Ano I - Nº 03 - Dezembro de 2001 -
Quadrimestral - Maringá - PR - Brasil - ISSN 1519.6178
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Relaçoes
de trabalho no Brasil: o movimento autogestionário como resposta
à globalização da economia e seus reflexos no mercado
de trabalho
Josiane Magalhães [1]
O
Mundo dos anos 90 é um espaço em transição. Isto porque, apesar do modo
de produção capitalista ainda ser a forma de organização da produção
material, e por conseqüência, de uma determinada organização do trabalho,
passa por uma nova fase de acumulação. Rosa
Luxemburgo, sob o ponto de vista da análise marxista, já apontava algumas
reflexões acerca da expansão do capitalismo pelo mundo. Analisando a
fase imperialista do capitalismo, mas ainda com um formato nacionalista,
ela já chamava a atenção para a necessidade do capital expandir-se por
zonas territoriais onde o modo de produção capitalista ainda não era
hegemônico. Isto significa que, para a manutenção da acumulação capitalista
nos países industrializados, o capital das empresas nacionais precisava
de mercados onde pudesse explorar as matérias-primas e a mão de obra
baratas, ao mesmo tempo em que vendia seus produtos. No caso brasileiro, a dependência econômica
já era perceptível no período agrário-exportador, quando dependia
do mercado externo, consumidor de seus produtos primários e fornecedor
dos produtos industrializados, configurando-se a análise de Luxemburgo. Hoje
em dia, com o processo de globalização, onde os capitais perderam sua
nacionalidade e tornaram-se voláteis como uma nuvem de chuva, que a
qualquer momento pode ser levada para outro lugar por um vento forte,
a dependência econômica tornou-se um pesadelo. Em
primeiro lugar, porque o desenvolvimento industrial brasileiro é frágil
em dois sentidos. De um lado, porque os investimentos em pesquisa tecnológica
não acompanham nem de perto o que se faz em países como os EUA e alguns
países da Europa, deixando a industria brasileira dependente deste mercado.
Vale ressaltar que a pesquisa desenvolvida no Brasil encontra-se no
seio das universidades públicas que passam por sérias dificuldades de
financiamento.
[2]
Por outro lado, o sistema financeiro que impulsiona a renovação tecnológica
de nossas indústrias não possui cabedal que lhe impute auto-suficiência.
[3]
Esta fragilidade coloca o desenvolvimento industrial
brasileiro sobre pés de barro. Em
segundo lugar, vale lembrar que o país em alguns setores continua sendo
agrário exportador. Portanto, continua vendendo barato seus produtos
primários e comprando tecnologia e buscando financiamentos, que são
os insumos mais caros do mercado. A
análise de Rosa Luxemburgo nos permite construir o argumento que coloca
o Brasil ainda como um dos territórios que mantém a expansão capitalista,
agora não mais personificados pelos países industrializados do início
do século vinte, mas por entidades que extrapolam sua nacionalidade
original e se manifestam no mercado financeiro mundial. A identidade
das empresas transnacionais já não é relevante, mas sim o sistema que
permite sua existência e seu poder que se estende acima dos Estados
nacionais. Estes
aspectos, talvez um tanto simplificados, apontam para a conseqüência
óbvia: o déficit da balança comercial e a dependência econômica do Brasil
em relação ao mercado estrangeiro, bem como a impotência do Estado brasileiro
diante do poder do mercado financeiro sobre a vida econômica deste e
de outros países indiscriminadamente. Envolvidas
por este ambiente econômico temos as relações de trabalho no Brasil.
Torna-se uma tarefa difícil a compreensão das relações de trabalho em
qualquer país sem as considerações sobre o que acontece no restante
do mundo. As ilusões em contrário se desfazem a todo instante, quando
novas notícias aparecem nos jornais e telejornais das emissoras de televisão.
Se
os valores da bolsa de Tóquio ou Hong Kong caem, o restante do mundo
fica à mercê destes eventos. Os capitais passam a fugir das zonas de
risco como o Brasil, acabando por forçar o governo a tomar precauções
para que o país não fique desestabilizado.
Os juros sobem para estimular as aplicações no país, manter a
cotação do real, ao mesmo tempo, desestimulam novos investimentos na
produção, consumidores à consumir e o mercado de trabalho se retrai. Falar
em relações de trabalho é falar necessariamente na relação emprego x
desemprego. Em
primeiro lugar, porque a globalização torna as relações semelhantes
em todos os cantos do mundo. Os fenômenos sociais desenvolvem-se de
maneira similar nos países desenvolvidos ou subdesenvolvidos, diferenciando-se
apenas no grau de sofrimento, miséria e distanciamento das classes sociais. Em
segundo lugar, o mundo vê o homem ser substituído pela máquina no processo
produtivo e o desemprego crescer de forma alarmante ao mesmo tempo em
que os bolsões de miséria alargam-se. A
conclusão para este fenômeno é simples: o sistema capitalista tornou
as relações entre os homens relações entre coisas, o chamado processo
de reificação
[4]
. As leis que governam as relações entre os seres
reificados são as leis do mercado. Neste troca-se objetos e força de
trabalho. Se a máquina substitui a força de trabalho humana, os indivíduos
que só possuem força de trabalho para trocar não tem mais o que oferecer.
