A
noção de epokhé no
ceticismo pirrônico
Anny
Kátia da Silva Pinto
A noção de epokhé
não é criação do ceticismo pirrônico, pois recorrendo a história
da filosofia constatamos que tal noção já era usada pelos estóicos.
E para evitar confusão entre ambas filosofias e entender o objeto de
discussão, há a necessidade de explicar como os estóicos contribuíram
para a fundamentação do ceticismo mediante a noção de epokhé.
Isto fica evidente em algumas passagens do primeiro livro das Hipotiposes
pirrônicos de Sexto Empírico.
Sexto
Empírico divide as Hipotiposes
em duas partes: a primeira, versa acerca do “Logos geral” do
ceticismo, no qual o autor se ocupa em explicar as características e a
parte “doutrinal” do ceticismo, ou seja, os princípios, as razões,
o critério de ação, a finalidade, os modos de suspensão do juízo,
as diferenças do ceticismo com outras filosofias e o “caráter” do
ceticismo. Já a segunda parte trata de um “logos especial” na qual
Sexto Empírico expõe o “princípio primordial do ceticismo”, a
saber, como se estabelece a oposição de argumentos que os céticos
usam para refutar os dogmáticos.
Para
entender nosso objeto de estudo, faz-se necessário explicar como o cético
se posiciona diante de algo que traz intranqüilidade à sua alma. O cético,
de início, é um filósofo que se perturba diante de alguma
irregularidade das coisas e começa sua investigação para obter a
conhecimento da verdade e, desta forma, a tranqüilidade da alma (ataraxia);
mas o ocorrido é que ao contrapor argumentos de mesma valia, ele nota a
impossibilidade de escolher entre um ou outro argumento, pois os dois se
mostram equipotentes. A partir deste ponto, o cético passa a investigar
já com a intenção de contrapor um argumento equivalente ao já
existente, a fim de mostrar que não se pode escolher entre ambos:
“... um estado do intelecto devido ao qual nem afirmamos nem negamos
algo...”, vale dizer, nas palavras de Bolzani: “... em virtude do
qual não damos assentimento a algo como verdadeiro ou falso. O que nos
leva ao sentido dado pelo cético à expressão: “eu
suspendo o juízo” (FILHO.
1992, p, 19).
Os
céticos ocupam-se de investigações acerca da verdade com intenção
de refutar os argumentos dogmáticos, em particular dos estóicos, os
quais afirmam uma verdade absoluta. Interessa observar que é a noção
de epokhé que distingue o cético como tal, e diante desta evidência,
aparentemente nos leva a concluir que a epokhé
cética se posiciona da mesma forma que a noção de verdade para os
dogmáticos, pois as duas noções, teoricamente, são caminhos para a
tranqüilidade da alma (ataraxia),
ou seja, o filósofo, impossibilitado de escolher entre argumentos,
diante de uma investigação, alcança a tranqüilidade da alma mediante
a suspensão do juízo (epokhé), da mesma forma, os dogmáticos alcançam a tranqüilidade
da alma quando encontram a verdade mediante as questões investigadas, e
diante desta evidência poderíamos pensar que a noção de epokhé
e a de verdade têm a mesma intenção, isto é, alcançar a tranqüilidade
da alma (ataraxia).
Esta
definição, contudo, não pode ser afirmada, visto que na concepção
dos filósofos, o fator principal em uma investigação, é encontrar a
verdade e não a tranqüilidade da alma, esta seria apenas um acréscimo
ao filósofo. Já para os céticos, também existe uma noção mais
importante, que segundo Bolzani, constitui-se em outro princípio do
ceticismo, ou seja, a capacidade do cético em opor argumentos de igual
persuasão (mesmo valor) diante de uma investigação e, deste fato, a
saída para o cético é simplesmente suspender o juízo (epokhé)
diante de argumentos que se equivalem, esta suspensão constitui-se na
meta do cético, pois o que ele almeja é a tranqüilidade da alma (ataraxia).
