Max
Weber e Hans Kelsen:
a
Sociologia e a Dogmática Jurídicas
Daniel
Barile da Silveira
Resumo
Max Weber e Hans Kelsen são dois
autores clássicos considerados de extrema importância na elaboração
alguns dos célebres conceitos mais utilizados nas searas das Ciências
Sociais e Direito, respectivamente. Entretanto, quando se unem
tais campos do conhecimento, representados pela Sociologia do
Direito, inúmeras confusões terminológicas e relativas ao
objeto e método de estudo são perpetradas, dificultando que o
rigor científico seja atingido com profícua precisão. Nesse
sentido, o presente trabalho visa estabelecer as distinções mais
prementes entre a Sociologia Jurídica e a Ciência Jurídica ou
Dogmática, tratadas sob
a perspectiva da análise dos pensamentos weberianos e kelsenianos.
Palavras-chaves:
Max Weber – Hans Kelsen – Sociologia Jurídica – Ciência
do Direito – Dogmática Jurídica.
Abstract
Max Weber and Hans Kelsen are two
classical authors considered extremely importants to the creation
of some of the essential concepts ordinarily used in the Social
Sciencs and Law, respectively. However, when these two science
fields are put together, which are represented by the Juridical
Sociology, a large number of terminological misundurstandings,
connected to the object and studying methods, are usually
perpetaded. By this way, the present work has the purpose to
accomplish the demonstration of the approachs and distinctions
most preeminents between the Sociology of Law and the
Jurisprudence, studied by the perspective of analysis of the two
authors mentioned.
Key Words: Max
Weber – Hans Kelsen – Juridical Sociology – Science of Law
– Legal Dogmatic.
|
I.
Introdução
Sem dúvida nenhuma, Max Weber e Hans
Kelsen representam dois dos mais importantes clássicos para o
entendimento do fenômeno jurídico moderno. Desde início do século XX
as respectivas obras de ambos pensadores foram incessantemente
estudadas, revistas e comentadas nas cátedras de todo mundo,
engendrando novas interpretações e classificações das mais diversas
possíveis por onde quer que suas teorias exercessem influência.
Enquanto o primeiro se atinha aos bancos da Sociologia, da Ciência Política,
ou melhor, das Ciências Sociais como um todo, além de produzir
importantes transformações no currículo acadêmico das escolas de
Economia, o segundo gerava, de igual modo, severo impacto nas
Humanidades, porém mais afeto à seara do Direito. Enquanto Weber
representou um dos mais altos expoentes da sociologia jurídica, Kelsen,
por sua vez, solidificou a mais expressiva referência no âmbito da
dogmática jurídica.
A
relação intelectual entre Weber e Kelsen é bastante fluida. Tal
proximidade pode ser constatada na medida em que, além de serem autores
contemporâneos, ambas as teorias tiveram inúmeros seguidores na
Alemanha, bem como seus estudos foram paradigmas de interpretação em
diversos pólos intelectuais na Europa pós-vitoriana. Segundo relatam
os comentadores, nos anos de 1911 a 1913, época em que Weber
desenvolveu sua Sociologia do Direito, Kelsen já havia publicado em
1911 sua primeira grande obra intitulada Hautptprobleme der
Rechtstaatslehre. Na primeira edição de seu livro, conforme nos
assinala Norberto Bobbio (1998, p. 255-6), Kelsen já citava Weber,
indicando a acurada leitura do pensamento weberiano que naquele momento
já despontava e se consolidava na Alemanha de início do século
passado. Posteriormente, quando a obra póstuma Economia e Sociedade
é lançada em caráter definitivo, Kelsen submete-a a algumas apreciações
críticas, tendo inclusive publicado alguns artigos julgando a postura
teórica weberiana.
Por fim, na obra Teoria Geral do Direito e do Estado, o autor
vienense tece algumas considerações a respeito da sociologia jurídica
de Weber, contestando alguns posicionamentos assumidos pelo pensador,
cujos desdobramentos veremos mais adiante.
