Ano I - Nº 03 - Dezembro de 2001 - Quadrimestral - Maringá - PR - Brasil - ISSN 1519.6178

Passado, memória e história:o desejo de atualização das palavras e feitos humanos

 

Edson Luis de Almeida Teles [1]

 

 

Resumo:

A partir da análise da Lei de Anistia brasileira, de agosto de 1979, o artigo procura mostrar como a construção da história em nosso país tem sido empreendida pelo discurso oficial. O esquecimento dos momentos de maiores conflitos ou violência, momentos nos quais o Estado impôs o terror e aniquilou a ação política. Para compreendermos os conceitos de história, memória e esquecimento, articulados o discurso da política, recorremos ao pensamento da filósofa judaico-alemã Hannah Arendt, para quem uma perda só pode ser reparada quando dela se contar uma história. A ação política só é livre nos momentos em que os homens podem narrar seus feitos e compartilhar um mundo. Procuramos dialogar com as idéias de intelectuais brasileiros que pensam a herança política de sociedades autoritárias. O objetivo do artigo é aprofundar o debate em torno da questão da memória política, a história, e sua importância para a ação política no presente.

Palavras-Chave: história; memória, esquecimento; anistia; ação política; Hannah Arendt.

“Todas as mágoas são suportáveis quando fazemos
delas uma história ou contamos uma história a seu respeito”

Isak Dinesen [2]

 

 

Introdução

Em agosto de 1979 o Congresso Nacional brasileiro promulgou a Lei de Anistia, concedendo indulto a todos que haviam cometido “crimes políticos ou conexos com estes”, ou seja, “os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política” [3]. Na época, após 15 anos de regime autoritário no país, os militares cederam às pressões da opinião pública e a oposição aceitou a anistia proposta pelo governo, ainda que parte dos presos e perseguidos políticos não tenha sido beneficiada por aquela Lei [4]. Atualmente, os movimentos de direitos humanos apontam para a ingerência de uma política do esquecimento no interior da referida anistia. Observemos, nas palavras da historiadora Janaína Teles, organizadora do livro Reparação ou Impunidade?, como se processa a ação sistemática do regime militar em operar o esquecimento dos “anos de chumbo”:

“A imposição do esquecimento iniciou-se ainda em abril de 1964, quando os primeiros assassinatos promovidos pelo regime civil-militar apareceram mascarados pela versão de suicídio e, quando a partir de 1973, principalmente, a destruição de opositores perdia sua eficácia, surgiram os desaparecidos: não mais havia a notícia da morte, um corpo, atestados de óbito — essas pessoas perderam seus nomes, perderam a possibilidade de ligação com seu passado, tornando penosa a inscrição dessa experiência na memória coletiva. Sinistra construção do esquecimento esta orquestrada por meio do terror do desaparecimento de opositores políticos, porque deixa viva a morte dessas pessoas através da tortura que é a ausência de informações e de seus corpos. Aos seus familiares só é permitido lembrar sempre a ausência, reacendendo permanentemente o desejo de libertar-se de um passado que, no entanto, permanece vivo” (Teles: 11-2).

A Lei de Anistia foi, de acordo com essa política do esquecimento, parte de uma tentativa de apagar da história os crimes cometidos pelo Estado, já que à época o regime combalia e “a intenção evidente do legislador (e disso ninguém tem a menor dúvida) foi a de anistiar os militares e policiais envolvidos em atos de repressão violenta”, negando às vítimas “o direito fundamental à verdade” [5].

Entretanto, o que nos interessa não é remontar as condições históricas daquele período, nem mesmo suas repercussões no período de reconstrução da democracia. Interessa-nos a questão do esquecimento, do passado e da memória, de como a história deve lidar com esses conceitos e de que maneira pode-se articular esse passado com a ação política no presente.

