LUCAS MOREIRA DOS SANTOS

Aluno graduando da  faculdade de Letras da Universidade Federal de Uberlândia. Atualmente desenvolve sua pesquisa de iniciação científica sobre a poesia marginal brasileira da década de 70 com um plano de trabalho intitulado: Poesia Marginal: um momento da tradição romântica.

 

Beat Bat Bump! Bebop!Dig it??

Ensaiando com beatniks. A musicalidade jazzística de uma poética espontânea

 

Lucas Moreira dos Santos*

 

Resumo:

O movimento beat provocou um conflito de gerações em razão das atitudes de seus integrantes em relação à vida e à literatura. Tais atitudes foram uma negação às instituições e convenções sócio-literárias de sua época. Os beats criaram um estilo livre, chamado “prosódia bop”, aplicando à forma de se escrever prosa e poesia a espontaneidade que observaram no modo como os músicos do Bebop viviam suas vidas e tocavam suas músicas.

Palavras-chave: Beats, Jazz e Poesia

Abstract:

The Beat movement brought about a generation gap due to the attitudes of its writers towards life and literature, which were a denial of the social and literary istitutions and conventions of their time. The beats created a free style, called "bop prosody", aplying to prose and poetry writing the spontaneity they observed in the way the musicians of Bebop lived their lives and played their music.

 

… pois quase toda nossa originalidade vem da inscrição que o tempo imprime às nossas sensações.

C. Baudelaire.

 

Passado o grande impacto da negação empreendida pela geração beat aos valores sociais e literários do establishment nas décadas de 40, 50 e 60 do século passado, podemos agora, no interior da instituição acadêmica, reconhecer a genialidade daqueles que viveram as experiências primordiais de suas obras inovadoras no interior de uma sociedade americana extremamente reacionária e moralista. Os escritores beats, se bem sabemos das idéias dessacralizadoras desses rebeldes, questionaram a legitimidade de toda autoridade instituída, inclusive a dos intelectuais defensores de uma teoria literária sistemática e canônica, e que, nas palavras do poeta Allen Gisnberg, “seriam incapazes de reconhecer a poesia se ela os surpreendessem em plena luz do dia”. Comportando-se como uma geração desobediente, os beats combateram as idéias de “Tradição” e “Cânone”, quando aplicadas para determinar e instituir a ‘verdadeira’ arte. Sendo assim, preferiram construir obras clássicas no sentido romântico e antiacadêmico. Saíram do esquema universitário de gerenciamento e produção cultural que ocorria no seu país, os Estados Unidos, e enfrentaram a insolente censura moral da América que sempre se proclamou nação promulgadora da liberdade, mas que de fato, sempre puniu com leis rigorosas os “estranhos bêbados vanguardistas”.

A verdadeira arte é capaz de extrair o eterno do transitório, como diria Baudelaire. Para ele, a Beleza possui duas dimensões. Uma metade geral, atemporal, e outra particular, circunstancial. Com o advento da Modernidade, os artistas empenhados em produzir originalidade e inovação, procuraram não cair no vazio de uma beleza abstrata e indefinível, mas ao contrário, pretenderam realizar uma arte crítica ligada ao seu tempo, capaz de acompanhar as velozes transformações históricas da mudança contínua que caracteriza a época moderna. “Ai daquele que estuda no antigo outra coisa que não a arte pura, a lógica e o método geral. De tanto se enfronhar nele, perde a memória do presente” (BAUDELAIRE, 1996, p. 28). Cada época tem o seu porte, seu olhar e seu gesto. Nesse sentido os beats foram visionários, observadores apaixonados, que fixaram residência no movimento, no fugidio e no infinito. Saíram de mochilas nas costas seguindo a intuição, pois há sempre algo por aí, depois do horizonte, ou dentro de nós, que não podemos conhecer inteiramente enquanto vivemos. E o que descobriam de novidade diziam com bocas sujas, depois de mastigarem tudo o que encontraram pelo caminho, sempre experimentando e desafiando limites.

Segundo a estética da mimèsis, o valor da literatura e da arte, em geral, não está ligado exclusivamente a sua função representativa, mas provém também de sua dimensão experimental, “experiencial” (medindo-se a experiência que ela proporciona). Para Aristóteles a arte amplia a experiência humana, enquanto processo de conhecimento que provém relevantemente da sensibilidade. A inovação da forma é o reflexo das experimentações no plano da vida. Novas relações com o mundo, mudanças de perspectiva e compreensão resultam em novas formas de expressão. O experimental, na beat generation, assume a idéia de modernidade e vanguarda, pois propõe a transformação radical no campo dos conceitos-valores vigentes, apontando para a necessária articulação entre comportamento, experimentação formal e crítica. Veremos nesse artigo que a liberdade formal da literatura beat corresponde a um modo de vida que desprezava as convenções sociais e afirmava o direito de experimentar. Sua prática literária partia da realidade concreta do indivíduo, prescindindo de armadura ideológica para apenas dar voz aos ritmos primordiais da própria estranheza de quem se põe a escrever.

A experimentação desses escritores foi muito ousada e intensamente vivida. Em seus livros estão narradas suas vidas, coerentes com suas visões de mundo e concepções literárias. “A poesia e o poeta – disse Gregory Corso – são inseparáveis: não posso escrever sobre poesia sem escrever sobre o poeta. Na verdade eu, como poeta, sou a poesia que escrevo” (FROÉS, 1984, p. 13-14). Essa é a postura do artista moderno-romântico em relação à arte. Sua prática intelectual é coerente com sua opção existencial, o que lhe confere maior liberdade e autonomia crítica para interferir na sociedade de sua época.

