Ano I - Nº 02 - Julho de 2001 - Bimensal - Maringá - PR - Brasil - ISSN 1519.6178
O
Riso de Sócrates - Argumento Para Uma Comédia Filosófica
(Baseada na Obra
de Platão: Critão, Ou o Dever)
Mario
Donadon Leal*
Sócrates,
o filósofo grego que transferiu a atenção do pensamento antigo da natureza para
o humano, com seus deveres, faculdades e destino, imaginou-se fugindo do
cárcere ao qual fora submetido após ser condenado à morte. Aventura relatada na
obra de Platão, Critão, ou o Dever,
ela contém seqüências dignas de um tratamento dramático, com cenas até
espirituosas demais para quem estava às portas de um fim trágico. Sob a coação
de Critão, seu velho amigo de argumentos azafamados, Sócrates apresentou as
conseqüências de uma hipotética fuga, mostrando o quão injusto seria viver em
tais circunstâncias, faltando aos compromissos para com a cidade e as Leis as
quais jurou cumprir, assim como para consigo mesmo e sua filosofia.
O
filósofo levou o amigo a ver o motor movendo-o em direção àquela decisão fatal
de submeter-se à sentença, motor independente da opinião da multidão, mas, ao
invés, a depender do que diz uma única autoridade, a Verdade em si. Ao
contrário das idéias embaralhadas de Critão, Sócrates perseguiu ainda, mesmo
nas conjunturas de ameaças de prisão e morte, coerentemente a sua lógica de
“viver bem, viver com honra e viver conforme a justiça” (Platão. Critão, ou o Dever – in Diálogos, Cultrix, São Paulo, 1991),
como sempre procurou seguir. Para atingir tal propósito, esse homem virtuoso
procede de modo a não cometer injustiça voluntariamente e, em razão disso,
principia por comprovar o acerto dos pensamentos anteriores à situação ali
presente de acusações, retomando as idéias consensuais entre ele e seus
discípulos a respeito das opiniões boas e más.
Nessa
análise gnosiológica, Sócrates confirmou a impossibilidade de acatar todas as
opiniões a um só tempo, mas apenas umas dentre aquelas; assim como não as
opiniões de todos os homens, mas apenas de uns dentre eles. Com mais precisão,
aprovou também um antigo ensinamento, o de aceitar só as opiniões boas, as dos
sensatos, e rejeitar as ruins, as dos mentecaptos. Estendendo esse raciocínio
para as grandes questões, à do justo e do injusto entre elas, o filósofo do não-saber concluiu que se deve ouvir
somente o ditado pelo único entendido,
e não o da voz dos demais juntos.
A desobediência ao daquele em proveito do deste pode resultar na corrupção
daquilo “que melhora com a justiça e se arruina com a injustiça” (Platão, op. cit.), isto é, o corpo, com o
qual em estado de ruína não podemos viver bem. Assim, o viver bem está diretamente relacionado com o viver conformado ao
justo, e este não se liga na opinião de todos, mas sim na Verdade do único entendido.
Aproximou
Sócrates as opiniões de Critão com as da multidão, quando este, numa tentativa
desesperada de fazer o amigo mudar de idéia na sua decisão, acusou o marido de
Xantipa de escolher o caminho da comodidade, optando por trair os filhos e
abandoná-los na orfandade, em detrimento da outra opção possível de criá-los e
educá-los. São argumentos, disse o filósofo, de quem seria capaz de matar em
nome das opiniões da multidão. No entretanto, preferisse o Hades, o pai morto
deveria deixar os filhos por conta de amigos; escolhesse a Tessália e o vivo
desterrado seria obrigado, também, a deixar os filhos sob os cuidados dos
mesmos atenienses, porquanto não poderem seguir indefinidamente o pai, pesando
na prole a dívida de outros tantos benefícios. Enfim, acatar a essas
opiniões postulando o plano de fuga de
Critão, seria o mesmo que cometer uma violência contra a pátria, esta mais
venerada pelos deuses, ou seja, seria, portanto, uma impiedade.
Ao
desertar e negar como se fossem inoperantes as sentenças proferidas pela
cidade, depois de convencionada, em acordo firmado sem engodo ou urgência, a
submissão a elas pelo cidadão Sócrates, ficaria configurada a tentativa sovina
do réu de destrui-las. E, quanto à flexibilidade das Leis, nunca houve dúvidas:
sempre se permitiu a qualquer um dissuadi-las por vias legais, caso notasse o
erro; também emigrar, quem não quisesse submeter. Ora, ao fujão ateniense
juntaria, nas condições imaginadas, o agravante de ter vivido setenta anos no
torrão natal como um verdadeiro turrão – ou cego, ou coxo – sem jamais dali
tirar as sandálias, sem nem pensar em mudar-se a outra cidade de seu agrado,
nem a Creta ou a Esparta, vistas por ele como de boas leis. Assim, pela
dialética socrática aplicada a ele mesmo, somos levados a crer que Sócrates
gostava tanto de Atenas quanto de suas Leis, a ponto de submeter à soberania
delas para gerar os seus filhos, assim como ele próprio fora educado por
intermédio das mesmas sentenças. Qualquer tentativa de destrui-las devia ser
entendida, segundo essas condições, como injustiça, como uma desforra, à vista
de dramáticas investidas da Lei sobre o réu. Note-se a retribuição vergonhosa
de injustiça com injustiça, defendida por Critão e a qual foi trazida à luz
pelo exame criterioso do filósofo sereno e correto.
