Ano I - Nº 01 - Maio de 2001 - Bimensal - Maringá - PR - Brasil - ISSN 1519.6178

 

Entrevista

O sonho só começou

 

A incansável Zilda Arns, fundadora da pastoral que atende 1,5 milhão de crianças e concorre ao Nobel da Paz, fala à Revista ACIM*

 

Por Tereza Parizotto *

 

Nascida há 66 anos em Forquilhinha, em Santa Catarina, a médica pediatra e sanitarista Zilda Arns Neumann ousou sonhar por um mundo melhor. Deste sonho, nasceu, em 1983, o trabalho da Pastoral da Criança, uma organização não-governamental vinculada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Já são 1,5 milhão de crianças atendidas pela pastoral, que atua em 3.277 dos 5.507 municípios brasileiros. Ao todo são 32 mil comunidades espalhadas por todos os Estados e um exército de 145 mil voluntários. Destes mais de 90% são mulheres, em sua maioria vivendo nas próprias comunidades acompanhadas pela Pastoral.

Todo mês, os voluntários acompanham o desenvolvimento de cada criança, orientam as mães e coordenam a produção da multimistura, um complemento alimentar que muitos chamam de “farinha milagrosa”. Associada a outras ações, como campanha de aleitamento materno, a fórmula vem alcançando resultados surpreendentes.

Agora o sonho de Zilda pode ultrapassar fronteiras. O governo brasileiro indicou a Pastoral para o prestigiado Prêmio Nobel da Paz. A comissão Nobel divulgará o ganhador em outubro e a cerimônia de entrega do prêmio acontece em dezembro, na Noruega.

Para Zilda, Coordenadora Nacional da Pastoral da Criança a indicação já é uma vitória. “É um grande estímulo a todos os brasileiros que trabalham como voluntários e que estão transformando o nosso país”.

 

– Como e quando nasceu a Pastoral da Criança?

Zilda Arns – Esta história começou em 1982, numa reunião sobre a paz mundial, da ONU (Organização das Nações Unidas), em Genebra. O então diretor executivo do Unicef (Fundo das Nações Unidas para Infância e Adolescência), James Grant, convenceu meu irmão, Dom Paulo Evaristo Arns, na época cardeal de São Paulo, de que a Igreja poderia ajudar a salvar a vida de muitas crianças, que morriam de doenças de fácil prevenção, como a desidratação causada pela diarréia. De volta ao Brasil, Dom Paulo, me perguntou seu aceitaria desenvolver um projeto deste nível. A idéia veio ao encontro do que eu pretendia. Como médica pediatra e sanitarista, sentia falta de um trabalho de educação nas comunidades, junto às famílias, especialmente, às mães. A proposta foi apresentada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em 1983. A CNBB indicou Dom Geraldo Majella Agnelo, que na época era arcebispo de Londrina, para acompanhar o trabalho. Decidimos testar o modelo em sua diocese.

 

– Exatamente onde se concentrou o “projeto piloto”?

ZA – Verifiquei na Secretaria de Saúde do Paraná que Florestópolis, município a 100 quilômetros de Londrina, tinha os maiores índices de mortalidade infantil no Estado: 127 óbitos por mil nascidos vivos. A cidade tinha cerca de 15 mil habitantes, a maioria das famílias era de bóias-frias, que ora trabalhavam nos canaviais, ora nas colheitas de café ou de algodão e ora não tinham serviço. Inicialmente detectamos 20 pessoas comprometidas a ajudar as famílias. Eles se encarregaram de fazer o mapeamento das famílias com gestantes e crianças menores de seis anos e identificar lideranças comunitárias que gostariam de trabalhar como voluntárias. Eu havia escrito uma pequena apostila sobre cada um dos cinco temas que seriam trabalhados: saúde da gestante, aleitamento materno, vigilância nutricional, reidratação oral e vacinação. Com base neste trabalho e com a ajuda de técnicos, formamos e treinamos cerca de 76 líderes comunitários.

 

– Quanto tempo foi necessário para se sentir os primeiros resultados?

ZA – Mensalmente eu voltava ao município e me reunia com os líderes para saber dos resultados. No quinto mês, perguntei aos líderes se eles achavam que Florestópolis  havia mudado. Todos disseram: “o que mais mudou fomos nós mesmos. Antes, nós víamos uma criança ficar doente ou morrer e dizíamos que a mãe era relaxada. Hoje, ajudamos a mãe, encaminhamos para tratamento e fazemos tudo como se fosse nosso próprio filho”.

 

– De que forma o projeto se expandiu para o resto do País?