Sexo, Drogas, Jazz, e todo tipo de libertinagem. Os textos beats refletem suas biografias, e a narrativa do que viram é pros de estômago forte. Por fazerem a distinção entre a obra e vida desses escritores, os críticos foram incapazes de entender suas transgressões enquanto atitudes legitimamente literárias. (WILLER, 1984, p. 29-30); e o juízo moral sobre o comportamento dessa geração gerou o preconceito que impedia os “legisladores” e os “juízes” de tratarem a literatura beat com respeito. Acontece com todo artista visionário e em embate com seus contemporâneos; não tem reconhecida sua genialidade e a única fama que conhece é a de ‘Maldito’.

1.0 A Prosódia Bop

O homem que fala pode modular a matéria fonética quanto quiser e puder afim de deitar mão, pictoricamente, no caráter sensível da coisa.

Karl Bühler.

 

O aspecto sonoro da escrita beat é da maior relevância para se compreender a proposta libertária desses escritores. A partir de agora, voltaremos nossa atenção sobre a musicalidade dessa literatura, resultado da incorporação do jazz moderno, ou bebop, na elaboração de uma escrita espontânea.

Numa tentativa de resgatar a tradição oral da literatura e, ao mesmo tempo, de levar a poesia para além dos limites das universidades, bibliotecas e instituições que a tornavam sacra, os beats produziram uma literatura para ser recitada e ouvida, como música, e não para ficar restrita aos limites da folha de papel do livro empoeirado na estante. - Os moralistas que se ofendiam com nomes feios, que tapassem os ouvidos! -  O costume de ler poesia em público cresceu muito nos Estados Unidos depois que esses poetas introduziram essa prática  de grande valor social e de enorme potencial transformador, em razão de sua função coesiva. Nas comunidades arcaicas, os cantos sagrados eram expressões de encantamento, fusão afetiva com a comunidade, aleluia ou esconjuro, em resposta à necessidade de comunhão física e espiritual dos homens. Os sarais idealizados pelos beats também tinham essa função, propiciar o sentimento de comunhão do homem com os outros, consigo, com Deus, ao som do ritmo da palavra declamada. E esse ritmo, assim como o ritmo primitivo ou arcaico, concentra e realça os acentos da linguagem oral, livres e desregulares. O uso intensivo do ritmo da fala corresponde a uma forte carga de motivação orgânica e social, como era característico nos rituais antigos. A leitura de poesia em público nos ajuda a entender a grande repercussão e abalo social causado pela beat generation. Pensaram que era possível aprofundar a autonomia da arte e ao mesmo tempo reintegrá-la à vida, generalizar as experiências e transformá-las em fenômenos coletivos.

Sua poesia destinada aos ouvidos revela uma preocupação e trato especial à matéria audível de seus textos, o que os distingue dos escritores que não reconhecem o devido valor e importância desse constituinte sensível do sentido das palavras, o som. E mesmo na prosa, principalmente a de Kerouac, podemos notar o trabalho sobre a variação na altura, intensidade, tom duração e ritmo da fala, por meio do qual ele consegue construir trechos poeticamente jazzísticos.

1.1. A presença do corpo na produção dos signos poéticos

Para os signos convencionados, o som dos significantes não são mais que escolhas arbitrárias dentro das possibilidades fonéticas da língua, mas todo signo motivado surge de um sopro quente saído das entranhas  de um indivíduo guiado pela vontade de significar. A motivação das palavras deve levar em conta a intimidade da produção dos sons com a matéria sensível do corpo que os emite. É principalmente na leitura poética onde a expressividade se impõe , em função dos efeitos sensoriais valorizados pela repetição dos fonemas ou seu contraste. O significado aparece sob as espécies do nome concreto, ou da figura, e é trabalhado pelos poderes da voz (BOSI, 1977, p. 88).

Todo discurso se realiza no tempo mediante alternâncias, sendo, portanto o ritmo uma qualidade inerente à fala, ao canto, ao verso. Para se atingir a significação é preciso acompanhar corretamente esse ritmo em que foi desenvolvido determinado pensamento, pois este, quando concretizado na frase, produz ou reaviva algum efeito rítmico da língua que, em virtude do novo contexto, se torna significativo.

A marcação subjetiva do ritmo se chama andamento. Nele se conjugam fôlego, intenção, duração, que fazem parte do significado das orações. Nas palavras de Alfredo Bosi, “é necessário apreciar na sua justa medida o poder semântico do andamento. Ele mantém em plena vida certas dimensões existenciais do texto, que correriam o risco de se sepultar sob as camadas da letra quando esta é apreendida só mentalmente.”(BOSI, 1977, p. 87). O andamento impede que as propriedades sensíveis se cancelem. Ele é a energia significante que anima a matéria significada, a imagem.

Pela visão romântica do universo e do homem, a analogia se apóia em uma prosódia. Essa visão foi mais sentida que pensada e mais ouvida que sentida. Nos dizeres de Octavio Paz, a analogia, princípio fundamental do fazer poético, concebe o mundo como ritmo: tudo se corresponde porque tudo ritma e rima. A analogia não só é um sintaxe cósmica, é também uma prosódia. Se o universo é um texto ou um tecido de signos, a rotação desses signos é regida pelo ritmo. ( PAZ, 1984, p.88)

Não menos importante que marcar o ritmo dos versos ou das orações imagéticas da prosa poética para desvendar-lhes os significados, também é de vital importância encontrar o tom correto, recitar com a devida entoação. Sim, pois – citando novamente Alfredo Bosi – “A entoação desvela os movimentos da alma que estão trabalhando a frase à procura de palavras”. (BOSI, 1977, p. 94). A melodia composta de tons antecede e determina a escolha dos signos verbais, expressando de forma universal e afetiva a manifestação da vontade de significar, que logo encontra os signos verbais mais adequados para a materialização do sentimento.