Para entendermos as relações entre o passado e o presente, sua importância para a ação política e para o futuro, recorremos ao pensamento político da filósofa judaico-alemã Hannah Arendt, que ao refletir sobre o aniquilamento do político e da liberdade nos regimes totalitários do século XX, aponta para uma ruptura entre o passado e o futuro, uma incapacidade do humano em articular um sentido para sua estada no mundo. O sentido a que a autora se refere é introduzido por meio do debate entre os homens acerca do mundo que herdaram e partilham, e da ação que podem realizar, dando visibilidade às coisas humanas e constituindo os valores que irão orientar suas ações.

 

A ruptura entre o passado e o futuro

Ao indicar a existência de uma brecha entre o passado e o futuro, um espaço e um tempo no qual nossas antigas referências estão esgarçadas e dissolvidas em memórias oficiais sem sentido, Hannah Arendt cita o poeta e escritor francês René Char, quando é comentada a herança do movimento francês de resistência, ao fim da 2ª Guerra: “notre héritage n’est précédé d’aucun testament” [6] (Arendt, 1997a: 28). Esse aforismo de Char nos remete ao centro da questão, mostrando a situação atual da condição humana, na qual existe um bloqueio no acesso aos “tesouros” do passado e da tradição. Não recebemos de nossos antecessores nenhuma herança que pudesse nos legar seus conhecimentos. Nas palavras de Hannah Arendt:

“Sem testamento ou, resolvendo a metáfora, sem tradição — que selecione e nomeie, que transmita e preserve, que indique onde se encontram os tesouros e qual o seu valor — parece não haver nenhuma continuidade consciente no tempo, e portanto, humanamente falando, nem passado nem futuro, mas tão-somente a sempiterna mudança do mundo e o ciclo biológico das criaturas que nele vivem” (Arendt, 1997a: 31).

Essa ruptura com o passado, especialmente no campo da política, se deve a um lapso da memória, tanto por parte daqueles que deveriam herdá-la, quanto dos atores e testemunhas das ações passadas. Isso se deve ao fato de que a memória, enquanto um modo do pensamento, torna-se ineficaz sem um quadro de referências que lhe permita reter o conhecimento. Essas referências são o acabamento que todo acontecimento vivido deve ter, suas reflexões, questionamentos e lembranças. Para que o presente possa usufruir dessa herança do passado é preciso que a memória seja articulada e retomada, com o fito de construirmos uma história e, dessa forma, fazer uso do “tesouro perdido”. Para entendermos melhor a importância da história e suas relações com a memória e o esquecimento no pensamento de Hannah Arendt é necessário fazer uma resenha de como esses conceitos se desenvolveram no percurso da experiência humana.

Heródoto afirmava ser o papel da história o de “preservar aquilo que deve sua existência aos homens, (...) para que o tempo não o oblitere” (Arendt, 1997a: 70). Assim, a história teria por objetivo salvar os feitos humanos, conferindo-lhes um caráter de imortalidade em oposição ao ciclo vital do homem de nascimento e morte. As interrupções que rompem com o cotidiano da vida são os temas da história. Se os homens pudessem usufruir de uma imortalidade ao narrar seus feitos e palavras para a posteridade estariam encontrando seu lugar no cosmo. A capacidade humana de realizar essa inversão, da vida biológica à imortalidade, era a mnemósine, isto é, a recordação. A história desempenhava o papel de imitadora da ação, realizando a reconciliação do homem com a realidade por meio das lágrimas da recordação, fruto da catarse, quando ator, autor e espectador são uma mesma pessoa. A solução da historiografia grega não era filosófica, mas poética — os poetas e historiadores conferiam fama imortal aos feitos e palavras fazendo-os perdurarem mesmo após a morte de seu autor. Isso gerou uma separação entre os historiadores e os filósofos, que atingiu seu ponto alto com a filosofia de Platão, para quem imortalizar significava estar entre as coisas que existem para sempre, ou seja, entre as idéias, que não dependem das palavras e feitos para serem apreendidas.