Notemos,
ademais, como buscava fugir, o próprio Critão, de sua vergonha pela situação
dele e dos amigos junto ao caro amigo assuntado. Imaginemos ainda o eco, por
entre os pilares de Fídias, dos comentários maliciosos tendo os discípulos à
boca pequena de risos devassos. Torturava-se Critão por esse fado e a Sócrates
confessou o encolhimento moral perante o público, o medo de ser tachado de
covarde por ter faltado voz suficiente para dissuadir o réu de aparecer no
tribunal e, depois, para convencê-lo de abrir-se à proposta de fuga pelos
subornos antevistos. No entanto, se aos olhos do atormentado, porém brioso,
Critão o desfecho desse processo propalava-se ridículo, ao filósofo nada podia
ser mais honroso.
Desnecessário
será lembrar que a Sócrates é injusto o suborno, mais ainda nas circunstâncias
as quais foi aventado. Se perante o tribunal a recusa pela opção do exílio
sustentou-se, enquanto a morte mostrou-se como a melhor escolha; depois da
decisão tomada, a honra às palavras pronunciadas seria exigida com mais vigor.
Nesse sentido, levar a cabo a paga do suborno e a fuga seria negar toda uma
vida de justiça e virtude. Imaginemos com Sócrates.
De
fato, o filósofo não poderia ser um dos hóspedes de Critão, na Tessália – e eis
que Sócrates esbanja talento para as coisas das comédias, quando, referindo-se
à narração de sua fuga aos estrangeiros, mete-se num bergsoniano “surrão de
couro ou noutro disfarce habitual dos evadidos, e dissimulando esse jeito que é
o teu” (Platão, op. cit.) –
pois naquela terra ele estaria em meio a pessoas de pouco interesse pelas
questões da alma. Sofrível, portanto, seria a vida apegada com tanto temor à
existência, ridícula com muita exatidão, risível e digna de indignidades incontáveis, sujeita aos
favores de toda gente dissoluta pela glória de taças a extravasar vinho. Talvez
nem entre os dionisíacos beberrões, uma cidade sem lei consiga captar adeptos
para sua causa da não regularidade.
Enquanto
seus amigos estariam em uma condição de investigados pela Lei de Atenas,
correndo o risco de perderem os
direitos de cidadãos, o imaginário Sócrates fujão faria uma peregrinação em
busca de uma terra com boas leis que o aceitasse, talvez Tebas ou Mégara.
Quando entrasse, porém, nessas cidades, os olhos dos cidadãos zelosos o
reconheceriam como o inimigo das
instituições, destruidor de leis e, por conseqüência de qualidades
devastadoras e para vitória dos juízes atenienses, o corruptor de jovens e levianos. Em demanda ainda de um lugar
para fundear, decidisse quiçá por uma cidade sem as tais boas leis, nem bons homens, nem bons
costumes. Quem sabe se o filósofo pudesse, enfim, confirmar na prática, a idéia
de que o povo é regido pelo acaso,
e sendo incapaz de praticar os maiores
males, também o é para os
maiores benefícios? Estando a imaginação a correr solta, tomemos a
seqüência do inventor da maiêutica
tentando entrar em contato com os habitantes de uma terra de ninguém e a
discorrer sobre “o supremo valor que têm para a Humanidade a virtude, a
justiça, assim como a legalidade e as leis” (Platão, op. cit.). Claro que imaginação prezada é imaginação não
represada, portanto, caracterizemos o povo tal como os bárbaros da Trácia... pobre Sócrates!
À
parte a fantasia, a trajetória inventada por Sócrates leva a conclusões muito
sólidas, sustentadas por sua vida de coerência e retidão. Assim, mostra que a
fuga nessas circunstâncias desenha-se ao modo de caricatura, isto é, torna
horrorosa a imagem dele mesmo e a de seus amigos, e também a de sua pátria, uma
vez que, assim procedendo, foge aos compromissos firmados desde que
convencionara submeter-se às Leis. Essa atitude acarreta a retaliação também
por parte das Leis do Hades, pois são irmãs das de Atenas e zelam por elas. Eis
porque o filósofo prefere não colocar a sua existência acima da existência da
justiça, pois diante do grande Tribunal do Hades quer se pôr e permanecer
justo, sem necessitar de dar explicações ao injustificável. Desse modo, o final
dessa história é feliz.
Para
finalizar, deixemos só notado que o bom humor de Sócrates nos últimos dias
de sua vida é surpreendente e, após um possível trabalho de pesquisa de aprofundamento,
talvez tenhamos condições de criar, a partir de Critão, uma comédia leve e
apologética. Com a abertura das cortinas,
o protagonista dormindo em sua cela, tendo ao lado seu Daimon também em sono
profundo, surge a mulher formosa sob a luz de pino, anunciando a chegada do
navio de Delos... Esperemos que essa obra menor tenha a aprovação do
grande empreendedor da ironia.
* Acadêmico do Curso de Filosofia (UEM)