Andamento e entoação. Tempo qualificado e linha melódica. Ambos ordenam-se à significação do todo. Ambos são movimentos regidos pelo princípio da alternância – No ritmo sílaba forte/fraca – Na melodia sílaba alta/baixa ou aguda/grave – sendo que a ênfase de significação recai sobre a sílaba mais vibrante ou alta, superando a sílaba forte, marcada pelo ritmo. Portanto a entoação pode subverter o acento do ritmo, apesar de que a relação semântico-sonora sempre se dá pelo enlace dos dois elementos da musicalidade: andamento (ritmo) e entoação (melodia).

Recorrendo a Shopenhauer, Alfredo Bosi comenta sobre a poder que a música tem de adentrar no íntimo dos fenômenos e sensações; ela é capaz de produzir conhecimento mais direto e imediato do real, atingindo a zona inconsciente, pré-categorial, comum ao sujeito e ao mundo (BOSI, 1977, p. 92). A Poesia, na qualidade de música, palavra musical, nos permite sentir a energia vibrante que obedece à intencionalidade expressiva e transmite a impressão verdadeira que temos das coisas, esquivando-se da ameaçada da fixação conceitual das palavras. Vejam o que declarou o grande teórico da musicalidade da poesia, Mallarmé: “O canto jorra de uma fonte inata, anterior a um conceito, tão puramente que reflete, de fora, mil ritmos e imagens” (BOSI, 1977, p. 82).

Portanto, por meio do trabalho rítmico e melódico que os beats realizaram em sua linguagem, podemos nos aproximar do mistério que tentavam desvendar; daquilo procuravam em suas viagens e delírios.

1.2. A literatura que é música

A pergunta que nos caberia fazer para iniciarmos a leitura dessa literatura seria: Qual a música que dela se ouve? Ok man, I’ll tell you. It’s BeBop. Dig it? BeBop.

Antes de prosseguir com a relação entre beats e Jazz, é importante que façamos uma ressalva sobre o que chamamos de “literatura beat”. Como num grupo de Bebop, os beatniks “tocavam” juntos, porém sempre sozinhos. E ainda por não possuírem programa estético a seguir, produziram obras diversificadas que conferiram bastante pluralidade ao grupo. Não se prenderam muito à idéia de compor um ‘movimento literário’. O termo ‘literatura beat’, aqui nesse artigo, não pretende abarcar toda a produção desses autores, o que não poderia ser feito sem a abordagem de cada um deles, e mais ainda, sem se considerar a diversidade de cada autor em si próprio.  Mas a questão do ritmo jazzístico é a chave para os principais textos beats, ou, pelo menos, para os mais lidos, como o romance On The Road de Kerouac e o poema Howl, de Ginsberg. Ambos textos representativos dessa geração. Além desses dois ícones, também devemos considerar Gregory Corso, outro beat que escreveu com toda a espontaneidade de um Thelonious Monk ou de um Charlie Parker.

Bom, então retomemos a relação beats/bebop. A grande influência que Kerouac e seus amigos herdaram de seus heróis revolucionários do jazz pode ser imediatamente associada ao nome que o próprio Kerouac deu à sua geração. ‘Beat’. Podemos traduzir por ‘batida’, ‘bater’, e associa-lo diretamente ao Jazz. Contudo, é preciso que se diga que o termo encerra um significado mais complexo, pela associação dos termos ‘batida’, ‘beatitude’ e ‘abatido’. ‘Beatitude’ pela relação da Poesia com o “sagrado”, e ‘abatido’ pela gíria do jazz e hipsters do pós-guerra, “down and out”, “exausted”, devido à situação marginal dessas personalidades sinceras que se opunham, com lucidez maior que o comum, à ordem fria e calculista da sociedade americana dos anos 40 e 50. Foram eles os enjeitados pelo sistema; os pais do inconformismo que agitou os anos 60 e 70.

Como já mencionado no início do artigo, a respeito da metade efêmera e transitória da obra de arte, os “malucos” da geração beat tinham antenas para captar a beleza de sua época. Se foram capazes de produzir uma beleza eterna, que renascerá na subjetividade das pessoas durante muito tempo, não sei ao certo. Provavelmente não, pois não era esse seu desejo. A arte só tinha valor pra eles enquanto pudessem vivê-la.  Por isso fizeram do Bebop mais que seu estilo musical preferido, mas uma atitude em relação à vida; um modo de andar, de falar, de guiar o processo de criação artístico. A alma dos anos 40 e o que ela viria a se tornar dos 50 em diante apareceu para eles na forma do jazz moderno. Passavam noites bebendo jazz e improvisando poesia na embriagues compartilhada com os músicos. Mesmo Neal Cassady que era beat mais pela alma que pela produção literária (bastante escassa), tinha grande potencial para improvisar súbitos versos incontidos.

