Ano I - Nº 02 - Julho de 2001 - Bimensal - Maringá - PR - Brasil - ISSN 1519.6178
A
Literatura em busca de um conceito*
Alan
Ricardo de Amorim**
ResumoO objetivo do presente artigo é o de realizar uma reflexão acerca da natureza e da função da literatura como meio de aquisição de conhecimento e humanização do leitor. Para tanto, serão expostas e analisadas algumas teorias de alguns dos mais importantes estudiosos do assunto na atualidade.Palavras-chave: Teoria da Literatura / Literatura/ Conceito
Desde
os primeiros tempos em que o homem começou a estudar a arte por ele mesmo
produzida, a questão sobre concepção e função da literatura tem sido assunto
de muitas controvérsias. Durante o processo de evolução cultural do homem,
muito se tem discutido a respeito do assunto aqui abordado. Sabe-se, pois,
que, em cada época literária, são atribuídas à literatura natureza e funções
distintas, condizentes com a realidade cultural e, portanto, social, da época.
As pesquisas realizadas no projeto de iniciação
científica O Ensino da Literatura: teoria
e prática, levaram ao estudo de
conceitos e funções atribuídos à literatura por teóricos do século XX, uma
vez que são esses conceitos aceitos mais amplamente que aqueles formulados
por teóricos de outras épocas.
As
pesquisas iniciaram-se por uma leitura crítica da obra do semiologista francês Roland Barthes, intitulada
Aula (BARTHES, 1978). Esta obra
é a edição em livro de sua aula inaugural, ministrada pela ocasião de sua
elevação à Cátedra de Semiologia no Colégio de França. Tem ela um caráter
essencialmente formalista, uma vez que expressa a opinião de um estudioso
da linguagem e não da literatura. Mas, como tal, Barthes demonstra um amplo
conhecimento no campo da linguagem e, como não poderia deixar de ser, de uma
de suas vertentes: a linguagem literária.
Roland
Barthes tem, da linguagem, uma visão eminentemente social e vê, nela, a expressão
do puro poder social a que todos estamos submetidos: Esse
objeto em que se inscreve o poder, desde toda eternidade humana, é: a linguagem
– ou, para ser mais preciso, sua expressão obrigatória: a língua. (BARTHES, 1978:12). Barthes vê, pois, na língua,
um objeto de submissão e, fatalmente, de alienação. Diz ele que, por estarmos
todos aprisionados irremediavelmente às estruturas lingüísticas, uma vez que
devemos nelas enquadrar nossos pensamentos, somos todos escravos da língua. Diz ainda: ...a língua, como desempenho de toda linguagem,
não é nem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente: fascista; pois
o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer. (id., ib., p. 14). Dessa forma, de acordo com a teoria
de Barthes, uma vez que a língua leva à aceitação obrigatória de suas estruturas
para a completa comunicação, ela faz parte de uma estrutura de poder a qual
todos estão submetidos, obrigados.
O
ser humano parte sempre, e todas as suas ações o dirigem para tal caminho,
em busca da liberdade. Então, quando se considera que a liberdade é uma desvinculação
total do poder a que se é submetido, dentro do universo lingüístico não há
maneiras de ser livre. Só resta, pois, ao homem, a fuga da linguagem por meio
de uma trapaça lingüística utilizando-se da própria língua: Essa trapaça, salutar, essa esquiva [...],
eu a chamo, quanto a mim: literatura. (id., ib., p.
16).