O fundamento do moderno conceito de história, surgido nos séculos XVI e XVII, está na dúvida cartesiana que proclamava a impossibilidade do homem confiar nas evidências do sentido e das faculdades humanas. A época moderna começou quando o homem descobriu o telescópio e pôde constatar que aquilo que antes lhe parecia uma verdade aos olhos corpóreos, se mostrou efêmero e incerto, sendo os sentidos uma fonte de erro e ilusão. A conseqüência imediata disto para o conceito de história foi a constatação de que, por um lado, o homem é incapaz de conhecer o mundo que lhe é dado, e por outro, que ele deve conhecer aquilo que faz. Com base nesse raciocínio Vico voltou-se para a história entendendo que aquilo que o homem não fez, a natureza, lhe é inacessível; e a história, que é feita pelos homens, pode ser conhecida. A partir daqui, a ênfase do conhecimento deslocou-se para os processos, com o intuito de determinar de antemão aquilo que o homem fez e aquilo que lhe é dado pela natureza. A história deixou de ser, como nos antigos, uma tentativa de dar uma efetividade para o efêmero dos negócios humanos e tornou-se uma busca por processos fabricados. O conceito de processo implica na universalização do significado do acontecimento: dissocia-se o singular e específico do significado universal, passando a existir ‘A História’ em detrimento das ‘histórias’. Com as revoluções industrial e tecnológica o homem passou a dominar a força dos elementos naturais, ao introduzir esses elementos no mundo, apontando para uma conexão entre natureza e história.

No início da época moderna a idéia de que o homem poderia conhecer somente aquilo que faz, apontava a ação política como ponto elevado dos negócios humanos. Marx, um dos principais pensadores da práxis, concordava com Vico que a história era feita pelo homem, o que não ocorria com a natureza. A dialética determina leis de movimento que têm como conseqüência a idéia de que o processo histórico possui um início, bem como um fim. A filosofia política de Marx se baseava em uma análise da história como uma projeção do futuro, uma orientação para a ação rumo ao fim desejado. Sua contribuição às tendências do pensamento contemporâneo foi marcante e colaborou para a ruptura com a tradição do passado. A contemporaneidade contestou as formulações da tradição e transformou o conceito de teoria: esta deixou de ser um sistema de verdades estabelecidas para dar lugar ao “acaso na natureza, a contingência na história e a fortuna na ética e na política” (Chauí, 1996: 22). É assim que Marilena Chauí, no artigo Contingência e Necessidade, define a fortuna:

“Personificada como deusa, na mitologia greco-romana, na literatura e na pintura, a Fortuna é representada emblematicamente como uma jovem nua, com o zodíaco como cinta, um manto branco esvoaçante ao vento, seus pés sobre um globo, numa das mãos a cornucópia e noutra a roda que faz girar sem cessar. Inconstante, caprichosa, cruel, meretriz, volúvel, inconseqüente, a Fortuna é o signo e o símbolo da adversidade e da felicidade imprevistas, da relação do homem com a exterioridade e com o tempo” (Chauí, 1996: 20).

Desde os gregos até a época moderna que essa contingência na história e nos assuntos humanos tem sido nomeada por fortuna (tyche, para os gregos). Na tradição do pensamento ocidental a teoria, em nome da razão, foi criada pela filosofia para se contrapor aos desígnios da fortuna. Podemos dizer que o esforço da razão ocidental foi no sentido de compreender e dominar a imprevisibilidade da ação humana. Na contemporaneidade, a contingência e o acaso nos acontecimentos tornaram-se nosso meio de acesso e compreensão da realidade e da ação, apontando para uma crise da razão. Dessa forma, a brecha que se abre entre o passado e o futuro é ocupada por mitos e religiões.