Além do modo de vida desregrado que incorporaram do mundo boêmio do jazz, os beats aplicaram as principais idéias do Bebop no seu modo de escrever prosa ou poesia. Trabalharam no sentido de criar uma prosódia musical, ou seja, ajustar as palavras à música e vice-versa, afim de que o encadeamento e a sucessão das sílabas fortes e fracas coincidam, respectivamente, com os tempos fortes e fracos dos compassos. A prosódia bop é o resultado do acesso direto ao fluxo que percorre os níveis da consciência e que surge em explosões de palavras raramente revisadas e pouquíssimo separadas por pontuação. “No periods... but the vigorous space dash separating rhetorical breathing (as Jazz musician drawing breath between outblown phrases)” (KEROUAC, Essencials of Spontaneous Prose). Prosa espontânea conseguida, nas palavras de Kerouac:

Sem “seletividade” de expressões, mas seguindo livres desvios (associações) da mente por entre ilimitados percursos em um oceano de pensamentos, nadando no idioma inglês sem disciplina, seguindo a sugestão do ritmo... Sopre forte de acordo com a extensão do que deseja escrever, vá fundo, pesque na profundidade em que conseguir chegar, satisfaça a você mesmo primeiro, então o leitor não falhará em receber o choque telepático e a excitação do significado produzido pelas mesmas leis operando em sua própria mente humana (KEROUAC, Essencials of Spontaneous Prose).

A máquina de escrever, como o saxofone, se tornando extensão do corpo para realizar a criação espontânea guiada pelo ritmo e melodia do sentimento verdadeiro, primário. Como disse Allen Ginsberg certa vez, parafraseando uma antiga filosofia Budista – “First Thought, best thought”. Ginsberg chamou essa técnica de improvisação para a escrita “Composing on Tongue”, que de certa forma foi usada pelos outros autores beats.

1.3. A espontaneidade da música bop como chave para abrir as portas da inspiração

Teccnicalmente o bebop caracterizou-se por um ritmo rápido, harmonias complexas, melodias intricadas, e seções rítmicas que mantém uma batida regular no baixo e no chimbal da bateria. As melodias do bepop são geralmente labirínticas, cheias de giros e voltas surpreendentes. Todos esses fatores – mais a predominância de pequenos grupos no bebop – separaram essa música das Swing bands dos anos de 1930 .

Além dessas características, podemos acrescentar uma já citada: o modo individual de tocar, aumentando os limites da espontaneidade até não se entender como a música se integra num todo único. Os solos também demonstram grande virtuosidade e frenesi. Tentem escrever ininterruptamente por alguns minutos, como tocavam os músicos do bop, e verão a enorme dificuldade em fazê-lo. Kerouac escreveu On the Road em 20 dias, no ritmo de cem palavras por segundo. O rolo contínuo de papel, para que o escritor não perdesse a contigüidade do processo, media quarenta metros de comprimento. Depois, movido a benzedrina, escreveu The Subterraneans em três dias.

As drogas de fato ajudaram tanto os beats quanto os músicos do Bop a criar com maior liberdade e menor inibição possível. Mas com certeza não produziram nada que não saísse de sua próprias mentes ativas. Pensar que os beats estariam possuídos pelas drogas seria ainda acreditar, como os antigos gregos, na inspiração como uma força externa ao artista. Com o advento da Modernidade e, com ela, o romantismo, essa idéia de possessão foi se modificando. Em lugar de ser o instrumento passivo ou voz de um poder estranho, o artista, através da parte inconsciente e involuntária de si mesmo, se identificava com o absoluto. Mas a teoria da inspiração de Platão, apesar de propor uma origem divina para a Poesia, está, em certa medida, bastante próxima do que os beats demonstraram entender sobre criação artística. Não é difícil perceber uma grande relação entre o método espontâneo desenvolvido pelos beats e esse trecho do enunciado clássico da teoria de Platão sobre a inspiração:

Pois os autores desses grandes poemas que admiramos não alcançam a excelência através de regras da arte, mas descantam as suas formosas melodias em verso num estado de inspiração e, por assim dizer, possuídos de um espírito que não é o seu. Dessarte, os compositores de poesia lírica criam os seus cânticos admiráveis num estado de divina insanidade, como os coribantes, que perdem todo o domínio da razão no entusiasmo da dança sagrada; e durante essa possessão sobrenatural são excitados pelo ritmo e pela harmonia que comunicam aos homens. [...] (OSBORNE, S/D, p. 186).

Platão parece estar falando dos próprios beats. Poetas que escreveram guiados pelo espírito da música, despojados de toda a sanidade ou racionalismo que pudesse operar como censor das palavras ritmadas, motivadas. Para os românticos que defenderam a liberdade da inspiração em lugar de regras sistemáticas para a arte, Platão deixou uma pista da verdadeira arte poética: “Mas quem quer que, sem delírio das musas, vá bater às portas da poesia, persuadido de que sem dúvida conseguirá, pelo artesanato, tornar-se um poeta bem sucedido, nada alcançará e a poesia da sobriedade será sobrepujada pela do louco.” (OSBORNE, S/D, p. 185).

Por isso os beatniks ouviram o conselho de Baudelaire e embriagaram-se sem parança. Como os surrealistas, escreviam realmente “stoned” para facilitar o fluxo de visões, lembranças, idéias e insights. Porém, tratava-se mais de um “fluxo de consciência”, o qual se aproxima mais da teoria de William James, mestre de Gertrude Stein, do que a proposta surrealista de distinção entre consciente e inconsciente, para dar privilégio ao último (WILLER, 1984, p. 43).  As anfetaminas mantinham o ritmo rompante, como o de um cavalo disparado, e os alucinógenos abriam as janelas para as imagens. “Não pense em palavras quando parar, tente ver imagens”, Escreveu Kerouac em Belief & Technique For Modern Prose. O poema de Allen Ginsberg “Mescaline” resultou dessa mistura contida na própria mescalina, um derivado do peiote, altamente alucinógeno e que também é estimulante.

