Ano
I - Nº 04 - Maio de 2002 - Quadrimestral - Maringá - PR - Brasil - ISSN
1519.6178
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O conceito sartreano de liberdade: implicações
éticas
Márcio
Danelon
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RESUMO Partindo do pressuposto
de que a liberdade constitui-se num dos principais problemas da nossa
civilização, pois diz respeito aos limites da vida coletiva, levantamos
como hipótese a possibilidade de tomarmos como parâmetro para a reflexão
sobre a liberdade o pensamento do filósofo existencialista Jean-Paul
Sartre. Dessa forma, o presente
artigo tem por objetivo principal remontar ao conceito sartreano de
liberdade e levantar, com fundamento na letra sartreana, os problemas
éticos oriundos desse conceito.. Para tanto, efetivaremos um estudo
sobre a obra de Sartre O Ser e o Nada, texto no qual, primeiramente,
o filósofo francês desenvolveu seu conceito de liberdade. Palavras-Chaves: liberdade – escolhas – comportamento – alteridade - individualidade |
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O presente artigo tem por objetivo
principal estudar o conceito sartreano de Liberdade desenvolvido pelo
filósofo francês em O Ser e
o Nada. Através deste obra, Sartre deu
rica contribuição à filosofia existencialista que estava se
desenvolvendo na Europa, a tal ponto que, na segunda metade do século
XX, Sartre foi considerado o principal teórico do existencialismo
francês. (Conforme FORTES, p. 14. In: SARTRE, 1986). A filosofia existencialista
de Sartre, presente em seus textos filosóficos e em seus romances
e peças de teatro, exerceu profunda influência nas gerações da década
de 40, 50 e 60, a tal ponto que se transformou em ícone inspirador
do contestador movimento estudantil da década de 60. Transcendendo o cenário europeu,
o pensamento de Sartre exerceu, igualmente, influência no Brasil.
O conhecido movimento artístico "Tropicalismo" ocorrido
no Brasil, principalmente através da música, teve influência decisiva
do existencialismo sartreano e suas idéias de engajamento político,
liberdade etc. (Conforme ALMEIDA, 1998, p. 42). Nesse mesmo contexto,
diversas peças de teatro de autoria sartreana foram montadas e encenadas
no Brasil. (MOUTINHO, 1995,
p. 80). Se, por um lado, a literatura sartreana
teve grande destaque nos meios artísticos brasileiros, a mesma intensidade
de massificação não ocorreu com sua filosofia. Esta ficou mais conhecida
pelos chavões espalhados aos quatro cantos do que pelo rigorismo da
pesquisa, haja vista as principais obras de filosofia de Sartre, O Ser e o Nada e Crítica da Razão Dialética não são muito conhecidas no Brasil. O texto
O Ser e o Nada, publicado
em 1943 na França, teve no Brasil sua tradução e publicação somente
em 1997, e a obra Crítica da
Razão Dialética ainda não foi traduzida e editada no Brasil. Nem
a famosa visita de Sartre ao Brasil - UNESP Araraquara/1960 - serviu
de motivo para a democratização da filosofia sartreana. Essa demora
injustificada na tradução do pensamento de Sartre prejudicou consideravelmente
a formação de pesquisadores e divulgadores da filosofia sartreana.
Dessa forma, até meados da década de 90, o estudo da filosofia de
Sartre ficou mais circunscrita ao pós-graduação do que a graduação.