A discussão entre sociologia jurídica e dogmática jurídica
trazida por Weber no seio de Economia e Sociedade
remonta, em realidade, à celeuma engendrada por dois
antecessores seus, Herman Kantorowicz e Eugen Erlich, precursores da
chamada “Escola do Direito Livre” e do “Movimento Sociológico do
Direito”, até então com relativa influência nas academias jurídicas
alemãs.
Pregavam estes dois autores, em suma, basicamente a idéia de que a lei
não poderia criar efetivamente o direito, visto que tal tarefa era
destinada ao órgão vivo, ao elemento subjetivo do Direito, o juiz (giurisprudenzia).
Deste modo, qualquer ciência que fosse válida deveria se pautar nos
acontecimentos da realidade, nos elementos empiricamente constatáveis.
Com tais formulações, criticavam severamente a ciência jurídica dos
juristas que somente se atinavam às leis formalmente criadas pelo
legislador. Além do mais, tais pensadores reivindicavam a função
judicial como a verdadeira fonte de direito, visto que se tratava de
efetivamente aplicar uma norma abstrata ao mundo fático, função esta
materializadora do direito e que alcançava, portanto, fins práticos.
Propunham, assim, a livre criação do Direito por parte do magistrado,
além de defenderem a idéia de que a Sociologia do Direito seria a única
e verdadeira ciência de estudo do Direito, posto que era a única que
se volta a atingir ao escopo do próprio Direito, que é a transformação
do mundo fático.
II.
A postura weberiana
Max Weber, por sua vez, assumiu
postura diferenciada frente a seus predecessores e, em verdade, encerrou
posições mais coerentes ante a concepção do caráter autônomo das
ciências, já amplamente aceito pelos pensadores na época. Criticou
Kantorowicz e Erlich porque ambos tentaram reduzir a Ciência do Direito
a uma disciplina sociológica, portanto tendo ambos investido-se de caráter
valorativo em suas teorias, tese incompatível com a neutralidade axiológica
pregada por Weber, como vimos no capítulo sobre seus ensaios metodológicos.
Segundo entendia, a ciência jurídica ou dogmática jurídica e a
sociologia do direito não poderiam jamais ser justapostas, de maneira
que ambas ocupam lugares distintos, isoladamente consideradas. Tal
discussão engendrada por seus antecessores – e que posteriormente é
retomada por Kelsen, só que de maneira inversa, tendo a dogmática jurídica
certa “prevalência” sobre a sociologia jurídica
– basicamente era pertinente a problemas de ordem metodológica e
não poderiam ultrapassar esta esfera, como o estabelecimento de
primazia de uma pela outra e vice-versa. É necessário ressaltar que
Weber evita, como fizeram Kantorowicz e Erlich, cair em uma postura “sociologista”,
promovendo adequadamente a distinção entre ambos os conceitos e seus
respectivos âmbitos de validade.
Emprestando alguns conceitos e idéias
de Jellinek
de “validade ideal” (a validade de uma norma frente ao conjunto de
outras normas) e “validade empírica” (a validade de uma norma
frente a um grupo de pessoas que se orienta perante essa norma ou com
relação a um grupo de normas), Weber trata de evidenciar essas duas
perspectivas de modo a esclarecer suas lógicas internas e operar sua
distinção fundamental entre a dogmática e a sociologia jurídicas.
Nosso autor já inicia o capítulo referente à “Economia e as Ordens
Sociais” de sua Economia e Sociedade deixando evidente sua
intenção:
Quando se fala de
“direito”, “ordem jurídica” e “norma jurídica”, deve-se
observar muito rigorosamente a diferença entre os pontos de vista jurídico
e sociológico. Quanto ao primeiro, cabe perguntar o que idealmente se
entende por direito. Isto é, que significado, ou seja, que sentido
normativo, deveria corresponder, de modo logicamente correto,
a um complexo verbal que se apresenta como norma jurídica. Quanto ao último,
ao contrário, cabe perguntar o que de fato ocorre, dado que
existe a probabilidade de as pessoas participantes nas ações da
comunidade – especialmente aquelas em cujas mãos está uma porção
socialmente relevante de influência efetiva sobre essas ações –,
considerarem subjetivamente determinadas ordens como válidas e
assim as tratarem, orientando, portanto, por elas suas condutas (WEBER,
1999, v. I, p. 209, grifos do autor).