 

O sentido da história

Na concepção de Arendt a história deixa de ser uma sucessão de eventos, um tempo homogêneo e vazio, para ser pensada por meio dos rompimentos que quebram o continuum histórico. Para a autora o que importa na retomada do passado é a possibilidade de narrar experiências do político que possam ser apreendidas e que revelem o sentido dos acontecimentos políticos do presente, encontrando assim correspondências entre o passado e o presente. A história busca o passadp fragmentado e não transmitido pela tradição, composto pelas memórias esquecidas, as que somente podem ser contadas pelos que pertenciam às causas políticas derrotadas ou minoritárias. O presente não esquece, nem domestica o passado.

Recuperar o passado é uma primeira garantia de um sentido para o presente. Ao recorrermos a memória dos relatos e testemunhos das épocas passadas, estamos transformando essas narrativas em história, fazendo com que um amontoado de fatos ganhe sentido. O narrador histórico é aquele que procura o sentido das ações humanas e encontra nelas uma conexão com os acontecimentos que se precipitam no presente. Sua importância não está em apresentar uma imagem do passado, tirando sua autenticidade, mas em transformá-lo em uma experiência política única que possa renovar o futuro com seu reconhecimento no presente. Um sentido histórico só pode ser apreendido se o acontecimento passado for interrogado. A reflexão a que almeja o conceito de história proposto por Hannah Arendt consiste em um duplo movimento de resgate: por um lado, recupera os acontecimentos e fatos históricos em suas particularidades e de acordo com sua importância para o presente; e, por outro lado, a partir desse sentido recuperado da história, elabora os conceitos e valores políticos que utilizamos no manejo dos eventos cotidianos.

 

Contra o esquecimento, o desejo

É possível perceber uma certa tensão entre os conceitos de memória e história que se deve a uma fundamental distinção existente entre as duas palavras. Em artigo no caderno Mais!, José Murilo de Carvalho observa que, segundo Ernest Renan (1823-1892), para a criação e o desenvolvimento de uma nação é preciso que ocorra um esquecimento e se permita o erro ao escrever a história, pois os acontecimentos que possibilitam a edificação de uma nação se dão “mediante o uso de muita violência” [7]. Para que se possa construir os elementos nacionais — mito de origem, documentos e ancestrais comuns, heróis, folclore etc. —, com a produção de uma narrativa histórica, as violências têm que ser esquecidas a fim de que não haja risco à institucionalização do sentimento de unidade nacional. Ainda seguindo o raciocínio de Renan, José Murilo pondera que o avanço dos estudos históricos pode se constituir em um perigo para a construção de uma nação ao mostrar os erros e esquecimentos da memória oficial, criando uma história fria, sem um compromisso forte com a sociedade. Dentro do contexto do qual extraímos os conceitos em discussão, o esquecimento de que tratamos é em relação à falta de preservação de alguma memória acerca da violação dos direitos humanos. Assim, esta reflexão nos leva a pensar em uma memória da condição humana e não nacional. Como vimos, essa ‘memória nacional’ está relacionada a uma série de elementos que constituem uma nação, digamos, sua trajetória oficial. Já a memória é a soma das características do testemunho tanto dos atores e autores dos feitos humanos, quanto de seus herdeiros no presente, independente de limites geográficos.

O exercício da política, e mesmo nossas relações pessoais de afeto, podem exigir uma certa dose de esquecimento, quando este é entendido como uma tentativa de construir um futuro melhor. No pensamento jurídico ocidental só pode haver justiça se o crime for esquecido e um grau de perdão pelo passado for considerado, pois “a justiça não está na restauração de um equilíbrio sempre mítico, mas na produção de um futuro que tenda, mesmo nunca o realizando, a algum equilíbrio” (Ribeiro: 140). Por outro lado, ao refletir sobre um crime podemos ser levados à tentativa de desfazer aquilo que de negativo foi feito e retornar a um passado que supomos bom — e esse é o desejo de vingança. A produção de um futuro com menos conflito somente se realiza com o fim da violência provocada por intermináveis vinganças e retaliações [8]. O fato é que nossa sociabilidade está construída sobre conflitos e fraturas, produtos da fragilidade da ação humana, que no mundo atual, diante das grandes desigualdades sociais e políticas, contribuem para a formação de identidades pela dor — grupos sociais que se identificam pela dor provocada por alguma agressão que sofreram —, em princípio benéficas à ação, mas que em demasia torna impossível a superação daquilo que provoca sofrimento. Segundo Renato Janine Ribeiro, para que o novo apareça na política é preciso que se supere o sofrimento: “não penso que a insistência em apenas uma dimensão da vida — e naquela que nos dói mais, como a do judeu que jamais esquece Auschwitz — ajude a construir uma experiência social que permita a novidade”. É possível realizar o esquecimento? Como podemos operá-lo? De que maneira é possível purgar a dor?