Assim, se, nesse sentido, a filosofia de Sartre continua a exercer
grande fascínio no jovem estudante de filosofia, tal fascínio é, infelizmente,
satisfeito mais pelo "ouvi dizer", pelos chavões e comentadores
da obra sartreana do que pelo rigoroso debruçar-se sobre os textos
filosóficos de Sartre. Pensar a problemática da liberdade
implica em refletir sobre a própria condição humana de um ser que
vive em comunidade, pois transpassa a própria fundamentação do coletivo,
uma vez que a coletividade implica em homens compartilhando do mesmo
espaço, das mesmas crenças, de afazeres, e, talvez, dos mesmos objetivos
de vida. A liberdade está no cerne da vida
coletiva na medida em que viver no público significa conviver com
o outro, ou seja, em toda a vida social é subjacente à relação entre
o EU e o OUTRO. Ora, é exatamente nesta relação EU-OUTRO, fundante
e fundamental da vida social, que encontramos, inerente a esta relação,
o problema da liberdade. Assim, nas relações interpessoais, podemos
questionar quais os limites da minha liberdade sobre o outro e a do
outro sobre a minha? Quais os valores subjacentes à ação livre são
necessários para a convivência com o outro? O modo de vida do outro
impõe limites à minha liberdade, e até que ponto esta limitação constitui-se
num Bem para mim? E, se ao afirmar livremente minha forma de viver,
e em decorrência desfrutar de momentos felizes, esta forma acarretar
um dano ao outro? Este dano é um Bem para mim, pois afirma a minha
felicidade, mas é um Mal para o outro, pois lhe trás dores. Como,
então, conviver com esta situação? Até que ponto ser livre para agir
não implica no fazer do outro um meio
para a minha liberdade? O sentimento de ódio, e suas decorrências
como a vingança, a luta, o assassinato, não são inerentes ao relacionamento
EU-OUTRO, na medida em que o OUTRO impõe limites à minha liberdade,
a minha felicidade e ao meu prazer, e por isso, odiamos o OUTRO e
desejamos exterminá-lo? Estaria certa a afirmação sartreana de que
“O inferno são os outros” na peça teatral Hui clos (Entre Quatro Paredes) Pensar a questão da liberdade no
horizonte dessas interrogações, significa refletir sobre a própria
situação conflitiva entre os homens na sociedade. Em outras palavras,
se vivemos num mundo permeado de violência, onde esposos e pais espancam
suas mulheres e filhos, homens estupram mulheres e crianças, psicopatas
fazem da morte a realização da vida, sádicos gozam ao fazer o outro
sofrer, tais situações encontram-se no cerne do problema da liberdade,
pois, até que ponto o homem é livre para atuar sobre o outro?
Quais os limites morais e religiosos, à liberdade dos desejos
humanos? Saindo do âmbito social, a problemática
da liberdade circunscreve-se também no topos humano, ou seja, na interioridade e subjetividade do homem.
Se não, vejamos. Na relação EU-OUTRO, o EU possui, em sua consciência,
valores, desejos, objetivos de vida e ideais em relação ao OUTRO.
Por sua vez, o OUTRO também alimenta em sua consciência valores, desejos
e objetivos em relação ao EU. Neste contexto de con-vivência, freqüentemente
os desejos e objetivos do EU não estão alinhados com os desejos e
objetivos do OUTRO, assim, toda a relação está imbuída de conflitos.
Por outro lado, a felicidade do
EU implica na realização dos seus desejos e objetivos que, por sua
vez, estão em desacordo com os desejos e objetivos do OUTRO, assim,
dois caminhos restam ao EU: afirmar a sua liberdade e ser feliz, causando
ao OUTRO um dano (físico, moral ou psíquico) e fazendo dele um simples
meio e objeto a sua felicidade,
ou negar a sua liberdade em respeito ao OUTRO e, com isso, abrir mão
de sua felicidade, não realizando seus desejos e objetivos. Dessa
forma, a questão da liberdade não implicaria na felicidade e bem-estar
de um e, paralela a esta felicidade, num dano ao outro? Ou então,
a convivência entre os homens não implica numa mútua negação da liberdade
e, paralela a esta negação, a mútua infelicidade humana? Em outras
palavras, conviver em sociedade trás em seu bojo a anulação da liberdade
e dos desejos e, com isso, a infelicidade humana? O mal-estar em nossa
civilização não estaria no cerne da negação da liberdade humana? Ou
na afirmação da liberdade? Em suma, parece-nos que temos uma
aporia na questão da liberdade, pois afirmar a liberdade humana implica
na realização de um, mas,
também, na infelicidade do outro, pois os valores, desejos e objetivos
são discordantes. Por outro lado, negar a liberdade humana implica
na mútua insatisfação e infelicidade, pois ambos negam seus desejos,
valores e objetivos. Parece-nos, também, que uma terceira via, em
que o EU dispensa alguns dos desejos para se entender com o OUTRO,
e o OUTRO fazendo também o mesmo para sustentar a relação, está fadada
ao fracasso, pois não existe ser humano meio feliz ou meio realizado.
