Ano I - Nº 04 - Maio de 2002 - Quadrimestral - Maringá - PR - Brasil - ISSN 1519.6178

A Sociedade do Conhecimento no Conhecimento dos Educadores

Lizia Helena Nagel*

Convidada para integrar esta mesa redonda sobre a Sociedade do Conhecimento, levantando e examinando as discussões sobre o tema, principalmente, comparando as questões apontadas nas áreas que demandam com persistência essa problemática, como as Ciências da Computação, a Administração, a  Educação [1] , um dado importante precisa ser lembrado, posto ser comum aos mais diversificados e/ou fenomênicos interesses.

Sociedade do Conhecimento é a forma brasileira de traduzir Sociedade da Informação ou Super Estrada da Informação, expressões conceitualmente mais realistas, menos pretenciosas em sua compreensão e mais precisas em sua extensão, cunhadas nos anos 90, pela Comunidade Econômica Européia e os Estados Unidos, com o objetivo de planejar ou concentrar esforços na construção de uma infra-estrutura global da informação [2] .

Isso significa que a “Sociedade do Conhecimento ” é, antes de tudo, a expressão empresarial dos investimentos racionalmente programados para o mundo globalizado, relativos à informática, telecomunicação, redes de comunicação digitais (“Banda Larga”) sistemas de comunicação móveis, que incluem, de modo mais imediato, a) o ensino à distância, b) os serviços de telemática para pequenas e médias empresas, c) o tráfego computadorizado, d) a gerência de tráfego aéreo, e) a licitação e compra eletrônica, f) as redes de administração pública, g) o controle de infovias urbanas ligadas à prestação de serviços das prefeituras; h) o uso da telemedicina, entre outros tantos.

Esse amplo programa de investimentos, feito pela União Européia e Estados Unidos para garantir uma infra-estrutura globalizada da informação, desdobra-se em ações capitaneadas pelo  Estado Nacional”, por “Empresas Locais” e pela “Rede de Pesquisa de cada País,  [no nosso caso, pelo MEC/ CNPq, CAPES]. No entanto, não se pode esquecer que é do setor privado a responsabilidade primária pelo projeto e pela implementação, não só dessa infra-estrutura de informação pretendida, como pela regulamentação em qualquer nível de parceria e/ou de interconexões (redes locais, internacionais, transnacionais).

Cabe lembrar, também, que as regulamentações que estruturam ou organizam essas redes de informação definem tanto a legitimidade de operações integradas entre várias redes como prescrevem o conteúdo e incluem o sigilo das comunicações, a propriedade intelectual, a exploração comercial de produtos virtuais, de banco de dados. Regras que, essencialmente operacionalizadas pelo privado, garantem, de forma cada vez mais ampla e sofisticada, o poder dos oligopólios já existentes [3] , os quais, através de contínuas fusões, tornam-se mega conglomerados da informação, meta definitiva da “sociedade do conhecimento” (tão decantada por tantos educadores!).

Ora, esse processo de desenvolvimento da sociedade da informação se deve, então, aos oligopólios ou aos mega conglomerados que se apropriam, organizam, comandam o desenvolvimento da infra estrutura da informação, e, conseqüentemente, têm poderes ilimitados para determinar a informação que pode ser (re)passada à sociedade. Esses organismos, no entanto, mesmo quando reconhecidos como articulados por um poder político e econômico definido, não estão sendo analisados, pelos educadores, em sua natureza privatista. Quando os educadores listam e apregoam as vantagens da sociedade do conhecimento, principalmente a futura e esperada  democratização da informação”, esquecem-se de que o conhecimento a ser socializado dependerá  dos interesses privados dos organismos que sustentam essa mesma infra-estrutura.

O “conhecimento a ser democratizado” ou repassado  - quer em sua estrutura, organização ou objetivos - somente poderá expressar, sob formas mais ou menos sutis, a natureza privada que lhe dá, dinamicamente, concretude informacional. Interesses múltiplos, divergentes, contraditórios ou contrários não podem ser repassados aos consumidores em função da própria natureza particular da entidade privada da qual emanam as informações. Com total potencial de independência quanto a demandas públicas e/ou culturais, com capacidade de emancipar-se de qualquer paradigma ou proposta científica que não seja definida pelo lucro, ainda assim, os mega conglomerados da informação, em plena desenvoltura, não são analisados como entraves eminentes e reais para a “inclusão dos excluídos” (quer países, quer indivíduos).