Das interrogações acima, podemos iniciar a reflexão sobre como operar esse esquecimento: Aristóteles afirmava que “por meio do terror e da piedade” a tragédia opera “a catarse das paixões dessa ordem” [9]. Um dos sentidos possíveis para a palavra grega catarse é ‘purgação’, algo que na tragédia grega tem lugar no espectador. Ao assistir à encenação do sofrimento de outrem, o espectador se identifica de tal forma que passa a realizar em seu interior a ‘purificação’ dos sentimentos perturbadores de sua condição humana. A narrativa da tragédia equivale aqui com a narrativa histórica e, neste caso, podemos ver como uma identidade pela dor pode impulsionar a ação política, desde que consiga transformar a dor em conhecimento. Segundo Nicole Loraux, para os gregos a lágrima rolada dentro do teatro “é o que se sofre, o sofrimento, mas também a experiência que, para os humanos, se adquire somente na dor” (Loraux: 27). O esquecimento adquire assim a forma do luto e sua operação não impõe o silêncio. No livro A Sociedade contra o Social, Renato Janine Ribeiro comenta como a omissão em relação ao passado pode redundar em um futuro infértil:

“Mas não será por silenciar, por omitir o acerto de contas que nunca fizemos com o passado, que temos tanta dificuldade em construir um futuro? Enquanto não conseguimos separar os tempos verbais, julgar e enterrar o passado, enquanto, pior de tudo, nem sequer o tentamos, continuamos brincando de enternecer o futuro (...), dele fazendo um prolongamento bastante infantil do presente, um momento de presença histérica” (Ribeiro: 96-7).

O recurso à filosofia política clássica permite-nos identificar que, segundo Jean-Jacques Rousseau, o poder político soberano é a expressão da vontade geral dos cidadãos [10] atualizado na democracia moderna com a máxima de que será exercida por representantes escolhidos livremente. Para a manutenção desse poder é preciso que o consentimento dado pelos habitantes ao seu Estado seja renovado incessantemente. Sendo assim, não é suficiente a fabricação de uma ‘memória nacional’, mas torna-se necessário que essa memória seja reciclada em consonância com a vontade de seus cidadãos. Se houver um divórcio da população em relação à memória com a qual se tenta constituir a sociedade, a ação política torna-se impossível, orientando-se por valores sem sentido, por caminhos desencontrados, em uma reedição do ‘ame-o ou deixe-o’. E este é o modelo da história oficial, no qual o passado é retomado de forma concomitante a um ignorar-se dele, desfazendo-se dos erros recentes, voltando nossa ‘memória nacional’ ao ‘zero’ (o início da história), zerando também os erros do passado. O que ocorre na narrativa oficial é uma mitificação do passado, que passa a servir como enredo para o presente, a serviço de uma ideologia dominante. Além disso, uma apropriação peculiar do conceito de representação política, já realizada na história pelo nazi-facismo e por algumas monarquias, permite que esse conceito sofresse uma inversão durante o regime militar: “é porque se governa que se é representante” (Chauí, 1987: 32). Ao assumir o poder os militares passaram a representantes da sociedade identificando-se com a vontade geral, sendo esta expressa pelo signo da Segurança Nacional.