A
concepção de Roland Barthes de que a literatura é a utilização da linguagem
não submetida ao poder, deve-se ao fato de que a linguagem literária não necessita
de regras de estruturação para se fazer compreender. Enquanto a utilização
da linguagem cotidiana requer uma estrita obediência de sua estrutura – deve-se
enquadrar o pensamento nas estruturas lingüísticas, para que haja uma perfeita
comunicação -, a linguagem literária não obedece a qualquer regra estrutural
fixa. O autor, que se utiliza dessa linguagem, não é obrigado a emoldurar
seus pensamentos nas estruturas lingüísticas; ele é livre para escolher e
criar uma estrutura própria, que proporcione a ele uma clara expressão de
seus sentimentos e idéias. Assim, construindo o texto de acordo com seus próprios
desejos, o escritor consegue que sua criação tenha uma novo valor – passa
da simples utilização comunicativa da linguagem à uma utilização artística
da mesma – e um novo poder. O poder assumido pela nova linguagem é um poder
ligado ao novo valor artístico. A linguagem literária assume aspectos de representação
e demonstração. Através dessa linguagem, pode-se refletir sobre a própria
língua com liberdade. A linguagem literária permite que as palavras assumam
vida própria, com novas significações que não aquelas a elas conferidas usualmente.
A linguagem passa a ter “sabor”. Enquanto no discurso científico a linguagem
é direta e não permite ambigüidades, na linguagem literária as palavras assumem
novos significados e representações.
Como
se verá mais adiante, uma das funções da literatura é a representação do real.
Esta representação, no entanto, é feita de um modo especial, uma vez que o
real não pode ser plenamente representado em um plano unidimensional por ter
uma natureza distinta, pluridimensional. Assim, Barthes diz que a literatura
é utópica, pois permite a criação de novas realidades, conferindo às palavras
uma verdadeira heteronímia das coisas. Essa
heteronímia pode ser melhor entendida quando se pensa que esta linguagem, como já dito anteriormente, é livre para conferir
novos significados às palavras. Ela joga com os signos ao invés de reduzi-los
a um universo já determinado.
Como
dito acima, a literatura tem como uma de suas funções a representação do real.
Assim é que o crítico e sociólogo
Antonio Candido constrói o seu conceito de literatura:
A arte, e portanto a literatura, é uma transposição do real para o ilusório por meio de uma estilização formal da linguagem , que propõe um tipo arbitrário de ordem para as coisas, os seres, os sentimentos. Nela se combinam um elemento de vinculação à realidade natural ou social, e um elemento de manipulação técnica, indispensável à sua configuração, e implicando em uma atitude de gratuidade.. ( CANDIDO, 1972:53).
Na
citação acima, Candido fala da indispensável presença de um elemento de manipulação
técnica, o qual é fator determinante para
a classificação de uma obra como literária ou não. Esse elemento, entende-se,
é a linguagem classificada por Barthes como a linguagem literária, a qual estabelece uma nova ordem para as coisas
representadas, mantendo uma ligação com a realidade natural. Embora a literatura
permita a criação de novos universos, esses são baseados, ou inspirados, na
realidade da qual o escritor participa. Daí a afirmação de que a literatura
é vinculada à realidade, mas dela foge através da estilização de sua linguagem.
Também Marisa Lajolo afirma que a linguagem tem um papel determinante na classificação
de uma obra como literária:
É a relação que as palavras estabelecem com o contexto, com a situação de produção da leitura que instaura a natureza literária de um texto [...]. A linguagem parece tornar-se literária quando seu uso instaura um universo, um espaço de interação de subjetividade (autor e leitor) que escapa ao imediatismo, à predictibilidade e ao estereótipo das situações e usos da linguagem que configuram a vida cotidiana. (LAJOLO, 1981:38).
Percebe-se,
portanto, que a função exercida pela linguagem é de suma importância para
que uma obra seja tida como obra de arte literária.