Depreende-se desta passagem que Weber
reduz a tensão entre dogmática jurídica e a sociologia do direito a
um cariz estritamente metodológico. Ele considera que quando tratamos
da primeira ciência servimo-nos do método lógico-normativo, ao
passo que na segunda utiliza-se o método empírico-causal, este
típico da Sociologia. O método lógico-normativo possui a finalidade
de verificar no interior de um “cosmos de regras abstratas” suas
regras de validade, realizando uma verificação de compatibilidade lógica
das normas em um ordenamento. Esta operação, portanto, situa-se no
plano ideal, ou seja, no pensamento racional, no plano das idéias. Já
o método empírico-causal investiga o comportamento dos indivíduos
frente a um sistema de regras, avaliando a potencialidade de suas
condutas se subsumirem àquelas disposições, ou ainda, orientarem-se
segundo o conteúdo da norma, ainda que não cumprindo o que disposto
nela.
A dogmático-jurídica para Weber
possui uma peculiaridade especial: ela se situa na esfera do dever-ser (Sollen),
conquanto que lida com a forma de melhor regular (prescrever) condutas e
organizá-las sistemática e logicamente de modo a se criar um sistema
isento de contradições e exigível perante seus destinatários. Como
ele próprio no ensina, a dogmático-jurídica:
[...] propõe-se a
tarefa de investigar o sentido correto de normas cujo conteúdo
apresenta-se como uma ordem que pretende ser determinante para o
comportamento de um círculo de pessoas de alguma forma definido, isto é, de
investigar as situações efetivas sujeitas a essa ordem e o modo como
isso ocorre (WEBER, 1999, v. I, p. 209).
Assim entendido, investiga a dogmática
jurídica quais as hipóteses em que uma norma será considerada
proibida, permitida, concessiva, explicativa, integrativa dentre outros
tipos, de sorte a se imporem como uma ordem àqueles a elas
sujeitas. “Para esse fim”, continua Weber, “assim procede:
partindo da vigência empírica indubitável daquelas normas, procura
classificá-las de modo a encaixá-las em um sistema sem contradição lógica
interna. Este sistema é a ‘ordem jurídica’ no sentido jurídico da
palavra” (WEBER, 1999, v. I, p. 209).
Por outro lado, entende-se por
sociologia jurídica na obra weberiana o estudo do comportamento dos
indivíduos frente às normas vigentes e a determinação em que grau se
verifica a orientação dos homens por esse conjunto de leis (ordem legítima).
A tarefa sociológica na seara do Direito se atém a investigar, no
plano da realidade, do acontecer fático, o que se sucede no
comportamento das pessoas que se submetem a um ordenamento e de que
maneira se verifica sua orientação segundo esta ordem legítima. Como
bem interpreta Julien Freund, assinala que a sociologia jurídica
[...] tem por
objeto compreender o comportamento significativo dos membros de um
grupamento quanto às leis em vigor e determinar o sentido da crença em
sua validade ou na ordem que elas estabeleceram. Procura, pois,
apreender até que ponto as regras de direito são observadas, e como os
indivíduos orientam de acordo com elas a sua conduta (2000, p. 178).
Vislumbra-se que a preocupação de
Weber em situar esses limites específicos, ao que se infere, destina-se
a não permitir a confusão entre aqueles assuntos referentes aos
aspectos normativos e aqueles situados no acontecer social (empíricos).
