ANNY KÁTIA DA SILVA PINTO

Graduanda  em Filosofia (4º ano) na Universidade Estadual de Maringá (UEM)

 

A noção de epokhé no ceticismo pirrônico

Anny Kátia da Silva Pinto

 

Resumo

Este trabalho tem como intenção expor a noção de epokhé no ceticismo pirrônico; como os céticos alcançam a tranqüilidade da alma (ataraxia) mediante seu uso; qual a sua origem e quais as mudanças sofridas por esta noção até chegar à definição usada pelos céticos: “O ceticismo pirrônico”. Desta forma, investigamos, neste trabalho, a possível coerência ou incoerência da noção de epokhé (suspensão do juízo) frente às outras caracterizações atribuídas ao movimento cético.

Palavras-chaves: ceticismo, investigação, epokhé, ataraxia.

Abstract

This paper has the intention to expose the epokhé notion in pirronic’s scepticism. It´s about how the sceptics reached the calm of the soul (ataraxia) through its use, which is its origin and which were the changes occurred by this notion until it reaches the definition used by the skeptics: “The pirronic’s skepticism”. In this way, we investigate in this paper, the possible coherency of the epokhé notion (suspension of mind) about the others characteristics given to the sceptic movement.

Key-words: scepticism,  investigate, epokhe, ataraxia.

 

A noção de epokhé e central para a compreensão, do ceticismo pirrônico1, como os céticos alcançam a tranqüilidade da alma (ataraxia) mediante seu uso. Investigaremos aqui, qual a sua origem e quais as mudanças sofridas por esta noção até chegar à definição usada por eles. O ceticismo2 pirrônico3 (pirróneios) também foi caracterizado como aporético (aporetiké); investigativo (zetetiké); e também como suspensivo (ephektiké). Porém, é a noção de suspensão do juízo (epokhé) que é mais usada tecnicamente e de modo fundamental no ceticismo. Segundo Sexto Empírico:

A orientação cética recebe o nome de Zetetiké (investigadora) devido a sua atividade de investigação e observação, ephektiké  (suspensiva) pela disposição de ânimo que se produz no cético depois da investigação, aporética pelo seu hábito de duvidar e investigar tudo, ou como dizem alguns, por sua indecisão a respeito do assentimento ou da negação... (SEXTO EMPÍRICO, I, 1-3).

Levando o cético pirrônico1 a suspender o juízo (epokhé) diante da impossibilidade da escolha sobre argumentos equivalentes acerca de qualquer questão, “... e pirrônicas porque nos parece que Pirro se entregou ao ceticismo de forma mais consciente e mais manifesta que os outros que o precederam”.(SEXTO EMPIRICO, I, 1- 4.).

A noção de epokhé não é criação do ceticismo pirrônico, pois recorrendo a história da filosofia constatamos que tal noção já era usada pelos estóicos[1]. E para evitar confusão entre ambas filosofias e entender o objeto de discussão, há a necessidade de explicar como os estóicos contribuíram para a fundamentação do ceticismo mediante a noção de epokhé. Isto fica evidente em algumas passagens do primeiro livro das Hipotiposes pirrônicos de Sexto Empírico.

Sexto Empírico divide as Hipotiposes em duas partes: a primeira, versa acerca do “Logos geral” do ceticismo, no qual o autor se ocupa em explicar as características e a parte “doutrinal” do ceticismo, ou seja, os princípios, as razões, o critério de ação, a finalidade, os modos de suspensão do juízo, as diferenças do ceticismo com outras filosofias e o “caráter” do ceticismo. Já a segunda parte trata de um “logos especial” na qual Sexto Empírico expõe o “princípio primordial do ceticismo”, a saber, como se estabelece a oposição de argumentos que os céticos usam para refutar os dogmáticos.

Para entender nosso objeto de estudo, faz-se necessário explicar como o cético se posiciona diante de algo que traz intranqüilidade à sua alma. O cético, de início, é um filósofo que se perturba diante de alguma irregularidade das coisas e começa sua investigação para obter a conhecimento da verdade e, desta forma, a tranqüilidade da alma (ataraxia); mas o ocorrido é que ao contrapor argumentos de mesma valia, ele nota a impossibilidade de escolher entre um ou outro argumento, pois os dois se mostram equipotentes. A partir deste ponto, o cético passa a investigar já com a intenção de contrapor um argumento equivalente ao já existente, a fim de mostrar que não se pode escolher entre ambos: “... um estado do intelecto devido ao qual nem afirmamos nem negamos algo...”, vale dizer, nas palavras de Bolzani: “... em virtude do qual não damos assentimento a algo como verdadeiro ou falso. O que nos leva ao sentido dado pelo cético à expressão: “eu suspendo o juízo” (FILHO. 1992, p, 19).