Como
já se sabe, essa linguagem assume características especiais. Umberto Eco,
fala de idioleto da obra, quando
se refere a tal linguagem. Esse idioleto pode ser interpretado como as características
assumidas pela linguagem literária dentro de uma determinada obra. Ele é responsável
pela estruturação dos significados da linguagem: Essa regra, esse código da obra, em linha de
direito, é um idioleto (definindo-se como idioleto o código privado e individual
de um único falante).(ECO, 1981:59). Esse código característico de cada obra, pode causar no leitor,
por este não estar familiarizado com suas regras, aquilo que Eco denomina
de efeito de estranhamento. Por estar o leitor
habituado às formas rígidas de estruturação da linguagem, quando se lhe apresenta
uma nova estrutura, este a olha com considerável estranheza, e, para compreendê-la
bem, passa a reconsiderá-la, procurando sua significação particular: A
arte aumenta a “dificuldade e a duração da percepção” [...] e o fim da imagem
não é tornar mais próxima da nossa compreensão a significação que veicula,
mas criar uma significação particular do objeto. (op. cit.,
p.71).
Estando
a literatura ligada à demonstração do real, esta assume algumas funções que
atuam diretamente no homem, pois que exprime o homem e, depois, volta-se para
sua formação, enquanto fruidor dessa arte. Antonio Candido, em A literatura e a formação do homem (CANDIDO,
1972) identifica três funções exercidas pela literatura, as quais, em seu
conjunto, denomina de função humanizadora da literatura.
A
primeira das funções por ele identificadas é chamada de função psicológica, em virtude de sua ligação estrita com a capacidade
e necessidade que tem o homem (no conceito mais amplo do termo) de fantasiar.
Essa necessidade é expressa através dos devaneios em que todos se envolvem diariamente, através
das novelas, da música e do fantasiar sobre o amor, sobre o futuro, etc. Conforme
Candido, dessas modalidades de fantasia, a literatura seja, talvez, a mais
rica.
As
fantasias expressas pela literatura, no entanto, têm sempre sua base na realidade,
nunca são puras. É através dessa ligação com o real, que a literatura passa
a exercer sua segunda função: a função formadora.
A
literatura atua como instrumento de educação, de formação do homem, uma vez
que exprime realidades que a ideologia dominante tenta esconder:
A literatura pode formar; mas não segundo a pedagogia oficial. [...] . Longe de ser um apêndice da instrução moral e cívica, [...], ela age com o impacto indiscriminado da própria vida e educa como ela. [...]. Dado que a literatura ensina na medida em que atua com toda a sua gama, é artificial querer que ela funcione como os manuais de virtude e boa conduta. E a sociedade não pode senão escolher o que em cada momento lhe parece adaptado aos seus fins, pois mesmo as obras consideradas indispensáveis para a formação do moço trazem freqüentemente aquilo que as convenções desejariam banir. [...]. É um dos meios por que o jovem entra em contato com realidades que se tenciona escamotear-lhe. (op. cit., p. 805)
Através
da citação acima, pode-se claramente perceber o poder que tem a literatura
de atuar na formação do indivíduo, que pode, através da fruição da arte literária,
ter suas características moldadas segundo valores que não interessam à pedagogia
oficial que sejam propagados. Ainda nas palavras de Candido, a literatura
não corrompe nem edifica, mas humaniza
em sentido profundo, por que faz viver.(op. cit., p. 806)
A
terceira e última função, levantada por Antonio Candido, diz respeito à identificação
do leitor e de seu universo vivencial representados na obra literária. Esta
função é por ele denominada de função social.
Essa
função é que possibilita ao indivíduo o reconhecimento da realidade que o
cerca quando transposta para o mundo ficcional. Esse reconhecimento, no entanto,
pode causar uma falsa impressão, construindo um reconhecimento errôneo, quando
expressa uma realidade a qual o leitor não participa diretamente, causando-lhe
uma alienação. É o caso de obras que retratam personagens – algumas obras
do regionalismo brasileiro, por exemplo – acentuando suas diferenças em relação
ao mundo culto, que se quer propagar. Assim, o leitor não participa da realidade
em que a personagem está inserida, atuando apenas como observador, centrando
sua atenção na diferença cultural de seus universos (o culto e o rústico,
por exemplo), reconhecendo apenas a realidade de seu próprio mundo como verdade
absoluta. Por outro lado, essa função pode causar a integração do leitor ao
universo vivencial das personagens retratadas, quando expressa de maneira
fidedigna a realidade vivencial de suas personagens. Isso causa uma maior
integração entre leitor e personagem, que culmina na identificação de uma
realidade que não é a sua, mas que faz parte de uma cultura própria, diferente
daquela da qual participa. Essa integração faz com que o leitor incorpore
a realidade da obra às suas próprias experiências pessoais.