Tal tarefa decorre da diferenciação quanto as regras do “ser” (Sein)
e do “dever-ser” (Sollen) – de tradição kantiana –,
na qual o comportamento humano orientado conforme a norma é de incumbência
de estudo da sociologia jurídica, atuar este que se situa no plano do
“ser”, da realidade fática, ao passo que as regras jurídicas, a
forma de sua criação, qual seu conteúdo a ser prescrito, qual sua
organização em um sistema lógico interno isento de contradições,
tais matérias seriam da alçada da dogmática jurídica resolver, posto
que se situam na esfera do “dever-ser”. Fica evidente tal consideração
quando nos reportamos ao próprio Weber, quando assevera com
propriedade:
[...] a ordem jurídica
ideal da teoria do direito [leia-se aqui dogmática jurídica] não tem
diretamente nada a ver com o cosmos das ações [...] efetivas [objeto
da sociologia jurídica], uma vez que ambos se encontram em planos
diferentes: a primeira, no plano ideal de vigência pretendida; o
segundo, no dos acontecimentos reais (WEBER, 1999, v. I, p. 209).
Um ponto bem peculiar é necessário não
deixar obnubilar-se: a sociologia jurídica é responsável de
investigar o comportamento dos indivíduos conforme um
ordenamento jurídico posto (vigente)
, orientando-se por ele. Não se trata aqui de que esse comportamento é
o que se dá observando a lei, na qual se segue ou obedece à
norma disposta. Um estelionatário, a fim de se livrar do peso da lei, orienta-se
segundo a norma com o fito de escapar a ela. Ele visa aplicar a máxima
diligência em não ser descoberto, porque, ao se orientar conforme a
norma, percebe que aquele comportamento é reprovável e sujeito à sanção.
Atente-se aqui para o fato de que a observância ou não observância
normativa não é requisito essencial para determinar o que é e o que não
é tarefa da sociologia jurídica investigar. Assim, basta a ação do
indivíduo conforme a ordem prescrita para que encontremos matéria de
análise. Como Weber explica:
O fato de pessoas
quaisquer se comportarem de determinada forma porque a consideram
prescrita por normas jurídicas é, sem dúvida, um componente essencial
da gênese real empírica, e também da perduração, de uma ‘ordem
jurídica’ (WEBER, 1999, v. I, p. 210, grifo do autor).
E complementa sua idéia em um outro trecho:
Também é
desnecessário [dizer] [...] que todos os que compartilham a convicção
do caráter normativo de determinadas condutas vivam sempre de acordo
com isso. Isso também nunca ocorre [...]. O “direito” é para nós
[segundo a ótica da sociologia jurídica] uma “ordem” com certas
garantias específicas da probabilidade de sua vigência empírica
(WEBER, v. I, p. 210, grifo nosso).
III.
A postura kelseniana
Mas nem com tamanha clareza e
discernimento Weber deixou de ser criticado. Hans Kelsen foi um de seus
principais contendedores, sem que em virtude disso tenha deixado de
reconhecer a clarividência do pensamento weberiano sobre a definição
da sociologia jurídica. O movimento positivista na época em que Weber
produz suas obras já é bastante acentuado e por diversas partes da
Europa vão surgindo diferentes teorias que, de maneira comum,
convergiam para um ponto central, consistente na idéia de se reduzir o
Direito a um universo de normas jurídicas criadas e impostas pelo
Estado. O Pandectismo na Alemanha, representado por Bernhard Windscheid
como seu expoente máximo; a Escola da Exegese francesa, que influenciou
diretamente na confecção do Código Napoleônico; passando pela Escola
Analítica na Inglaterra, cuja premissa era fundada na necessidade da
codificação dos textos legais, pregada principalmente por John Austin;
até Hans Kelsen, já no início do século XX, tem-se praticamente um século
de surgimento e consolidação do pensamento positivista/pré-positivista,
representando uma forte tendência crescente nas universidades e nos
tribunais da época.
Kelsen já havia tecido severas críticas
a Kantorowicz e Erlich contestando o posicionamento desses autores
conquanto a afirmarem ser a Sociologia do Direito a única ciência
capaz de definir o fenômeno jurídico, de forma a reduzir a ciência do
direito a uma disciplina sociológica.