 

O educador: na implantação da sociedade do (des) conhecimento 

Nesse ponto, iniciam-se as interrogações sobre quais motivos levam os intelectuais da atualidade, os educadores,  a advogar a favor da sociedade do conhecimento como uma organização superior de práticas políticas e pedagógicas socializadoras do saber, quando, na verdade, a construção dessa sociedade da informação é meta do capitalismo em seus desdobramentos mais sofisticados. Acredita-se que o primeiro passo para responder a esse questionamento consiste em esclarecer, para depois colocar em xeque, a expressão Sociedade do Conhecimento, substitutiva tanto da expressão européia Sociedade da Informação como da americana Super Estrada da Informação. Para isso, acredita-se que o pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), Germano de Souza KIENBAUM, em seu texto A construção da sociedade do conhecimento brasileira, possa auxiliar.

A escolha da designação Sociedade do Conhecimento Brasileira tem raízes, portanto, na percepção das imensas desigualdades  sociais e regionais existentes no nosso País, que clamam urgentemente por políticas que sejam capazes de reverter esta situação, e de colocar o Homem no centro de todas as realizações. Assim ela não deve ser vista como uma veleidade acadêmica ou filosófica, mas antes como um balizamento para a seleção de prioridades de investimentos na implementação das linhas de ação sugeridas, privilegiando aquelas aplicações setoriais voltadas para as questões sociais (saúde, educação, emprego, lazer), destacando-se o apoio a uma participação maior e mais integrada  (em oposição à exclusão) dos diferentes segmentos da sociedade, bem como a redução das desigualdades sociais e regionais em todo o Pais. (Kienbaum, 1998, p. 155)

A razão mais próxima da “diferença semântica” de termos utilizados por países ricos e países pobres transparece nesse discurso de KIENBAUM. Nos países pobres, as desigualdades sociais bloqueariam o avanço natural dessa infra-estrutura, ou melhor, poderiam reduzir o apoio político para implementar medidas privatistas. A expansão da infra-estrutura da informação sob as coordenadas exclusivas do capital poderia entrar em impasse político e argumentos permeados de frases altissonantes sobre a defesa da igualdade de direitos a todos os cidadãos precisariam, e/ou precisam, ser constantemente reforçados. Para dirimir movimentos contrários à expansão da riqueza associada a ampliação dos níveis de pobreza, nada melhor do que afirmar, sob os mais variados estilos, a fé na democratização e na cidadania adquirida pela via educacional.

Sem essa retórica de amor ao pobre, de desgosto pelas injustiças, como sustentar o direito de alguns de apropriar-se dos meios de comunicação e, através deles, da própria comunicação ou do “conhecimento”, sem favorecer contestações? Cabe pois, à qualquer defensor da modernização da sociedade capitalista, conciliar o palavreado frio do mercado valorizado  com uma linguagem emocionada a favor dos excluídos.

Mas, mesmo quando a sofística torna-se a forma dominante dos discursos modernos, apesar das numerosas manifestações a favor da igualdade, a vida em si mesma é mais esclarecedora. Não se acredita no MEC, por exemplo, como canalizador de recursos para o ensino a distância, fora da esfera do setor público, por “compromissos com os desfavorecidos”. Tão pouco se acredita em uma “política centrada no homem” como instigadora determinante de compras de equipamentos de informática (hardware e software) para o sistema educacional. Não se confere veracidade à idéia de que de “medidas saneadoras das diferenças sociais” tenha partido a ordem para a aquisição de milhares de computadores para as escolas, onde não se têm professores habilitados para a sua manipulação, nem se encontram alunos em condições de dispensar a Bolsa Escola para garantir sua freqüência na instituição. Em síntese, em período de sucateamento do ensino público, não se tem como verdade, ou como medida ligada à luta pela dignidade humana, a informatização do saber por redes de comunicação transnacionais ou por blocos comerciais supranacionais.

Esse discurso da educação direcionado para a era da sociedade do conhecimento também pode ser analisado por outro prisma. Por um exercício de lógica, considera-se impossível a superação da desigualdade via conhecimento ensinado nas escolas, principalmente, quando, ao se dispor, sob nova forma didática, os alunos da rede pública ou privada, diante do poder instrucional da telemática (informática associada à telecomunicação e aos meios de comunicação), ao mesmo tempo, assegura- se, por adesão às regras do Banco Mundial, uma legislação que garante a aprovação compulsória dos aprendizes.

Apagando essas contradições concretas, substituindo-as, no discurso, por desejos de cidadania universalizada, por esperanças de acesso generalizado à informação, por promessas de democratização de oportunidades, ou mesmo, pela crença na habilitação dos trabalhadores para o mercado, é que a defesa linear da sociedade do conhecimento permanece sem críticas nos devaneios acadêmicos. Na verdade, na justificação inconteste da “sociedade do conhecimento”, apenas se locomovem fantasias humanitárias que se expressam na absoluta desvinculação dos sonhos docentes com a realidade em curso, tal como acontece quando o próprio professor apóia o seu substitutivo, o “Amigo da Escola” (projeto expressivo dos interesses interligados da Globo e da CNN). Salva-se, assim, com um vigor próprio à ingenuidade, ou ao oportunismo, a maioria dos projetos de implantação da sociedade da informação, ou do conhecimento, como preferem os educadores brasileiros.  