Os céticos ocupam-se de investigações acerca da verdade com intenção de refutar os argumentos dogmáticos, em particular dos estóicos, os quais afirmam uma verdade absoluta. Interessa observar que é a noção de epokhé que distingue o cético como tal, e diante desta evidência, aparentemente nos leva a concluir que a epokhé cética se posiciona da mesma forma que a noção de verdade para os dogmáticos, pois as duas noções, teoricamente, são caminhos para a tranqüilidade da alma (ataraxia), ou seja, o filósofo, impossibilitado de escolher entre argumentos, diante de uma investigação, alcança a tranqüilidade da alma mediante a suspensão do juízo (epokhé), da mesma forma, os dogmáticos alcançam a tranqüilidade da alma quando encontram a verdade mediante as questões investigadas, e diante desta evidência poderíamos pensar que a noção de epokhé e a de verdade têm a mesma intenção, isto é, alcançar a tranqüilidade da alma (ataraxia).

Esta definição, contudo, não pode ser afirmada, visto que na concepção dos filósofos, o fator principal em uma investigação, é encontrar a verdade e não a tranqüilidade da alma, esta seria apenas um acréscimo ao filósofo. Já para os céticos, também existe uma noção mais importante, que segundo Bolzani, constitui-se em outro princípio do ceticismo, ou seja, a capacidade do cético em opor argumentos de igual persuasão (mesmo valor) diante de uma investigação e, deste fato, a saída para o cético é simplesmente suspender o juízo (epokhé) diante de argumentos que se equivalem, esta suspensão constitui-se na meta do cético, pois o que ele almeja é a tranqüilidade da alma (ataraxia). Segundo Sexto Empírico:

... e também os céticos, com efeito, esperavam recobrar a serenidade do espírito com base em submeter em juízo a disparidade dos fenômenos e das considerações teóricas; porém, não sendo capazes de fazer isto, suspenderam seus juízos (epokhé) e, ao suspender seus juízos, os acompanhou como por sorte a serenidade do espírito (ataraxia), do mesmo jeito que a sombra segue o corpo. (FILHO, 1992, p. 29-30).

Ora, se o cético pirrônico alcança a tranqüilidade da alma (ataraxia) depois de suspender o juízo (epokhé), i e., depois de contrapor argumentos de mesma valia acerca de uma  questão qualquer, o que assegura o prosseguimento da tranqüilidade do espírito diante de outra questão  que o cético ainda não investigou?

Para solucionar esta questão, Plínio Smith propõe um entendimento da tranqüilidade da alma não como um estado mental subjetivo, interno e transitório, mas como a confirmação do hábito de um modo próprio de filosofar. Segundo Smith:

... a tranqüilidade que o pirrônico alcança, não é, pois, uma tranqüilidade a respeito dessa ou daquela questão, mas é uma tranqüilidade genérica que resulta da confiança que tem na sua capacidade de argumentar dos dois lados, vale dizer, no seu método de argumentação. E na medida em que é indissociável de uma habilidade ou capacidade adquirida pelo pirrônico, é permanente e não momentânea. (SMITH, 1993, p. 25).

O cético pirrônico pode permanecer em ataraxia mesmo diante de uma questão formulada, e para a qual ele ainda não tenha encontrado de imediato um argumento oposto equivalente, sem que isto o torne dogmático, pois ele, age diante da confiança em sua habilidade argumentativa e em suas experiências anteriores de haver sempre contraposto teses, o pirrônico sabe que mais cedo ou mais tarde, no seguimento da sua investigação, irá encontrar a tese oposta equivalente, e por isto não se inquieta, afinal ele possui um método, que ele acredita, confiável, geral e eficaz de suspensão do juízo (epokhé).