Assim, Kelsen entendia que a Sociologia Jurídica não era uma ciência
autônoma, visto que, necessariamente, para definir seu objeto, teria de
recorrer a conceitos elaborados pela Ciência do Direito, fato este que
encerrava uma substancial dependência conceitual daquele campo de
conhecimento para com esta ciência. E tal razão, dentro do esquema
analítico kelseniano, possui uma fecunda coerência. Kelsen, ao tratar
o fenômeno jurídico como um sistema de normas válidas, ou seja, leis
que estariam em conformidade com aquelas que lhes seriam diretamente
superiores, hierarquicamente organizadas, até se chegar ao preceito
fundamental (Grundnorm), fundamento de validade de todo o sistema
jurídico, o pensador vienense reduz o âmbito do estudo da Ciência Jurídica
à norma (ou ao conjunto delas), excluindo da ciência jurídica os fenômenos
sociais, políticos e psicológicos, os quais seriam objetos da
Sociologia, Ciência Política e Psicologia, respectivamente. Era
assim que conferia “pureza” à teoria do Direito.
De tal sorte, as definições de “norma”, “ordenamento jurídico”,
“ordem jurídica” eram de incumbência da dogmática jurídica
resolver, visto que estes eram seus objetos próprios. A sociologia jurídica,
portanto, para Kelsen, não poderia jamais ser considerada como uma ciência
autônoma por lhe faltar conceitos próprios, sendo que para isso teria
de recorrer à Ciência do Direito (dogmática jurídica) e dali extrair
a definição de “norma”, “ordenamento” e “ordem jurídica”
para fundamentar suas teorias. Notória era a dependência da sociologia
jurídica em relação à ciência do direito no que pesa a esta
interface conceitual. Em sua Teoria Geral do Direito e do Estado,
o autor vienense, tece alguns apontamentos às posturas weberianas,
apesar de sobrelevar a astúcia de Weber em definir o âmbito de atuação
da sociologia jurídica:
O valor de uma
descrição de Direito positivo em termos sociológicos é ainda mais
diminuído pelo fato de que a sociologia só pode definir o fenômeno do
Direito, do Direito positivo de uma comunidade particular, recorrendo ao
conceito de Direito tal como definido pela jurisprudência normativa. O
objeto da jurisprudência sociológica não são normas válidas – as
quais constituem o objeto da jurisprudência normativa – mas a conduta
humana. Que conduta humana? Apenas a conduta humana tal que, de um modo
ou de outro, está relacionada ao “Direito”.
[...] Até agora,
a tentativa mais bem-sucedida de definir o objeto de uma sociologia do
Direito foi feita por Max Weber. Ele escreve: “Quando nos ocupamos com
‘Direito’, ‘ordem jurídica’, ‘regra de Direito’, devemos
observar estritamente a distinção entre um ponto de vista jurídico e
um sociológico. A jurisprudência pede as normas jurídicas idealmente
válidas”. Ou seja... qual significado normativo deverá ser vinculado
a uma sentença que aparenta representar uma norma jurídica. A
sociologia investiga o que efetivamente está acontecendo na sociedade
porque existe certa possibilidade de que os seus membros acreditem na
validade de uma ordem e adaptem (orientieren) a sua conduta a essa
ordem’. Daí, segundo essa definição, o objeto de uma sociologia do
Direito é a conduta humana que o indivíduo adaptou (orientiert) a uma
ordem porque considera essa ordem como ‘válida’; e isso significa
que o indivíduo cuja conduta constitui o objeto da sociologia do
Direito considera a ordem da mesma maneira que a jurisprudência
considera o Direito. Para ser objeto de uma sociologia do Direito, a
conduta humana deve ser determinada pela idéia de uma ordem válida (KELSEN,
1998, p 248 e 253).
Note-se a proximidade da idéia divisória
entre Kelsen e Weber no que toca à dogmática jurídica e à sociologia
do direito. Enquanto uma se preocupa com o exame das normas e suas relações
lógico-sistemáticas, a outra se atém ao campo de perquirição do
comportamento do indivíduo perante essas normas. Esse é o ponto que
mais coincide entre os autores concernente às suas conceituações. Ao
passo que a sociologia jurídica se ocupa das tarefas do “ser” (Sein),
a dogmática jurídica está ligada ao teor prescritivo, do dever-ser (Sollen).
