...Portanto,
não há dúvida que devemos nos servir, como ajuda para nossos estudos
filosóficos, das investigações realizadas por todos os que nos
precederam neste trabalho; e isto, mesmo se foram correligionários
nossos, ou se professaram religião distinta; pois pouco importa que o
instrumento de que nos servimos para sair do erro seja partidário ou não
da religião que professamos... E me refiro, ao falar dos que não são
nossos correligionários, aos filósofos antigos que sobre tais matérias
especularam, antes do advento do Islã. (Averróis,1996,§9,111)
Quando
Averróis faz referência aos antigos, o faz com relação aos filósofos
gregos, e dentre estes, àquele que é seu mestre sob todos os sentidos:
Aristóteles, o qual, segundo Averróis, atingiu o mais alto grau de
conhecimento que o homem pode atingir.
No
entanto, mesmo estabelecendo a obrigatoriedade da Filosofia, e da Lógica
enquanto seu proceder, existem limites, e estes são os da natureza
humana: os indivíduos diferem entre si na capacidade de empreender
raciocínios, e existem os que procedem por demonstração, os que
procedem por argumentação dialética, e através desta chegam a um
tipo de certeza, a saber, àquela que lhes é possível por sua própria
natureza, e os que procedem por raciocínio retórico; logo, se a Revelação
intima aos homens através destes três modos de raciocínio, o acesso
à ela deve se acomodar por estes:
Com efeito,
existe uma hierarquia das naturezas humanas com respeito à via de
convencimento: alguns assentem pela via da demonstração; outros são
convencidos através de argumentos dialéticos, com um convencimento de
que possui a verdade similar ao que procede por demonstração; outros
por fim são convencidos pelo efeito de argumentos retóricos... é
claro que o conhecimento da Lei haverá de se arraigar em cada muçulmano
pelo método de crer que seu próprio intelecto natural requeira, porque
na natureza dos homens existem variantes na forma de praticarem a fé.
(Averróis,1996,§16,117)
Portanto,
assim como a peregrinação a Meca é obrigatória ao menos uma vez na
vida de um muçulmano, desde que seja possível a este, seja por posses
ou por qualquer outro motivo, a Filosofia também é obrigatória
somente àqueles dentre os homens podem proceder a ela por sua própria
natureza.
Averróis
encerra sua argumentação concluindo que, para os muçulmanos, o raciocínio
filosófico, por se dar através da demonstração, não conduzirá a
outra verdade que a expressa na Revelação, porque o que é verdade não
pode estar contrário à própria verdade:
Sendo
verdade o contido nestas palavras reveladas por Deus e supondo que com
elas ele nos incita ao raciocínio filosófico que conduz à investigação
da verdade, resulta claro e positivo para todos os muçulmanos que o
raciocínio filosófico não nos conduzirá a conclusão alguma contrária
ao que está escrito na revelação divina, porque a verdade não pode
contradizer a verdade, senão se
harmonizar com ela e servir-lhe de testemunho confirmatório. (Averróis,1996,§18,119)
O conhecimento que obtenho por meio
da demonstração é verdadeiro, e é verdade o que está consignado na
Lei, portanto, não há possibilidade de existirem duas verdades, a da
Filosofia e a da Lei, mas uma e a mesma, não havendo pois embate entre
as duas: estão em um mesmo nível de validade.

Tenho à disposição três traduções do texto árabe: a do P.
Manuel Alonso (98) para o espanhol, a de Marc Geoffroy(96) para o
francês, e a de George Hourani(76) para o inglês. A tradução de
Alonso, baseada na edição crítica de Müller (1875), divide o
texto em três partes; a de Geoffroy, que não divide o texto em capítulos,
mas em parágrafos, seguindo a versão crítica de ‘Amara,
reproduzida na edição; Hourani divide o texto em capítulos. A
tradução de Geoffroy, por ser a mais próxima do original pelo
fato de não proceder à separação do texto, guardando assim maior
semelhança com o original árabe que também não possui nenhum
tipo de divisão, a não ser por parágrafos, e por trazer a edição
de ‘Amara ao lado do texto em francês, é a obra à qual farei
referências ao longo do artigo.