What can Williams be thinking in Paterson, death so much on him

so soon so soon

Williams, what is death?

Do you face the great question now each moment

or do you forget at breakfast looking at your old ugly love in the face

 

are you prepared to be reborn

to give release to this world to enter a heaven

or give release, give release

and all be done-and see a lifetime-all eternity-gone over

into naught, a trick question proposed by the moon to the answerless earth

no glory for man! No Glory for men! No glory for me! No me!

 

No point writing when the spirit doth not lead

 

O tom angustiante da sensação de quem se vê apodrecer ajuda o eu-lírico de “Mescaline” a exteriorizar, como num sopro de desabafo, o sentimento de morte análogo à insignificância, ou falta de significado, da vida. Todo o fluxo emocional e filosófico movido por esse sentimento jorra com uma vazão maior que a capacidade do poeta de retê-lo, pois não é seu desejo impedir a continuidade do ritmo e melodia nascidos do íntimo da sua vontade-de-dizer e que participam da escolha da palavra exata, o môt juste, (para lembrar os simbolistas franceses).  Com o último verso, “Não faz sentido escrever quando não é o espírito que guia”, Ginsberg conclui o poema reafirmando a idéia de espontaneidade da já mencionada filosofia oriental, o Zen-budismo.

Seguir a música que emana do espírito fixando as primeiras palavras que acenderem nos circuitos emaranhados do cérebro. Os versos que daí resultam, livres, caminham como poesia “meio muda, meio articulada”, nos termos de Vico (BOSI, 1977, p. 93) Significa que na linguagem poética dos povos civis (fase capitalista), convivem esquemas cerrados de repetição (ou ritmos) e processos mais livres de articulação, por meio dos quais a linguagem se estende em prosa.

1.4. Prosa ou Poesia, uma questão de ritmo

Poesia em prosa ou prosa poética, às vezes a linguagem dos beats se equilibra entre as duas coisas. No discurso prosaico, as alternâncias que marcam o avanço da frase tendem a converterem-se em alteridade serial: b diferente de a; c diferente de b; d diferente de c.... enquanto o ritmo que anima a palavra poética vem em ondas, num jogo de diferenças que se compensam e se recuperam na volta ao semelhante. Ele ajuda a compor o poema como um todo orgânico, cíclico. Apesar das recorrências e repetições que aparecem na forma de aliterações, assonâncias, paralelismos, etc, nos longos versos de poemas como Howl, escrito por Ginsberg, o andamento do ritmo bop tende a ser um contínuo caminhar por linhas que se encadeiam em longas seqüências, compondo longos intervalos entre a periodicidade do ritmo. Assim, os longos versos que lembram parágrafos de uma escrita linear, na verdade possuem ritmo sim. Corrente e acelerado, pois os sentimentos e visões que corriam na frente das mentes poéticas desses escritores nunca paravam para que o pensamento voltasse a trás. Era preciso bastante improvisação para que o poeta conseguisse manter a sincronia entre a música frenética na sua cabeça e as palavras de mãos dadas no papel.

Transcrevemos a seguir trechos do poema Howl para que o leitor perceba a relação entre o andamento de seus longos versos e o ritmo ondeante do Bebop. A poética performática de Howl começa com o tema lançado pelos primeiros versos:

I saw the best minds of my generation destroyed by madness, starving hysterical naked,

dragging themselves through the negro streets at dawn looking for an angry fix,

angelheaded hipsters burning for the ancient heavenly connection to the starry dynamo in the machinery of night ...

A partir dessa base o ritmo retorna ao ponto de partida, para novamente lançar-se para frente no tempo rápido do delírio Bop. “Eu dependia da palavra ‘who’ para manter a batida, uma base para manter a medida, retornar e começar novamente em outro período de invenção”, como claramente explicou Ginsberg em um ensaio de 1959 sobre suas próprias concepções estéticas (JANSSEN, (5) ) . A técnica usada em Howl pode ser comparada a uma música de Charlie Parker, um dos pais do Bebop, na qual ele toca uma série de frases improvisadas sobre o mesmo tema, pausando para respirar e começando outra:

who cut their wrists three times successively unsuccessfully, gave up and were forced to open antique stores where they thought they were growing old and

cried,

who were burned alive in their innocent flannel suits on Madison Avenue amid blasts of leaden verse and the tanked-up clatter of the iron regiments of

fashion and the nitroglycerine shrieks of the fairies of advertising and the

mustard gas of sinister intelligent editors, or were run down by the

drunkentaxicabs of Absolute Reality,

who jumped off the Brooklyn Bridge this actually happened and walked away unknown and forgotten into the ghostly daze of Chinatown soup alleyways and firetrucks, not even one free beer ...

E por aí vão se encadeando os flashes de memória, reconstruindo as imagens de uma geração beat destruída pela loucura.