Sem embargo, o principal enfoque diferenciador entre os estudiosos
reside na questão da total autonomia da sociologia do direito. Enquanto
Weber irá afirmar que a sociologia jurídica tem método e objeto próprios,
quais sejam, o método empírico-causal e como objeto o comportamento
humano perante a norma, Kelsen, apesar de concordar com o âmbito desta
última categoria (esfera do “ser”), insiste em afirmar que, para
esse comportamento ser estudado, há a necessidade da sociologia jurídica
recorrer ao conceito de “norma” (entenda-se “norma”,
“ordenamento jurídico”, “ordem jurídica”) elaborado pela ciência
do direito, o que afetaria terminantemente sua autonomia como ciência,
visto que teria de se valer de conceitos que estão fora da sua esfera
de alcance.
É importante lembrar que, malgrado
outras divergências de menor relevância, um outro ponto fundamental de
disparidade entre Kelsen e Weber se funda no conceito de “validade”.
Enquanto o primeiro entende a validade “como a existência específica
de normas” (KELSEN, 1998, p. 43 e 2000, p. 235), quando elas nascem e
se perpetuam dentro do ordenamento jurídico, observado o critério de
estar em conformidade com a que lhe é hierarquicamente superior, e
dotadas, portanto, de obrigatoriedade (critério meramente formal);
Weber já entende validade quando a orientação das ações sociais se
dá em função da norma jurídica (ou de normas jurídicas) (WEBER,
1999, v. I, p. 210), quando os homens se comportam pautando suas
condutas perante a norma. A contrario sensu, caso os indivíduos
desconsiderassem essa regra legal e não pautassem suas ações
orientadas por ela, indubitavelmente teria ela perdido sua validade.
Cabe ressaltar, por fim, que esse comportamento segundo a norma não
induz necessariamente a ser em conformidade com a norma (sinônimo
de observância), conforme detalhado anteriormente.
Norberto Bobbio aponta com extrema
agudeza esse ponto de intersecção entre Weber e Kelsen:
[...] malgrado a diversidade do objeto
de análise sociológica de Weber e jurídica de Kelsen, bem como
malgrado a diferença de terminologia, Weber e Kelsen concordam sobre um
ponto de vista extremamente importante, qual seja, a da distinção dos
pontos de vistas do sociólogo e do jurista e das duas esferas do ser e
do dever-ser, dos quais tratam as duas ciências [...] Kelsen considera
que a distinção é necessária, e que o critério de distinção
proposto por Weber é correto... [...] (1998, p. 263, tradução nossa) .
Embora convergisse teoricamente com
Weber no que toca à necessidade de separação e do estabelecimento
desses critérios de diferenciação entre sociologia do direito e dogmática
jurídica, Hans Kelsen, em contrapartida, não poupou ríspidas críticas
às propostas conceituais indicadas por Weber em sua sociologia jurídica.
Segundo afirma, não se pode asseverar que é tão somente objeto deste
ramo de estudo aquelas ações que se dão frente a uma norma jurídica,
orientadas por ela. Se assim fosse, as condutas delituosas cometidas por
uma pessoa, sem que ela se desse conta de que aquele comportamento era típico,
enquadrado como fato criminoso, não estariam submetidos à avaliação
da sociologia jurídica, tendo por fundamentação o fato de que ela não
se comportou tendo como baliza a norma penal. Tal ponto da argumentação
merece maior fundamentação:
A definição de
Max Weber do objeto da jurisprudência sociológica: a conduta humana
adaptada (orientiert) pelo indivíduo atuante a uma ordem que ele
considera válida, não é inteiramente satisfatória. De acordo com sua
definição, um delito que foi cometido sem que o delinqüente tivesse
qualquer consciência da ordem jurídica não seria considerado um fenômeno
relevante. Neste aspecto, a sua definição do objeto da sociologia é
obviamente muito restrita. Uma sociologia do Direito que investiga as
causas da criminalidade também levará em consideração delitos que
foram cometidos sem que o delinqüente adaptasse (orientieren) a
sua conduta à ordem jurídica. Todo ato que, de um ponto de vista jurídico,
é um “delito” é também um fenômeno que pertence ao domínio da
sociologia do Direito, na medida em que existe uma possibilidade de que
os órgãos da sociedade reagirão contra ele, executando a sanção
estabelecida pela ordem jurídica. Ele é um objeto da sociologia do
Direito mesmo se o delinqüente cometeu o delito sem pensar no Direito.