ZA – Dom Luciano Mendes de Almeida, que na época era secretário geral da CNBB, pediu que o trabalho fosse apresentado na Assembléia dos Bispos, em 1984. O entusiasmo foi geral, principalmente por parte dos bispos do Nordeste. No final de 84 organizei, com a equipe de capacitação, um seminário em Londrina, com estágio em Florestópolis, para a diocese do Nordeste. A expansão aconteceu como no milagre da multiplicação dos cinco pães e dois peixes. Depois de abençoados por Jesus, esses alimentos foram repartidos para cinco mil pessoas. Da mesma forma, cada líder capacitada, multiplicava seu saber por dez ou vinte famílias. A mística cristã era o motor que impulsionava o trabalho.

 

– Quais as maiores dificuldades enfrentadas na época?

ZA – Creio que recursos financeiros. Ao final de três anos, foram visitadas as dioceses bem sucedidas e aquelas que não conseguiram levar em frente o trabalho. Verificamos que entre outras necessidades, faltavam recursos para treinamento de novas lideranças e maior disponibilidade de tempo dos coordenadores. Fui então, junto com Dom Geraldo e a Dra. Sofia Sarmiento, falar com o presidente do INAMPS, Ézio Cordeiro. Apresentei o projeto a ele e pedi apoio financeiro para continuar nosso trabalho de orientação às famílias para a prevenção de doenças como a diarréia, desnutrição, sarampo, poliomielite e baixo peso ao nascer. Ele enviou técnicos para visitar as comunidades e avaliar o trabalho. A avaliação foi muito favorável e com isso assinamos um convênio, que se somou ao apoio financeiro do Unicef. Nesse ano de 1987 tínhamos, então, o recurso para elaborar o importante Guia do Líder, contendo as cinco ações básicas de saúde. Mais tarde outros manuais foram sendo elaborados, como o de Alimentação Alternativa, que animou milhares de comunidades com suas receitas de alimentos regionais e de alto valor nutritivo. É a chamada multimistura que tanto tem contribuído para diminuir os índices de desnutrição entre as famílias. Com o recurso do convênio também foi possível enviar às dioceses, apoio financeiro para treinamentos, compra de balanças para pesagem e outras necessidades.

 

– Qual o retrato da Pastoral da Criança hoje?

ZA – Graças ao trabalho solidário de mais de 145 mil voluntários, a Pastoral da Criança conseguiu reduzir a mortalidade infantil a menos da metade da média nacional, entre as crianças por ela atendida. Segundo o Unicef, em 1999 esta taxa no Brasil foi de 34,6 mortes para cada mil crianças nascidas vivas. Entre as crianças atendidas pela Pastoral esta taxa é inferior a 17. A desnutrição entre as crianças da Pastoral também foi reduzida a menos da metade. É importante considerar que a Pastoral atua exclusivamente em bolsões de pobreza e miséria, onde tanto a mortalidade, quanto à desnutrição infantil estão acima da média nacional.

 

– Os resultados são mesmo surpreendentes e tudo isto com um custo de R$ 0,86 mensais por criança. O próprio ministro José Serra disse que este programa, se fosse executado pelo ministério, custaria 20 vezes mais. Como isto é possível?

ZA - Só para começar há 145 mil pessoas trabalhando de graça. E depois, sempre trabalhamos com ações simples, muito baratas e capazes de serem realizadas em larga escala, se preciso até por pessoas analfabetas ou semi-analfabetas. Nós acompanhamos as gestantes, pesamos os bebês, ensinamos a fazer soro caseiro, passamos noções de higiene. Simples e eficaz.

 

– De que forma a indicação para o Prêmio Nobel da Paz foi importante para a Pastoral?
ZA –
É um importante reconhecimento pelo trabalho desenvolvido pelos voluntários em mais de 32 mil comunidades em todo o Brasil. Mostra a importância desta ação simples, mas que criou uma verdadeira rede de solidariedade. Hoje são mais de 1,5 milhão de crianças, com menos de seis anos de idade, sendo acompanhadas. Ao mesmo tempo, a indicação aumentou o conhecimento da sociedade sobre a ação da Pastoral da Criança. Isto amplia o número de interessados em colaborar como voluntários ou como parceiros. Através desta maior exposição, também aumentam as chances de que as ações sejam conhecidas e aplicadas em outros países.

 

– Que tipo de trabalho um voluntário pode fazer?

ZA – Depende de sua disponibilidade e aptidões. Como existem diversos programas, os voluntários podem se distribuir por áreas. Assim, temos jornalistas e publicitários na Rede de Comunicadores Solidários à Criança; professores nos cursos de alfabetização de jovens e adultos; dentistas na área de saúde bucal, e outros profissionais que oferecem seu trabalho. Também temos pessoas que ajudam cuidando das crianças no dia da pesagem, preparando cartazes para as reuniões ou tocando música durante os encontros. Todos são bem-vindos e podem colaborar.

* Editora da Revista ACIM e jornalista da Assessoria de Comunicação da Universidade Estadual de Maringá.


 

* Revista ACIM, nº 403, abril de 2001 – Publicação mensal da Associação Comercial e Industrial de Maringá.