O uivo é, por si mesmo, um tipo de grito expressivo que causa arrepios, desperta medo. Ele é exemplo do poder semântico da melodia pura, independente de palavras. Nos últimos versos da primeira parte do poema o autor revela a essência musical do Uivo e a forma jazzística de seu pensamento. Em português:

que sonharam e abriram brechas encarnadas no Tempo & Espaço através de imagens justapostas e capturaram o arcanjo da alma entre 2 imagens visuais e reuniram os verbos elementares e juntaram o substantivo e o choque de consciência saltando numa sensação de Pater Omnipotens Aeterne Deus,

para criar a sintaxe e a medida da pobre prosa humana e ficaram parados à sua frente, mudos e inteligentes e trêmulos de vergonha, rejeitados todavia expondo a alma para conformar-se ao ritmo do pensamento em sua cabeça nua infinita

e se reegueram reencarnados na roupagem fantasmagórica do jazz no espectro de trompa dourada da banda musical e  fizeram soar o sofrimento da mente nua da América pelo amor num grito de saxofone de eli eli lama lama sabactani que fez com que as cidades tremessem até seu último rádio,

com o coração absoluto do poema da vida arrancado de seus corpos bom para comer por mais mil anos (GINSBERG, 1999, p. 38).

O que tentamos comunicar por este artigo está exposto claramente nos versos grifados. A reinvenção da linguagem pelos beats é uma criação artística que se valeu do ritmo prosaico vestido na roupagem do jazz. Ritmo arrancado de seus corpos como resposta às impressões e estímulos que receberam do mundo exterior.

Uivo de dor, de agonia. Uivo de Carl Solomon dentro de um hospital psiquiátrico para todas as pessoas comuns do lado de fora cuja sanidade é bastante questionável. Certa vez Ginsberg revelou exatamente a origem musical de Howl: “Lester Young, na verdade, era no que eu estava pensando... Howl é todo ‘Lester Leaps In’. E eu saquei isso com Kerouac. Ou prestei atenção nisso por causa do Kerouac. Certamente foi ele quem me fez ouvir isso” (JANSSEN, (5) ).

1.5. Um sax incontrolável

Entre todos da turma, Jack Kerouac era talvez o mais apaixonado por jazz. No início da década de 40, percorria as bocas musicais de Nova Yorke em busca de novos sons para a gravadora de seu amigo Jerry Newman.  Dessa forma ele acompanhou a revolução cultural dos jovens músicos negros que estavam criando o jazz moderno e se identificou muito com a nova estética. Com a nova ética também, tanto que a total liberdade e espontaneidade comportamental aplicada à sua vida resultou em morte por abusos, principalmente de anfetaminas e álcool. Mas como os suicidas, kerouac reivindicava o controle sobre a própria vida; poder viver da forma e o quanto quisesse. Quem mais consegue? Você leitor, acha que faz o quer ou que quer fazer o que faz?

Em 1959, ele apresentava seu livro de poesias México City Blues nos seguintes termos.

“Quero ser considerado um jazz-poeta, improvisando um longo blues em uma jam session numa tarde de domingo. Minhas idéias variam e às vezes rolam de chorus, ou da metade de um chorus à metade do seguinte”( MUGGIATI, 1984, p. 75).

Segundo o amigo Ginsberg, Kerouac aprendeu tudo diretamente com Charlie Parker, Gillespie e Monk, os mestres do Bebop. “He was listening in 43 to ‘Symphony Sid’ and listening to ‘Night in Tunisia’ and all the Bird-flight-noted things which he then adapted to prose line” (JANSSEN, (5) ). Em seu livro Visions of Cody, Kerouac realizou uma experiência com Neal Cassady. Transcreveram em 130 páginas uma longa conversa que eles mesmos tiveram ao som de jazz, e claro, com a cabeça feita, loucos. Roberto Muggiati colocou em seu artigo sobre Beats & Jazz um comentário de Ginsberg a respeito dessa experiência.

é arte porque, naquele ponto do seu progresso, Jack começou a transcrever os primeiros pensamentos da verdadeira mente na fala americana e, como uma amostra objetiva desse linguajar ‘ligado’ do seu herói-modelo, ele colocou a fita sem correções no centro do seu livro, uma amostra real da realidade que ele estava rapsodiando em outros meios... a fita pode ser lida como um ritual espontâneo executado uma vez e nunca mais repetido, na plena consciência de que cada bocejo e sílaba pronunciado seria eterno.

Ginsberg ainda diz que essa obra continua Gertrude Stein, especialmente no que ele chama de “ioga das palavras”, uma desconstrução da linguagem na qual “os sons não tinham mais qualquer associação mas eram apenas puros sons num universo físico espacial”, tornando-se “puras estruturas rítmicas para serem pronunciadas em voz alta” (WILLER, 1984, p. 40). O sentido intelectual, inteligível, é suprimido nessa experiência que eleva a literatura à condição de música. O prazer está na cadência das palavras, na sua musicalidade.

Kerouac participava regularmente de leitura de poesia com acompanhamento de jazz. Jack Chambers conta em seu livro Milestones: The Music and Time of Miles Davis que em suas melhores noites, Kerouac interrompia com a poesia e começava um som instrumental com a própria boca, o que chamam de scat singing. “... era realmente apurado e algo mais que simples imitação” (JANSSEN, (5) ).

O autor de On The Road, livro que está para a prosa beat o que Howl estaria para a poesia, admirava muito o gênio criativo dos mestres do Bebop. Ele não só escreveu no ritmo do jazz, como também escreveu sobre o jazz, tomando-o como tema e cenário em partes do referido On The Road. O capítulo dez é uma mini história desse ritmo, de New Armstrong à vanguarda bop. E num outro capítulo ele descreve uma jam session em São Francisco com uma linguagem rica em onomatopéias e gírias jazzísticas:

...uma cascata sonora jorrava daquele sax; não mais simples frases musicais, mas gritos, bramidos, uivos, gemidos, ‘Boohh’, baixando para ‘Biihi!’ e voltando a subir até “hiiii’, retinindo, tilintando, ecoando em sons laterais de um sax incontrolável (MUGGIATI, 1984, p. 77).