Assim sendo, a memória oficial brasileira, na maior parte dos casos fruto das negociatas políticas, provoca o desejo de atualização das palavras e feitos da luta de resistência ao regime militar. Esse desejo, expressão da memória que incita a reflexão acerca do ser na história e na ação política, é o anseio de encontrar as origens e o trajeto dos acontecimentos políticos vividos. As nossas frágeis democracias têm-se legitimado com contratos sociais e pactos políticos fabricados em minuciosas negociações em vez de se constituírem por meio do exercício da memória e da política. “Durante os momentos mais duros da ditadura, ‘pensar em democracia’ foi em si um exercício perigoso, uma expressão do desejo” [11]. Hoje, na construção da democracia, pensar no que foi e significou o regime militar para o presente também se encontra no campo dos anseios e desejos, pois há os que temem que esse passado recente possa ameaçar a democracia. Entretanto, pensar que o olhar sobre o passado impede o desenvolvimento dos acontecimentos e que os erros históricos devem ser esquecidos é não perceber que a perda do passado equivale à trágica privação de sentido na existência humana.


Notas:
Mestrando do Departamento de Filosofia da FFLCH/USP, sob orientação do Prof. Dr. Renato Janine Ribeiro, com apoio da FAPESP.
Epígrafe usada por Hannah Arendt, no início do capítulo V, sobre o conceito de ação, do livro A Condição Humana (Arendt, 1997b: 188).
Lei de Anistia, nº 6.683, de 28 de agosto de 1979.
As pessoas anistiadas foram aquelas que sofreram processo formal ou tiveram seus nomes publicados em listas de procurados. As pessoas não oficialmente procuradas, não foram anistiadas. Os mortos e desaparecidos políticos também não foram anistiados e o paradeiro de seus restos mortais não foi esclarecido. Por fim, a anistia não beneficiou os presos políticos envolvidos em crimes de sangue. Cf. caderno Anistia. 20 anos de luta! Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal de São Paulo. São Paulo, 1999.
Cf. Fabio Konder Comparato em Reparação ou Impunidade? (Teles: 67).
“Nossa herança nos foi deixada sem nenhum testamento” (trad. nossa).
Cf. José Murilo de Carvalho, caderno Mais!, Folha de São Paulo, de 12 de novembro de 2000, pp.18-9.
Ainda que nosso conceito moderno de justiça não considere de forma alguma a vingança, seria pertinente refletirmos sobre uma política onde o verbo vingar fosse tomado em sua acepção construtiva, isto é, no sentido de lograr, crescer e prosperar, a fim de que possamos dizer que a democracia vingou. Nesse caso, poderíamos pensar em uma política democrática com a punição dos culpados pelas violações dos direitos humanos durante o regime militar, a averiguação das condições em que aconteceram os crimes e a localização dos restos mortais dos desaparecidos.
Cf. Aristóteles, em Poética, 1449b.
Cf. Rousseau, Do Soberano, no cap. VII do livro I do Contrato Social. São Paulo: Nova Cultural, 1987, pp. 34-6.
Cf. Saúl Sosnowski in Brasil: o trânsito da memória. Saúl Sosnowski e Jorge Schwartz (orgs.). São Paulo: Edusp, 1994, pp.18.

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Bibliografia

 

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_____. A Condição Humana. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997b.

Chauí, Marilena. A Tortura como Impossibilidade da Política in I Seminário do Grupo Tortura Nunca Mais. Petrópolis: Vozes, 1987.

_____. Contingência e Necessidade in A Crise da Razão. Org. Adauto Novaes. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

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Loraux, Nicole. A Tragédia Grega e o Humano in Ética. Org. Adauto Novaes. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

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Teles, Janaína. Mortos e Desaparecidos Políticos: Reparação ou Impunidade? São Paulo: Humanitas, 2000.