A epokhé é uma noção do estoicismo contra o qual os céticos investem suas críticas. Para os estóicos, cujo iniciador foi Zenão de Cício, o mundo é um “processo natural de interação” regido por uma razão divina e objetiva. O homem é uma parte deste mundo que também é regido por este logos divino. O que se pode concluir é que a verdade para os estóicos é “objeto indiscutível de apreensão”. Ora, se a verdade é apreendida pelos estóicos, de que modo se define a noção de epokhé para eles?

A suspensão do juízo é possível no estoicismo “... não devido à razão divina que rege o mundo, mas diante de patologias que afetam o sujeito que investiga, isto pode ocorrer como processos de falhas nas faculdades cognitivas, como doenças, estado de frenesi ou loucura, ou ainda condições desfavoráveis de investigação...” (FILHO, 1992. p, 26) isto pode levar os filósofos a proferirem apenas opiniões sobre questões investigadas por eles.

Desta forma, o processo de investigação em si mesmo não é afetado por um filósofo que não tem condições de apreender a verdade. E ao perceber que não tem condições de assentir sobre qualquer coisa, o filósofo é livre para suspender o juízo diante de tal questão. Não por ocorrer erros no processo de obtenção da verdade, ou dúvidas sobre a existência do verdadeiro, mas por condições particulares e subjetivas. Portanto, a suspensão do juízo “... é um instrumento de um artifício metodológico que contribui para o estabelecimento do que é verdadeiro”. (FILHO, 1992, p. 21).

Aparentemente, segundo Bolzani, o ceticismo acadêmico iniciado por Arcesilau, se constituiu posteriormente ao estoicismo e é anterior ao ceticismo pirrônico. Arcesilau reformula a noção de epokhé usada pelos estóicos e amplia a suspensão do juízo para todas coisas, ou seja, para todas investigações acerca de qualquer inquietação.

Os acadêmicos criticam os estóicos justamente nesta noção de epokhé na afirmação de que não há possibilidade do filósofo estóico saber julgar, uma vez que é impossível saber o que se passa com o estóico em particular e, desta forma não se sabe se ele procura a verdade ou simplesmente opina sobre esta, ou seja,  não se pode assegurar se a verdade encontrada é realmente uma verdade ou apenas uma mera opinião acerca da questão investigada.

Desta forma, Arcesilau, ao estender a noção de epokhé a todas as coisas, obriga os estóicos a retornarem aos seus fundamentos e defendê-los.

O que vale ressaltar  com esta digressão acerca do surgimento da noção de epokhé, é que o ceticismo foi o maior beneficiário da crítica dos acadêmicos contra os estóicos e, valendo-se desta noção, em principal, os céticos ganham força para criticar todo dogmatismo no qual incluem o cético acadêmico. Segundo Sexto Empírico:

Sobre as coisas que se investigam do ponto de vista da filosofia, uns afirmam haver encontrado a verdade, outros declaram que não se é possível que isto se cumpra e outros continuam investigando. Os que acreditam ter encontrado (a verdade) são os chamados propriamente dogmáticos, como exemplo os seguidores de Aristóteles, Epicuro, Estóicos e alguns outros. Da mesma maneira que se manifestaram pela inapreensibilidade (da verdade), são os seguidores de Clitómaco, Carnéades e outros acadêmicos. E os que continuam investigando são os céticos. De onde, com muita razão, se considera que os sistemas filosóficos são, em linhas gerais, três: dogmáticos, acadêmicos e céticos. (SEXTO EMPÌRICO, 1993, p, 1-4).

A meta dos céticos, portanto, é diferente do objetivo dos dogmáticos, os quais procuram a verdade e acreditam nela. Questionamos se a verdade é negada pelo ceticismo, visto que, os céticos refutam as tentativas dos dogmáticos de encontrá-la e, portanto podemos afirmar que os céticos negam a verdade e visam à tranqüilidade da alma (ataraxia) por meio da epokhé.

Bolzani ressalta uma importante característica da epokhé para que não reste dúvidas sobre esta discrepância: se há ou não a negação da verdade por parte dos céticos. Para este comentador: “... há uma igual força persuasiva entre diferentes ou opostas soluções de um mesmo problema, perante a qual o cético se julgue impotente para uma escolha da “verdade” como resposta”. (FILHO, 1992, p. 26).

Portanto, aqui se esclarece que a noção de epokhé não nega a verdade: ela simplesmente não dá conta de assentimento sobre qualquer questão, face às dificuldades encontradas na busca do cético em fazer escolhas. Afinal, se o cético negar a existência da verdade, não agirá em conforme com a sua fundamentação, ou seja, estaria agindo dogmaticamente.