Trechos assim comportam duplo sentido. Podemos lê-lo como metalingüagem se trocarmos ‘sax’ por ‘máquina de escrever’.

Apesar de que a musicalidade característica da prosódia bop só se realiza plenamente em inglês, o ritmo livre e aberto da espontaneidade se pode notar pela leitura em português. É ele o barco que devemos tomar para descermos as corredeiras da linguagem beat. “Visões! profecias! alucinações! milagres! êxtases! descendo pelo rio americano!” (GINSBERG, 1999, p. 41-42). Além dos aspectos sonoros (melodia, duração, configuração fonética), a tradução também se complica quando se depara com gírias do jargão do jazz. Expressões como Square, cats, nowhere, dig, são exemplos do vocabulário que os beats incorporaram do mundo bop. Como bem observou Roberto Muggiati, o jazzman criativo improvisava também sobre sua própria linguagem cotidiana. Era essa linguagem coloquial, viva na fala das pessoas, a mesma utilizada nas narrativas e poemas beats. Henry Miller comenta sobre a origem musical desse modo bop de se expressar no prefácio para a novela The Subterraneans, escrita por Kerouac:

O bom poeta, ou nesse caso o ‘prosodista espontâneo do bop’, está sempre aberto para o jargão idiomático do seu tempo – o suingue aberto, a batida, o ritmo metafísico disjuntivo que surge tão rápido, tão turbulento, tão precipitado, tão incrivelmente louco que, quando transmitido para o papel, ninguém o reconhece. Ninguém, a não ser os poetas. (MUGGIATI, 1984, p. 78).

Nesse livro The Subterrâneans, ambientado no mundo do jazz, Kerouac desenvolve trechos de prosódia bop carregados de grande força poética.

A mistura de prosa e poesia veio se desenvolvendo após a Modernidade com o romance. De repente quando nos damos por conta, estamos suspensos no ar pela sublime poesia veiculada por imagens e ritmo, introduzida no intervalo da narração. E o contrário também ocorreu, depois que se passou a produzir poesia em prosa, extinguindo-se de vez os limites do verso.

Na prosa poética como a de Subterrâneans, freqüentemente os períodos se formam como um cordão de várias imagens associadas em longas orações. O ritmo da palavra motivada está ali presente, no andamento do jazz, apesar de que as recorrências do eterno retorno da forma cíclica do ritmo estão quase inteiramente no nível semântico, enquanto o nível sonoro é um contínuo caminhar para frente. Trata-se do ritmo frásico da fala. Células rítmicas de caráter sintático e semântico, e não de caráter aritmético. A pontuação pouco separa as orações, que é para manter unidas num só fluxo todas as visões que saltaram à mente quando o autor estava “in tranced fixation dreaming upon object before the mind”.  Esta citação é um dos trinta procedimentos que explicam a prosódia bop segundo o Belief and Technique for Modern Prose, escrito por Kerouac. “Struggle to sketch the flow that already exists intact in mind”, ou seja, os objetos surgidos de uma grande explosão na cabeça precisam ser organizados ao longo do fluxo que já nasce intacto de dentro do poeta.

Como teórico da prosódia bop, Kerouac também escreveu Essentials Of Spontaneous Prose, em que explica passo a passo seu processo de escrita espontânea:

No pause to think of proper word but the infantile pileup of scatological buildup words till satisfaction is gained, which will turn out to be a great appending rhythm to a thought and be in accordance with Great Law of timing. (KEROUAC, Essentials Of Spontaneous Prose)

Por este parágrafo podemos perceber a grande relação da escrita espontânea com o Bebop. Ela é construída por palavras improvisadas provenientes do ritmo que se move dentro do autor. E por surgirem espontaneamente de um ritmo conturbado, jazzístico, as palavras formam uma “pilha de escatologia infantil”, pelo seu poder de criatividade sem limites, sem censura. O movimento do ritmo move a mente do autor. E a linguagem produzida é análoga à improvisação “discursiva”- distendida - do músico bop.

Time being of the essence in the purity of speech, sketching language is undisturbed flow from the mind of personal secret idea-words, blowing (as per jazz musician) on subject of image

Sendo o Tempo (da frase) o da essência na pureza da fala, linguagem espontânea é um fluxo sem bloqueio nascido da mente composto de idéia-palavras, sopradas (como por músicos de jazz) sobre o tema da imagem.

O autor só precisa de um tema para que ele improvise em cima, sem bloqueio. Visões, metáforas, figuras, sensações, criadas por meio do princípio mais fundamental da operação poética, a analogia, injetam poesia no meio do discurso prosaico. Um momento lírico e, portanto, capaz de exprimir mais diretamente a subjetividade do autor. Pois bem, o fluxo musical do pensamento espontâneo compõe melodias labirínticas, harmonias complexas, tal qual ao ritmo do Bebop, por isso os períodos dão giros e voltas confusas para misturar as imagens que correriam o risco de perder a unidade na distensão temporal prosaica. Não é tão óbvia a unidade da música bop, pois ela é uma longa seqüência muito diversificada e emaranhada, como a linguagem do pensamento beat.