Estão excluídos do processo produtivo e do consumo dos produtos. Passam
a fazer parte dos bolsões de miséria, sendo sua existência descartável. Marcuse
já nos chamava a atenção para a lógica do mercado que se estabelece
sob o princípio de desempenho - os indivíduos são distribuídos nas classes
sociais de acordo com os seus desempenhos econômicos concorrentes, que
estratificam a sociedade em torno destes valores - regendo o modo de
produção capitalista
[5]
. O
trabalho adquire um caráter formador e opressor, determinante da existência
de seres humanos ou de sua posição desnecessária. As
relações de trabalho no Brasil não diferem das relações que se estabelecem
no mundo no tocante à essência. A condição de país subdesenvolvido trás
agravantes sociais, mas não na análise do processo. O
trabalho que é administrado sob os valores capitalistas que seguem as
leis do mercado, que é regido pela impessoalidade, pela racionalização
entre meios e fins, onde o trabalhador é meio para atingir o fim - o
lucro, só pode gerar relações que tenham esse caráter. O operário da
linha de produção, o funcionário administrativo, o técnico, o especialista
com diploma universitário, os prestadores de serviço, enfim os assalariados,
são mantidos ou excluídos se e na medida em que contribuem significativamente
para a manutenção do sistema. Os indivíduos devem ser versáteis, diversificar
seus conhecimentos para que possam adequar-se às crescentes e progressivas
exigências do mercado. A linha de produção que substitui homens por
máquinas precisa hoje de operários que mantenham seu sistema robotizado
funcionando, com um cabedal de conhecimentos que dê conta da complexidade
da organização fabril A
imagem do operário especializado que só conhece parte do processo produtivo
está cada vez mais distante, obsoleta. As
unidades produtivas procuram novas formas de organização que recupere
a capacidade criativa de seus trabalhadores, reconstruindo o compromisso
destes com a empresa, reorganizando-os em células produtivas, em grupos
de trabalho, enfim dando-lhes uma identidade motivadora. Isto tudo servindo
ao capital e à necessidade de expansão e acumulação. O
suporte do mercado que mantém a expansão do consumo, mesmo com o crescente
desemprego está no caráter descartável da cultura atual. A satisfação
imediata e o individualismo que segrega as pessoas a um universo particular,
aliados à necessidade artificial de produtos descartáveis e novas criações
tecnológicas, tornam sustentável a manutenção do processo produtivo
capitalista. Para
além da lógica de acumulação capitalista coloca-se a questão: o que
os excluídos do processo produtivo devem fazer? Esperar
a caridade alheia, permeada pelo individualismo?
[6]
Esperar a morte acreditando na redenção que o paraíso
celeste propiciará?
[7]
Qual
a saída possível? No
mundo todo, mas também no Brasil, algumas pessoas passaram a ter que
responder essa questão pela iminência da sobrevivência. Em
alguns casos temos o aparecimento dos subempregos como os camelôs, guardadores
de carros, etc, que mantém precariamente os meios que garantem a sobrevivência
do indivíduo e de sua família. Não garantem contudo o acesso aos bens
de consumo do sonho capitalista. Mantém um exército de mão de obra de
reserva que é desqualificada. Há
uma outra alternativa colocada em alguns países da Europa e timidamente
no Brasil: a autogestão. Este
tipo de proposta de organização da produção e principalmente das relações
de trabalho é bem antigo. A
Comuna de Paris na França do século XIX já era festejada como uma organização
de cunho autogestionário. Tivemos outros casos esparsos na história
da humanidade , dentre os quais poderíamos salientar os conselhos de
fábrica na Itália, os sovietes na Rússia e particularmente a experiência
de Mondragon na Espanha. No
Brasil, recentemente, este tipo de organização vem servindo como resposta
ao fantasma do desemprego que assola as unidades de produção. Os
casos de empresas autogestionárias no Brasil têm um motivo essencial
que permeia cada uma de suas histórias: a sobrevivência dos trabalhadores
que em muitos casos perderam seus empregos, seja por conta da falência
da empresa onde trabalhavam, seja como forma de reagir à retração do
mercado de trabalho. A
constituição de instituições autogestionárias pode ser um fenômeno isolado,
mas pode também assinalar a possibilidade de um limite da organização
do trabalho sob a lógica capitalista. Isto porque a lógica que dá o
suporte a este tipo de empreendimento não se pauta na acumulação de
capital. Pelo contrário, organiza-se em função de permitir às pessoas
continuarem sobrevivendo, dando-lhes oportunidade de produzirem para
o seu sustento e o de sua família. Se a empresa autogestionária cresce
e permite uma rentabilidade, isto acrescenta uma melhoria nas condições
de vida de seus trabalhadores/autogestores. Como se vê, o princípio
norteador não é mais o princípio de desempenho, inserido em um processo
mais amplo de acumulação de capital, mas que contudo, possui um princípio
que valoriza a vida e procura na atividade produtiva a fonte de satisfação
das necessidades humanas. As
pessoas que se envolvem neste tipo de empreendimento geralmente o fazem
sem uma reflexão profunda do significado deste tipo de organização .