Ora,
se a literatura possui todas essas funções que dizem respeito estritamente
à formação intelectual do indivíduo e, conseqüentemente, seu bem estar psicológico,
ela deve ser enquadrada dentro da categoria de bens a que todos os seres humanos
têm direito a usufruiur. Pensando desta forma, Antonio Candido (CANDIDO, 1989:110),
retoma a concepção do dominicano Padre Louis-Joseph Lebret, que faz a distinção
entre bens compressíveis e bens
incompressíveis
Estão
enquadrados dentro da categoria dos bens compressíveis, aqueles que são perfeitamente
dispensáveis para a sobrevivência do ser. Aqui, encontram-se os cosméticos,
os enfeites, as roupas extras, e tudo o mais que seja fútil. Já, na categoria
dos bens incompressíveis, estão aqueles bens responsáveis pela sobrevivência
do indivíduo e por seu bem estar físico e psicológico, como o alimento, a
moradia, a saúde, a liberdade, a justiça, o direito ao lazer, à liberdade
de crença, de opinião e, enfim, e mais importante, o direito à instrução.
Se,
como se viu, a literatura promove no homem o desenvolvimento de sua intelectualidade,
proporcionando-lhe um equilíbrio moral e psicológico, bem como uma maior integração
com a realidade que o cerca, seja a que ele vivencie diretamente ou não, a
literatura deve, então, ser enquadrada dentro da categoria dos bens incompressíveis.
Diz Antonio Candido:
Pensar em direitos humanos tem um pressuposto: reconhecer que aquilo que consideramos indispensável para nós é também indispensável para o próximo. [...]. É necessário um grande esforço de educação e auto-educação a fim de reconhecermos sinceramente este postulado. Na verdade, a tendência mais funda é achar que os nossos direitos são mais urgentes que os do próximo. (op., cit., p. 110).
É
necessário, como disse Candido, um grande esforço para que o homem reconheça
que, se temos direito à fruição da arte como parte responsável pela consolidação
de seu universo de conhecimento, também os menos privilegiados pela sociedade
têm o mesmo direito.
Fica
clara, assim, a importância que a literatura exerce no meio social, sobretudo
no homem participante e responsável pela manutenção desse meio.
Por
outro lado, a literatura só exercerá plenamente todas as suas funções, se
a ela for concedida a importância que lhe cabe, bem como um esforço de interpretação
e compreensão de seu significado mais correto. Essa interpretação e compreensão
resulta de uma ação a qual estamos todos efetuando no dia-a-dia, desde a mais
tenra idade: a prática da leitura.
* Artigo relativo ao Projeto de Iniciação Científica (PIBIC / CNPq – UEM) O Ensino da Literatura: teoria e prática, desenvolvido pelo autor sob a orientação da Profa. Dra. Alice Áurea Penteado Martha, em 1998 – 1999.
** Acadêmico do 5o. ano do Curso de Letras Português / Francês da Universidade Estadual de Maringá.
Referências Bibliográficas:
BARTHES, Roland. Aula. Trad. de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1978.
CANDIDO, Antonio. Direitos humanos e literatura. In.: FESTER, A. C. Ribeiro e outros. Direitos humanos e... . São Paulo: Brasiliense, 1989.
__________. A literatura e a formação do homem. Ciência e Cultura. 24 (9): 803-809, set, 72.
ECO, Umberto. A estrutura ausente. Trad. de Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 1971.
LAJOLO, Marisa. O que é literatura. São Paulo: Brasiliense, 1981 (Col. Primeiros Passos).