A conduta humana pertence ao domínio da sociologia do Direito não por
ser “orientada” à ordem jurídica, mas por ser determinada por uma
norma jurídica como condição ou conseqüência. Apenas por ser
determinada pela ordem jurídica que pressupomos como válida é que a
conduta humana constitui um fenômeno jurídico.
A conduta humana
assim qualificada é objeto da jurisprudência normativa; mas é também
objeto da sociologia do Direito na medida em que efetivamente ocorreu ou
provavelmente ocorrerá. Esta parece ser a única maneira satisfatória
de traçar um limite entre a sociologia do Direito e a sociologia geral.
Esta definição, assim como a formulação de Max Weber, demonstram
claramente que a jurisprudência sociológica pressupõe o conceito jurídico
de Direito, o conceito de Direito definido pela jurisprudência
normativa (KELSEN, 1998, p. 257-8).
No entendimento de Kelsen, como vemos
no texto, a única ciência capaz de definir o que viria a ser
“direito” seria a Ciência do Direito, tendo a sociologia jurídica
dependência direta desta para a sua formulação. Deste modo, o autor
vienense negava a dualidade de ramos do conhecimento que determinassem
objetos relacionados ao estudo do direito, a saber, a sociologia jurídica
e a dogmática jurídica, visto que a única ciência que poderia
fornecer um conceito de Direito seria a Ciência Jurídica, através da
dogmática.
Em que pese a argumentação do autor
vienense, inúmeras conclusões podemos traçar com base a nos
afastarmos mais dessa posição e nos aproximarmos do esquema analítico
weberiano.
IV.
Conclusões
Ao que parece, o mérito maior de
Weber foi o de distinguir o âmbito de atuação de cada um desses ramos
do conhecimento, a saber, a dogmática jurídica e a sociologia do
direito. Também se prestou, na mesma medida, a elucidar quais as
metodologias – a lógico-normativa e a empírico-causal – que ambas
as ciências se valiam para entender seus objetos específicos. Assim,
vislumbra-se que Weber indubitavelmente não negou o caráter científico
a nenhuma das duas ciências. Em realidade, cada uma analisa o Direito
sob prismas diferentes e de forma alguma excludentes. Pelo contrário.
Enquanto que a dogmática jurídica estabelece a melhor forma possível
de se elaborar e organizar normas, dentro de um sistema coerente e
isento de contradições e, acima de tudo, exigível, a sociologia do
direito atua do outro lado verificando se aquelas normas efetivamente
estão sendo seguidas e em que grau pelos seus destinatários. E nisto
servirá de auxílio àquela para elaboração de normas cada vez mais
eficientes e que cumpram o fim almejado pelo legislador.
Quando Kelsen afirma que a sociologia
do direito se serve de conceitos elaborados pela ciência jurídica,
negando seu caráter científico, acaba por limitar demasiadamente o
universo do fenômeno jurídico a uma visão muito restrita da
realidade. O que ocorre, em verdade, é que a sociologia jurídica se
utiliza das interpretações dogmático-jurídicas como um meio heurístico
de análise dos fatores empiricamente constatáveis. Trata-se de um
recurso instrumental de estudo das interconexões causais dos
comportamentos dos indivíduos perante o sistema normativo. É evidente,
entretanto, que sem um ordenamento jurídico ideal prévio, o
desenvolvimento das ações concretas seria impraticável. Não
obstante, ainda que a sociologia jurídica empregue alguns entendimentos
formulados pela dogmática jurídica, em nada isto interfere quanto a
lhe conferir autonomia e capacidade de formular seus próprios conceitos
e interpretações. No intuito de elaborar um sistema jurídico
“fechado”, isento de interferências externas ao Direito, é que
Kelsen comete tais impropriedades, conducentes a confinar o fenômeno do
Direito a um prisma unívoco e limitado, mediante o indiscriminado
emprego de seus posicionamentos reducionistas.