São geralmente impulsionados pela necessidade de sobrevivência, uma
vez que as portas das organizações capitalistas se fecharam à elas.
Estão também viciadas pelo sistema que não exigia de seus trabalhadores
nada a mais que sua força de trabalho. As questões relativas à administração
da empresa não eram assunto a ser considerado relevante pelos trabalhadores
de uma maneira geral. A complexidade que o sistema capitalista imputou
às relações das empresas no mercado torna-se por vezes uma barreira
quase intransponível à linguagem usual dos trabalhadores. Na
maioria dos casos se faz necessária uma reeducação no sentido de retirar
os trabalhadores de sua condição de isolamento, dentro de um processo
de atomização dos indivíduos, preocupados com sua sobrevivência individual
e abrir-lhes as mentes para esforços coletivos, vinculando a própria
sobrevivência à sobrevivência dos outros, recuperando o valor da cooperação
e do sentido de coletividade. Mesmo assim, eles lançam-se nesta empreitada
que por vezes oscila entre a manutenção da empresa autogestionária e
o fracasso. Este último considerado
não pela ineficiência da proposta, mas pelas condições do mercado ,
pela falta de conhecimentos técnicos, pela própria origem deste tipo
de empreendimento: empresas capitalistas falidas e, principalmente pela
falta de financiamento. Questão que se coloca não para as empresas autogestionárias
como também para as capitalistas. O
que parece contudo inovador é que da mesma forma com que o modo de produção
capitalista consolidou-se sem que os indivíduos que colaboraram para
essa consolidação tivessem consciência disso, a instauração desta nova
forma de organizar a produção acontece da mesma forma por aqueles que
vêem nela a saída possível para sua crise pessoal. Seria o início de
uma nova organização social ? Pode-se até chamar esta postura de utópica,
porém não viveremos o suficiente para confirmá-la ou não. De qualquer
maneira é mais confortante imaginar que indivíduos organizados precariamente
em torno de uma mudança de perspectiva da organização do trabalho possam
ser o início de novas relações de trabalho e de uma nova sociedade. Do
ponto de vista das relações que se estabelecem no interior destas organizações
podemos fazer algumas considerações importantes. Em primeiro lugar as
relações de poder no processo produtivo mudam radicalmente. Isto porque
na estrutura fabril do sistema capitalista existe em maior ou menor
grau uma hierarquização do poder entre gestores e subordinados. O processo
é delineado pelos gestores a serviço da lógica capitalista. Além
dos problemas vinculados ao mercado que assolam as empresas brasileiras
de maneira geral, as empresas autogestionárias passam por dificuldades
específicas. O
fato de não serem empresas capitalistas comuns trás o problema de constituição
jurídica. Infelizmente a forma de cooperativas já imputou ao mercado
uma imagem que impregna a empresa autogestionária e lhe fecha certas
portas inevitáveis no mercado capitalista. Há a necessidade de inovar
e encontrar outras formas de constituição. Uma das saídas foi a constituição
jurídica de uma empresa normal que por sua vez pertence à uma associação
de trabalhadores. Esta separação entre entidade jurídica e propriedade
privada da empresa que muda de sentido quando passa a ser prioridade
coletiva denominada associação dos trabalhadores. É uma forma nova que
constrói uma inovação no conceito de propriedade. Uma vez que a propriedade
das sociedades anônimas ainda mantinha a figura do indivíduo, proprietário
das ações. Aqui, a propriedade é coletiva, no sentido de personificar
igualitariamente todos os proprietários e não segundo sua cota de ações. A
organização de empresas deste tipo no país ainda é bastante tímida,
mas que pode constituir-se em contraponto `a organização fabril capitalista
e ser o início de um futuro que para alguns já estava traçado como o
fim da história.
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