Nessa trajetória de ingenuidade ou de oportunismo, diversas e fluentes formas de organização do discurso e/ou de novos argumentos para garantir a implantação (mais rápida) da sociedade do conhecimento, nos países pobres, surgem. Como um instrumento de persuasão, por exemplo, tem se afirmado que, pelo fato da história não retroagir, cabe aos educadores a mais rápida adequação da educação tradicional aos cânones da telemática, sob pena de os mesmos serem atropelados pela insensatez de seu próprio reacionarismo. Sob outro ângulo, têm-se multiplicado argumentos a favor dessa tendência comercial de integração de tecnologias diversas, dando por garantia a fé na pedagogia como redentora da humanidade.

Independente de quais sejam os ângulos pelos quais é abordada a defesa da sociedade do conhecimento em países pobres, duas questões tornam-se cada vez mais claras e presentes nos desdobramentos dos discursos neoliberais: a primeira, ligada ao louvor ao sujeito que aprende por si mesmo e a segunda, ligada ao conteúdo programático que esse sujeito deveria aprender e que nunca é totalmente explicitado. Em princípio, na voz dos educadores, o conhecimento indispensável a ser ministrado pelo ensino, ou incorporado pela aprendizagem modernizadora sempre aparece de modo difuso, sob uma padronização genérica [o que não ocorre nas áreas técnicas que descrevem e operacionalizam objetivos relativos ao saber de interesse dos engenheiros, dos administradores ou gerentes, dos técnicos em computação]. Como exemplo, trecho de um texto de Pedro DEMMO, um ícone da área educacional:

Uma das marcas mais profundas da atual sociedade é a de ser “sociedade do conhecimento”. (...) o combate à pobreza e à exclusão precisa levar em consideração o desafio do conhecimento. (...) a sociedade do conhecimento confia mais na educação, porque está mais próxima da cidadania emancipatória, tendo no conhecimento  seu instrumento principal. (...) Aos educadores compete cuidar que o conhecimento, além de não servir apenas ao mercado, se curve aos objetivos da educação, tendo em vista a necessidade de combater, mais do que a carência material, a pobreza política ou a ignorância historicamente produzida e mantida. Política social do conhecimento, se bem conduzida, pretende colocar o pobre como artífice central de seu destino, com base na aprendizagem reconstrutiva política. (DEMO, 2000, p. 5)

Sem tocar nas relações sociais geradoras da miséria crescente no mundo, em que  80% da população consome apenas 20% da riqueza social, mesmo afirmando o mercado como fator excludente da maioria da população dos bens ligados à habitação, saúde, educação e lazer, defende-se, no seio da sociedade de consumo, no vigor da indústria cultural, no interior da moda que proclama a morte dos paradigmas, a possibilidade de o indivíduo ser seu próprio artífice, desde que instrumentalizado pelo “saber da escola”. Nesse ponto, retoma-se a questão fundamental – o que é o conhecimento -  quase sempre obliterada pelos argumentos desviantes relacionados com a democratização, exigência intestina à qualquer sociedade que se sinta culpada pelos pobres que produz. Afinal, o que os educadores entendem por conhecimento ou por saber? O que significa conhecer?

Rubem ALVES, educador e psicanalista, ferrenho defensor da dignidade do homem, propõe seja o  ato de conhecer fundamentalmente diverso do ato de informar-se. Somente o ato de conhecer poderia expressar um legítimo ato educacional. De fato, o simples ato de informar-se não viabiliza, por si só, qualquer competência reflexiva para perceber o transitório, examinar a multiplicidade de relações, acompanhar as conexões que podem elucidar a intimidade do universal com o particular, próprias do ato de conhecer. Conhecer implica em pensar e pensar, como diz ALVES, “é dançar com o pensamento, apoiando os pés no texto lido”.

ALVES, além de lembrar a necessidade de estabelecer diferenças entre informação e conhecimento, investe contra aquilo que vem sendo oferecido como “informação relevante”, selecionada, privilegiada ou repassada, com elevada  freqüência, aos homens da sociedade do conhecimento. Censurando o lixo produzido pelos meios de comunicação, apropriando-se das idéias de SHOPENHAUER, ALVES em seu artigo A leitura dos jornais nos torna estúpidos?, diz:

No que se refere a nossas leituras, a arte de não ler é sumamente importante. Essa arte consiste em nem folhear o que ocupa o grande público. Para ler o bom, uma condição é não ler o ruim. (...) Muitos eruditos leram até ficar estúpidos. (ALVES, 2001, p. 03)  (Grifos nossos).