Segundo Sexto Empírico:
... e também
os céticos, com efeito, esperavam recobrar a serenidade do espírito
com base em submeter em juízo a disparidade dos fenômenos e das
considerações teóricas; porém, não sendo capazes de fazer isto,
suspenderam seus juízos (epokhé) e, ao suspender seus juízos, os acompanhou como por sorte
a serenidade do espírito (ataraxia),
do mesmo jeito que a sombra segue o corpo. (FILHO, 1992, p. 29-30).
Ora,
se o cético pirrônico alcança a tranqüilidade da alma (ataraxia) depois de suspender o juízo (epokhé), i e., depois de contrapor argumentos de mesma valia acerca
de uma questão qualquer, o
que assegura o prosseguimento da tranqüilidade do espírito diante de
outra questão que o cético
ainda não investigou?
Para
solucionar esta questão, Plínio Smith propõe um entendimento da tranqüilidade
da alma não como um estado mental subjetivo, interno e transitório,
mas como a confirmação do hábito de um modo próprio de filosofar.
Segundo Smith:
... a tranqüilidade
que o pirrônico alcança, não é, pois, uma tranqüilidade a respeito
dessa ou daquela questão, mas é uma tranqüilidade genérica que
resulta da confiança que tem na sua capacidade de argumentar dos dois
lados, vale dizer, no seu método de argumentação. E na medida em que
é indissociável de uma habilidade ou capacidade adquirida pelo pirrônico,
é permanente e não momentânea. (SMITH, 1993, p. 25).
O
cético pirrônico pode permanecer em ataraxia
mesmo diante de uma questão formulada, e para a qual ele ainda não
tenha encontrado de imediato um argumento oposto equivalente, sem que
isto o torne dogmático, pois ele, age diante da confiança em sua
habilidade argumentativa e em suas experiências anteriores de haver
sempre contraposto teses, o pirrônico sabe que mais cedo ou mais tarde,
no seguimento da sua investigação, irá encontrar a tese oposta
equivalente, e por isto não se inquieta, afinal ele possui um método,
que ele acredita, confiável, geral e eficaz de suspensão do juízo (epokhé).
A
epokhé é uma noção do
estoicismo contra o qual os céticos investem suas críticas. Para os
estóicos, cujo iniciador foi Zenão de Cício, o mundo é um
“processo natural de interação” regido por uma razão divina e
objetiva. O homem é uma parte deste mundo que também é regido por
este logos divino. O que se pode concluir é que a verdade para os estóicos
é “objeto indiscutível de apreensão”. Ora, se a verdade é
apreendida pelos estóicos, de que modo se define a noção de epokhé
para eles?
A
suspensão do juízo é possível no estoicismo “... não devido à
razão divina que rege o mundo, mas diante de patologias que afetam o
sujeito que investiga, isto pode ocorrer como processos de falhas nas
faculdades cognitivas, como doenças, estado de frenesi ou loucura, ou
ainda condições desfavoráveis de investigação...” (FILHO, 1992.
p, 26) isto pode levar os filósofos a proferirem apenas opiniões sobre
questões investigadas por eles.
Desta forma, o processo
de investigação em si mesmo não é afetado por um filósofo que não
tem condições de apreender a verdade. E ao perceber que não tem condições
de assentir sobre qualquer coisa, o filósofo é livre para suspender o
juízo diante de tal questão. Não por ocorrer erros no processo de
obtenção da verdade, ou dúvidas sobre a existência do verdadeiro,
mas por condições particulares e subjetivas. Portanto, a suspensão do
juízo “... é um instrumento de um artifício metodológico que
contribui para o estabelecimento do que é verdadeiro”. (FILHO, 1992,
p. 21).
Aparentemente,
segundo Bolzani, o ceticismo acadêmico iniciado por Arcesilau, se
constituiu posteriormente ao estoicismo e é anterior ao ceticismo pirrônico.
Arcesilau reformula a noção de epokhé usada pelos estóicos e
amplia a suspensão do juízo para todas coisas, ou seja, para todas
investigações acerca de qualquer inquietação.
Os
acadêmicos criticam os estóicos justamente nesta noção de epokhé na afirmação de que não há possibilidade do filósofo
estóico saber julgar, uma vez que é impossível saber o que se passa
com o estóico em particular e, desta forma não se sabe se ele procura
a verdade ou simplesmente opina sobre esta, ou seja,
não se pode assegurar se a verdade encontrada é realmente uma
verdade ou apenas uma mera opinião acerca da questão investigada.