A idéia básica da sociologia jurídica,
seu objeto por excelência, reside na análise das ações dos homens,
verificando se, com efeito, a conduta deles se subsume à norma ou não,
se se afasta dela ou se aproxima. Entretanto, há que se ressaltar que não
se parte de uma relação da norma para com os indivíduos, mas ao contrário.
Weber inclusive levanta a hipótese, embora exagerada, entretanto em
nada fictícia, de que uma sociedade poderá reorganizar-se segundo
preceitos socialistas sem que, no entanto, com isso se altere um artigo
de lei. O que importa para a sociologia jurídica basicamente é a
verificação do comportamento dos indivíduos segundo determina o
sistema jurídico, estabelecendo o grau, teor, alcance e meios pelos
quais os homens seguem ou simplesmente ignoram os preceitos ideais
normativos. Estabelecer tais distinções é fundamental para a
sociologia jurídica. Há de se citar, a título de exemplo, que é
comum, muitas das vezes, que a população oriente suas ações segundo
um hábito ou costume, ato este embora originalmente criado ou em
conformidade com prescrições legais (v.g. a proibição do
casamento de filhos com pais, dever de fidelidade conjugal na constância
do matrimônio, a aposição de uma assinatura em um cheque etc.), mas
que de forma alguma a massa possui conhecimento da vigência ou mesmo da
existência dessa norma que gerou ou que se compatibiliza com esse hábito
ou costume. Não se pode aí afirmar que é hipótese de observância à
lei, a não ser no sentido postulado por Kelsen (subsunção formal).
Torna-se evidente que a pessoa não se orientou segundo a norma, mas a
um costume ou uso vigente. E para a sociologia jurídica essa diferença
é gritante.
Segundo Kantorowicz, “a Dogmática
sem a Sociologia está vazia. A Sociologia sem Dogmática está cega”
(apud FARIÑAS DULCE, 1989, p. 73, tradução nossa). São duas formas
distintas de se encarar o fenômeno do Direito que, inadvertidamente,
complementam-se entre si. E quanto a este aspecto Weber foi um pioneiro
e ao mesmo tempo um democrata de academia (que nos perdoem o uso impróprio
do mote). Em seu íntimo, cria ser possível existirem tantas ciências
quantos pontos de vista específicos para o exame de um problema e, em
função disso, não há que pensar que já esgotamos todas as
possibilidades. Pela sua posição alheada à diversidade científica,
refutava impetuosamente as teses de teóricos, especialistas ou filósofos
que intentassem reduzir a realidade ou um fenômeno a uma perspectiva
apenas. Tal era o teor das críticas que sempre atacava Auguste Comte e
sua tese da hierarquização das ciências sob a égide do positivismo,
para não falarmos de tantos outros autores.
Em razão das ciências serem autônomas,
pelos seus próprios fundamentos intrínsecos, nenhuma jamais poderia
servir de base ou modelo à outra. É impensável conceber a prevalência
da sociologia jurídica em relação à ciência do direito como
pensavam Kantorowicz e Erlich e, de maneira contrária, a primazia da
segunda para com a primeira, como entendia Hans Kelsen. A pedra de toque
elucidada por Weber foi justamente possuir a coerência e o
discernimento analítico em separar cada uma dessas ciências e relegá-las
aos seus respectivos campos de validade, preservando suas autonomias e
suas lógicas internas, as quais interpretam o Direito sob pontos de
vista diferentes, porém ambas dotadas de harmonia e coerência
interpretativa.
É apenas assim que podemos situar em
Weber as nossas diretivas mais veementes.