Condenando a imprensa, esse educador possibilita que se pergunte não só sobre o amesquinhamento do saber contemporâneo como sobre o tipo de conhecimento repassado nas escolas, principalmente a partir da década de 90, sob os auspícios dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), orquestrados pelo MEC e viabilizados pela prática docente.

Para se responder ou se falar com mais objetividade sobre o Projeto Educacional para o Estado Brasileiro, sob as coordenadas explícitas do BANCO MUNDIAL, nada melhor do que extrair trechos do Relatório desse organismo, intitulado Informe sobre o desarrollo mundial – El conocimiento al servicio del desarrollo (1999).

Por otro lado, los países en desarrollo no tienen que reinventar la rueda ni las computadoras, ni redescubrir el tratamiento del paludismo. En vez de volver a descubrir lo que ya se sabe, los países más pobres tienem la posibilidad de adquirir y adaptar gran parte de los conocimientos  ya disponibles en los países más ricos. (p. 2)

Los factores fundamentales para la adquisición de conocimientos  en el exterior son tres: un régimen comercial abierto, la inversión extranjera y la concesión de licencias de tecnologia.

Al mismo tiempo que el mundo avanza hacia una economía basada en el conocimiento, se observa una tendencia a proteger mejor los derechos de propriedade intelectual.  (...)

Los países en desarrollo deben participar activamente en las negociaciones en curso sobre estos temas, para poner de manifiesto su preocupación de que el endurecimiento de los derechos de la propriedad intelectual pueda inclinar la relación de fuerzas en favor de quienes generan la información  y, al frenar la adaptación, agrande las diferencias de conocimientos. (p. 9)

 

Como se pode ver, o conhecimento ideal a ser promulgado nos países pobres, sob a diretividade dos países ricos, não é nem o explicitado por RUBEM ALVES, nem o sonhado pelos educadores.

O planejamento internacional para o desenvolvimento da sociedade capitalista implica não só em não generalizar o conhecimento para todos os países do globo como em selecionar o conhecimento que pode ou deve ser adquirido pelos indivíduos de países “em desenvolvimento”.

Limitando o saber dos “cidadãos de segunda classe”, assegurando uma valorização desmedida à informação, sem interesse em estimular o conhecimento, quer como processo mental, quer como saber sistematizado, uma nova forma de exclusão é garantida sob a capa de uma ideologia igualitária.

E, nessa modernidade, a maioria dos cidadãos, sem luta, sem oposição e sem contestação, pode ser incluída, porque já vem perdendo, gradativa, mas aceleradamente, a capacidade de formular problemas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

 

ALVES, Rubem. A leitura dos jornais nos torna estúpidos? Folha de São Paulo, 02 set.2001. Opinião, A3, p. 3.

BANCO MUNDIAL. Informe sobre el desarrollo mundial. El conocimiento al servicio del desarrollo. Resumen. Washington, D.C. 1998-1999, p. 2-9

DEMO, Pedro. Política Social do Conhecimento e Educação. Ensaio: avaliação de políticas públicas. EDUC. Rio de Janeiro, v. 8, n. 26,  jan./mar.2000, p. 5-28

GINDRE, Gustavo. Uma disputa de projetos nas sociedades do conhecimento. Vozes & Diálogo. n.2. UNIVALI, abril/98, p. 46-53.

KIENBAUM, Germano de Souza. A construção da sociedade do conhecimento brasileira. Revista da Escola Superior de Guerra., n. 37, 1998, p. 133-156.



* Professora Titular da UEM; Doutora em Filosofia da Educação (PUC/SP)

[1] Engenharia Nuclear e Filosofia são áreas que também revelam interesse nessa temática, mas não foram tão examinadas, comparativamente, em termos de freqüência.

[2] A política preconizada pela Comunidade Européia a esse respeito pode ser acessada pela Internet Information Society Projetct Office- ISPO, órgão especialmente criado para  coordenação e divulgação de suas  atividades.
[3] Gustavo Gindre, Coordenador Geral do Instituto de Estudos e Projetos em Comunicação e Sociedade, DIZ: “O Brasil, até hoje, tem sido citado como exemplo da mais brutal concentração de oligopólios na comunicação. Nenhum país do mundo (exceto México, talvez) tem um predomínio tão gigantesco de poucos grupos empresariais sobre a exploração do fenômeno comunicacional de massa.