Assim, essa terceira via implica
no naufrágio de ambos no oceano das frustrações e desejos reprimidos. Tendo como cenário estas e outras
inúmeras interrogações, fica levemente mais claro que a liberdade
constitui-se num grande problema para se refletir filosoficamente.
É neste cenário também que este artigo convida, para o debate em torno
da liberdade, o filósofo francês Jean-Paul Sartre. Como é sabido,
Sartre foi um dos teóricos mais respeitados do existencialismo e um
dos pensadores mais engajados nos movimentos sociais dos anos 60 e
70. Assim, pela sua teoria filosófica, pela sua militância política
ou pelas suas peças teatrais e romances, Sartre realizou, ao longo
de sua obra, reflexões em torno da liberdade, contribuiu decisivamente
para a melhor explanação desse conceito. No campo da filosofia, foi
em sua obra monumental “O Ser e o Nada” que desenvolveu, num primeiro momento, a temática da liberdade. Sobre
a liberdade, Sartre a retomaria em outras obras menores e na outra
grande obra, que marca a segunda fase do filósofo francês, a Crítica da Razão Dialética. Vale aqui levantar algumas considerações
em torno do conceito sartreano de liberdade. A liberdade é, em Sartre,
a liberdade do sujeito. A noção de sujeito abarcada na filosofia sartreana
é de fundamental importância para seu conceito de liberdade, uma vez
que a liberdade somente é liberdade de um sujeito cuja consciência
é autônoma para escolher, ou seja, é intencional. Dessa forma, o sujeito
livre sartreano é o sujeito moderno elaborado na esteira da filosofia
cartesiana, na medida em que Descartes promulgou a liberdade do pensar
e da consciência do sujeito. Nessa perspectiva declara Sartre no Existencialismo
é um Humanismo:
A liberdade aparece, então, como
a condição fundante do sujeito:
Ou seja, o homem é homem pela sua
condição de ser livre. O homem faz-se afirmando suas escolhas livres,
assim, o homem é produto de sua liberdade, pois é na ação livre que
o homem escolhe seu ser, que se constrói enquanto sujeito. Por outro
lado, no mundo da natureza não há liberdade, mas o determinismo dos
instintos; assim, falar no humano, desde uma ótica sartreana, é falar
num ser que quotidianamente escolhe as ações que faz. Dessa forma,
toda ação, escolha, objetivo ou condição de vida são produtos da liberdade
humana. Assim, a liberdade deixa de ser uma conquista humana, para,
segundo Sartre, ser uma condição da existência humana. Cito:
Nessa perspectiva, a consciência
do homem, ou, na terminologia sartreana, o Para-Si, não é algo prontamente
determinado, mas, ao contrário, o EU ou a consciência faz-se ao lançar-se
no futuro, na concretização das escolhas no futuro, dessa forma, a
consciência é preenchida pela liberdade. Em outras palavras, a liberdade
é a textura que fundamenta o vazio da consciência, ou seja, o homem
é aquilo que sua liberdade formar:
Para Sartre, o exercício da liberdade
nas ações de escolher o que fazer é sempre intencional, é sempre movido
por uma vontade consciente dos princípios norteadores dessa escolha
e dos fins e conseqüências dessa ação. Na ação livre, o homem é consciente
dos princípios de sua ação, porém, e isto é fundamental na obra sartreana,
não existem princípios prontos que sirvam de guia para a escolha humana,
em outras palavras, não existem valores morais nos quais se possa
fundar a ação humana. Cito:
Nesse contexto de ausência de princípios
norteadores da ação, é consagrada a passagem do texto O Existencialismo é um Humanismo, no qual
um jovem pergunta a Sartre se deve ir para a guerra ou cuidar da mãe.