Os céticos não negam a possibilidade da verdade ou do conhecimento, simplesmente mostram as dificuldades de fundamentá-los, pois, investigar as teorias dogmáticas, consiste em investigar a verdade:

essa possibilidade, embora real, a cada constatação de epokhé se faz sempre mais remota; isso, para o cético, dar-lhe-ia o direito de, na situação relatada, “reservar-se” para um futuro argumento. E como se encontrar a verdade, com o passar do tempo e das diversas investigações sobre as filosofias, fosse ganhando a condição de simples possibilidade lógica, sem, contudo, nunca sê-lo efetivamente, o que permitiria ao cético disso falar sem incoerência. (FILHO, 1992, p. 27).

Portanto, o que Bolzani quer ressaltar é a inovação da epokhé cética frente às filosofias dogmáticas, pois o estoicismo admitia a epokhé em circunstâncias especiais, ou seja, só quando o filósofo não se encontrava em condições de assentir sobre qualquer questão ele poderia usá-la, e desta forma, evitar o erro e proteger a verdade das suas opiniões. Todavia, para os acadêmicos, a epokhé funciona como a suspensão total da possibilidade de verdade, mas os céticos mostram que esta atitude acadêmica também é dogmática, pois os acadêmicos afirmam que nada pode ser dito sobre as coisas e que a verdade é inapreensível. Por este fato, os céticos não negam a verdade ou a possibilidade de conhecimento, eles apenas defendem que nada podem afirmar sobre estas questões, visto que sempre há argumentos persuasivos contra os argumentos que até então sustentavam a verdade dogmática.

1 Sistematizador do ceticismo, Pirro de Élida fundou uma doutrina prática, também conhecida como pirronismo, que se caracteriza por negar ao conhecimento humano a capacidade de encontrar certezas.Supõe-se que o filósofo grego Pirro tenha nascido por volta do ano 360 a.C. Acompanhou Alexandre o Grande na conquista do Oriente, ocasião em que entrou em contato com os faquires da Índia. Estudou filosofia com Anaxarco de Abdera e, em torno do ano 330, instalou-se como professor na cidade de Élida.

2 LALANDE, André. Vocabulário Técnico e Critico da Filosofia. São Paulo. Martins Fontes, 1999. Ceticismo no sentido mais amplo significa uma doutrina segundo a qual o espírito humano não pode atingir com certeza nenhuma verdade de ordem geral e especulativa, nem mesmo a certeza de que uma proposição deste gênero seja mais provável que uma outra qualquer.

3 Cético pirrônico faz parte do ceticismo antigo, que tinha em Pirro seu primeiro representante.

4 LALANDE, André. Vocabulário Técnico e Critico da Filosofia. São Paulo. Martins Fontes, 1999. O caráter moral do sábio segundo o estoicismo consistia, particularmente, na indiferença à dor, implicando uma firmeza de alma em oposição aos males da vida.

 

Bibliografia:

FILHO, Roberto Bolzani. O ceticismo pirrônico na obra de Sexto Empírico. São Paulo: Tese de mestrado, 1992.

_______Ceticismo e empirismo. Discurso; Ver. Depto. Filo. USP, São Paulo, (18): 37-67.1990.

_______Acadêmicos versus Pirrônicos: Ceticismo Antigo e filosofia Moderna. Discurso; Ver. Depto. Filo. USP, São Paulo: (29): 57-110,1998.

OLASO, Ezequiel. Zetesis. Centro de Investigaciones Filosóficas. Buenos Aires. Argentina. Manuscritos, XI. 2(1988), pp.7-32.

PINTO, Paulo Roberto Margutti. Há Problemas Filosóficos? Uma avaliação da resposta do pirronismo. In: Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 6, n. especial, p. 159-178, Jan-Dez., 1996.

PORCHAT, Pereira. Há problemas filosóficos? In: Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 6, n. especial, p. 97-157, Jan-Dez., 1996.

SMITH, Plínio Junqueira. Sobre a Tranqüilidade da Alma e a Moderação das Afecções. In: Ceticismo Filosófico. Curitiba: Editora UFPR.1993.

SEXTO EMPÍRICO. Esbozos Pirrónicos. Editorial Gredos Madrid, 1993.

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Última atualização: 01 dezembro, 2004.