Desta
forma, Arcesilau, ao estender a noção de epokhé
a todas as coisas, obriga os estóicos a retornarem aos seus
fundamentos e defendê-los.
O
que vale ressaltar com esta
digressão acerca do surgimento da noção de epokhé,
é que o ceticismo foi o maior beneficiário da crítica dos acadêmicos
contra os estóicos e, valendo-se desta noção, em principal, os céticos
ganham força para criticar todo dogmatismo no qual incluem o cético
acadêmico. Segundo
Sexto Empírico:
Sobre as coisas que se investigam
do ponto de vista da filosofia, uns afirmam haver encontrado a verdade,
outros declaram que não se é possível que isto se cumpra e outros
continuam investigando. Os
que acreditam ter encontrado (a verdade) são os chamados propriamente
dogmáticos, como exemplo os seguidores de Aristóteles, Epicuro, Estóicos
e alguns outros. Da mesma maneira que se manifestaram pela
inapreensibilidade (da verdade), são os seguidores de Clitómaco, Carnéades
e outros acadêmicos. E os que continuam investigando são os céticos. De onde, com muita razão, se
considera que os sistemas filosóficos são, em linhas gerais, três:
dogmáticos, acadêmicos e céticos. (SEXTO EMPÌRICO, 1993, p, 1-4).
A
meta dos céticos, portanto, é diferente do objetivo dos dogmáticos,
os quais procuram a verdade e acreditam nela. Questionamos se a verdade
é negada pelo ceticismo, visto que, os céticos refutam as tentativas
dos dogmáticos de encontrá-la e, portanto podemos afirmar que os céticos
negam a verdade e visam à tranqüilidade da alma (ataraxia)
por meio da epokhé.
Bolzani
ressalta uma importante característica da epokhé
para que não reste dúvidas sobre esta discrepância: se há ou não
a negação da verdade por parte dos céticos. Para este comentador:
“... há uma igual força persuasiva entre diferentes ou opostas soluções
de um mesmo problema, perante a qual o cético se julgue impotente para
uma escolha da “verdade” como resposta”. (FILHO, 1992, p. 26).
Portanto,
aqui se esclarece que a noção de epokhé
não nega a verdade: ela simplesmente não dá conta de assentimento
sobre qualquer questão, face às dificuldades encontradas na busca do cético
em fazer escolhas. Afinal, se o cético negar a existência da verdade,
não agirá em conforme com a sua fundamentação, ou seja, estaria
agindo dogmaticamente.
Os
céticos não negam a possibilidade da verdade ou do conhecimento,
simplesmente mostram as dificuldades de fundamentá-los, pois,
investigar as teorias dogmáticas, consiste em investigar a verdade:
essa
possibilidade, embora real, a cada constatação de epokhé
se faz sempre mais remota; isso, para o cético, dar-lhe-ia o direito
de, na situação relatada, “reservar-se” para um futuro argumento.
E como se encontrar a verdade, com o passar do tempo e das diversas
investigações sobre as filosofias, fosse ganhando a condição de
simples possibilidade lógica, sem, contudo, nunca sê-lo efetivamente,
o que permitiria ao cético disso falar sem incoerência. (FILHO, 1992,
p. 27).
Portanto,
o que Bolzani quer ressaltar é a inovação da epokhé cética frente às filosofias dogmáticas, pois o estoicismo
admitia a epokhé em circunstâncias
especiais, ou seja, só quando o filósofo não se encontrava em condições
de assentir sobre qualquer questão ele poderia usá-la, e desta forma,
evitar o erro e proteger a verdade das suas opiniões. Todavia, para os
acadêmicos, a epokhé
funciona como a suspensão total da possibilidade de verdade, mas os céticos
mostram que esta atitude acadêmica também é dogmática, pois os acadêmicos
afirmam que nada pode ser dito sobre as coisas e que a verdade é
inapreensível. Por este fato, os céticos não negam a verdade ou a
possibilidade de conhecimento, eles apenas defendem que nada podem
afirmar sobre estas questões, visto que sempre há argumentos
persuasivos contra os argumentos que até então sustentavam a verdade
dogmática.