E a resposta do filósofo foi de que não existe uma regra, um valor,
um modelo, mesmo uma resposta correta ou um conselho que seja exterior
a ele e que sirva de parâmetro para a ação. Ou seja, é de total responsabilidade
do jovem a escolha que fizer, pois ele é livre para erigir seus valores.
Neste sentido, sendo o homem livre para agir e não existindo valores
universais que sirvam de referenciais para nossa vida, cabe tão somente
ao homem construir os valores norteadores de sua ação, ou seja, é
o ser humano, individualmente, e em suas ações concretas, que deve
escolher os valores para sua vida. Assim, não existem valores éticos
universais para a vida humana como é o caso, por exemplo, no cristianismo
ou no kantismo, mas somente a construção real e individual dos valores.
Dessa forma, sendo o fim da conduta
humana o mais fundamental, cabe aqui uma interrogação, e com elas
todos os problemas subjacentes: em Sartre, os fins justificam os meios?
Para atingir um fim/objetivo, é lícito usar de quaisquer meios? Para
atingir o prazer, por exemplo, é correto utilizar de meios como a
violência sobre o outro? Como afirmamos, as ações livres
dos homens visam a um objetivo, porém este objetivo, numa perspectiva
sartreana, está ameaçado pelo Outro:
Na vida social, a convivência EU-OUTRO
constitui-se numa luta pela supremacia da liberdade:
O Outro é, para a minha ação livre,
um mal, pois a liberdade do Outro limita a minha e, mais ainda, é
um mal do qual não posso me
libertar, pois o outro faz parte do meu Eu, da minha consciência e
da minha ação Cito:
Assim, para realizar meus desejos
e minha liberdade, devo fazer do outro um meio, um simples objeto
da minha ação livre:
Por outro lado, o Outro também
faz de mim seu objeto. Dessa forma, na liberdade o homem perde sua
humanidade tornando-se uma coisa do Outro e fazendo do Outro, igualmente,
uma coisa:
Não obstante esta pequena síntese
do conceito sartreano de liberdade, retomemos, então alguns pontos: a liberdade é a condição da existência
humana, ou seja, o homem é incondicionalmente livre. Assim, podemos
escolher livremente o que fazer. O que pode acontecer a esta liberdade
é limitá-la pelo medo, ou seja, abdico de certas escolhas pelo medo
de repressão religiosa, moral ou jurídica, mas a liberdade está presente
e, sobrepondo-se ao medo, posso agir da forma como desejar; Nas ações livres do homem não existem
valores morais de regência, ou seja, é em cada situação histórica
e concreta que o sujeito da ação deverá escolher seus valores e responder
por eles; Nas ações livres dos homens,
o outro aparece como um Mal por impor limites à minha ação
e um Bem por constituir-se num meio para meus fins. Dessa forma, afirmar
a liberdade implica na sobreposição ao outro, transformando-o num
objeto da minha liberdade. Dadas algumas das premissas do
conceito sartreano de liberdade, podemos levantar algumas questões.
Não estaria, exatamente, neste ideal de liberdade absoluta o cerne
de certas violências em nossa sociedade? Não existe violência, entre
outros motivos e para além das questões sociológicas, pelo fato de
o homem ser incondicionalmente livre para agir, tendo que, talvez, responder pelas suas escolhas? Não existe violência pelo fato de o homem relativizar a sua existência
aos valores, eliminando os valores universais como o respeito ao outro,
o amor a vida? Não existe
violência pelo fato de, quotidianamente, fazermos do outro um meio
para o enriquecimento, por exemplo?
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