2.0. Conclusão

A liberdade de experimentação formal na literatura beat é o reflexo da busca de liberdade de pensamento e comportamento que esses escritores empreenderam em suas vidas. Inconformados com o insustentável estilo de vida americano, fizeram por criticar os padrões morais e a racionalidade da vida pré-estabelecida. Libertaram seus instintos dionisíacos e instigaram as outras pessoas a fazerem o mesmo, causando enorme impacto social, repercutido nas décadas seguintes com os movimentos sociais da juventude.

A ponte que liga a vida e arte desses autores é o Bebop. Para falar de seus temas polêmicos e expressar a intensidade de seus sentimentos copiaram seus ídolos do jazz no que eles transmitiam de rebeldia e espontaneidade e criaram uma nova linguagem, tão livre quanto o novo ritmo dos anos 40. Dessa forma foi possível dar vazão ao fluxo de idéias, delírios e poesia que jorrava incessantemente quando nascia na mente do escritor. Nada de domar as pulsões do instinto pela moral, nem de domar as pulsões da fluidez sonora à regularidade, a não ser pela regularidade do movimento expiratório.

Seguindo os passos de Walt-Whitman, que nos dizeres de Ezra Pound foi o primeiro grande homem a escrever na língua de seu povo, os poetas e prosadores da geração beat atualizaram a literatura americana em sintonia com a música e a fala de seu tempo. Escreveram em versos longos e espraiados, num estilo processional, feito de enumerações e paralelismos para suprir aquela sensação de retorno que o verso tradicional produz com suas sílabas acentuadas simetricamente. O ritmo do Bebop potencializa o caráter ondeante, aberto e vário da fala. Fazendo uso da liberdade da solução moderna, o verso livre, os beats trabalharam a frase como quem quer dar voz e tom justos a uma experiência primordial em contraste com a convenção dominante.

Mas não haveríamos de terminar este artigo sem incluir Gregory Corso, outro beat que teria sido músico de jazz se não tivesse escolhido ser poeta. Corso também viveu e escreveu de forma espontânea, a vida toda na estrada, sempre em algum lugar à beira do limite. Escreveu, no ritmo linear da fala, versos livres como os de Marriage, poema bastante prosaico e narrativo, numa linguagem informal e de tom satírico, visto o tema das convenções matrimoniais que ele ridiculariza. Em Réquiem Espontâneo para o Índio Norte-Americano a espontaneidade, contida até no título, obedece aos impulsos exclamativos. A entoação compõe a música de fundo para as imagens do dilaceramento dos antigos índios pelos selvagens brancos. O andamento rítmico é rápido e preenchido por improvisações de um fluxo ininterrupto cuja linha melódica define um canto exaltado à heróica figura do ancestral indígena. Mais um poema cuja leitura deve ser em voz alta para não se perder as qualidades sensíveis da rica seqüência sonora composta de onomatopéias, palavras indígenas foneticamente exóticas, assonâncias, aliterações, paralelismos, etc. Uma mostra da prosódia bop à maneira de Corso.

Devido à extensão em que já se encontra, esse artigo não poderia prolongar-se mais com transcrições e comentários sobre a poesia de Corso, esta que nos faz ouvir a liberdade cantada no ritmo espontâneo. Deixemos que o próprio Corso encerre a discussão sobre o ‘nascimento da literatura beat no espírito da música’, pela linguagem análoga à improvisação jazzística sincera e verdadeira.

Quando Bird Parker ou Miles Davis improvisam sobre um tema convencional, se entregam a outros sons originais – próprios e não convencionais. Bem, é isso o que eu faço com a poesia – X, Y &Z, chamem-na automática – eu a chamo um fluxo convencional (porque as palavras são convenções) que é intencionalmente desviado e diversificado no sentido de meu próprio som. Certamente, muitos dirão que um poema escrito desta forma não está polido, etc. - e é assim mesmo que os quero, porque os fiz verdadeiramente meus. (MUGGIATI, 1984, p. 79).

A prosódia bop foi a solução estética encontrada para a reprodução do ritmo contínuo do jazz em frases de palavras. Estas, acorrentadas em longos versos, carregam boa parte de seu significado no nível da sensibilidade auditiva, sendo por isso o andamento e entoação gestos vocais de vital importância para a percepção dessa prosódia, de maneira a nos permitir reviver o sentimento contido na forma. A natureza espontânea, performática dessa nova linguagem literária é o indício das origens de uma concepção de arte pós-moderna pela qual o artista busca sua emancipação expressiva reduzindo o que se considera comunicação racional (verbalizações, referências visuais precisas) e compõe formas subjetivas inéditas para expressar emoções primárias sufocadas pelas convenções dominantes.

 

Referências Bibliográficas

BAUDELAIRE, Charles. Sobre a Modernidade. Rio de Janeiro, Paz e Terra. 1996. Coleção Leitura.

BIVA, Antônio. WILLER, Cláudio. FRÓES, Leonardo. MUGGIATI, Roberto. Alma Beat. Ensaios sobre a geração Beat. Porto Alegre: L&PM Editores Ltda

BOSI, Alfredo. O Ser e o Tempo da Poesia. São Paulo, Cultrix, 1977.

BROOKLYN.Howl.<http://www.litkicks.com/BeatPages/page.jsp?what=Howl>

JANSSEN, Mike. Jazz. <http://www.litkicks.com/BeatPages/page.jsp?what=Jazz>

GINSBERG, Allen. Uivo e outros poemas. Tradução de Cláudio Willer. Porto Alegre: L&PM. 1999.

OSBORNE, Harold. Estética e Teoria da Arte. São Paulo, Cultrix. S/D. 3ª ed.

 

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Última atualização: 03 dezembro, 2004.