Por ADELGÍCIO RIBEIRO DE PAULA

Formado em Educação Física, graduando em Pedagogia pelo Centro Universitário Nove de Julho e pós graduando em Esporte Escolar pela Universidade de Brasília

 

_________

 

versão para impressão [arquivo PDF]

 

Clique e cadastre-se para receber os informes de atualização da Revista Urutágua
 

 

Violência das torcidas e racismo no futebol:

o que a escola tem com isto?

Adelgício Ribeiro de Paula

 

Resumo

O objetivo deste trabalho é fazer uma abordagem sobre a violência das torcidas e o racismo no futebol como conseqüências da exclusão provocada pelo modelo de sociedade e educação calcados no sistema econômico capitalista neoliberal, e a necessidade de uma abordagem reflexiva na escola.

Palavras-chave: educação, sociedade, futebol, exclusão, racismo e violência das torcidas .

Abstract

The objective of this work is to make a boarding on the violence of the twisted ones and the racism in the soccer as consequence of the exclusion provoked for the model who is based on a society and an education proceeding of the neoliberal capitalist economic system, and the necessity of a reflexive pertaining to school boarding. 

Keyword: education, society, soccer, exclusion, racism and violence of the twisted ones.

 

1 . Introdução

Nos últimos anos temos presenciado o aumento da violência no futebol, não apenas entre jogadores no nível profissional, mas principalmente entre torcedores e estudantes. Em  2004 dois casos graves que ocorreram em São Paulo tiveram repercussão nacional: o caso do estudante de 16 anos, torcedor corintiano, espancado por integrantes da Mancha Alviverde no mês de maio e o caso do torcedor do São Paulo Futebol Clube, também estudante, 17 anos, assassinado em setembro com um tiro dentro de um ônibus, supostamente por torcedores da Gaviões da Fiel, torcida organizada do Sport Club Corinthians Paulista. O que estas vítimas tinham em comum eram a alegria de viver, a adolescência em transição e, acima de tudo, freqüentavam uma escola.

Diante das contradições que o futebol apresenta, através de uma pesquisa numa escola pública da periferia da Grande São Paulo, os alunos das quintas e sextas séries do Ensino Fundamental foram levados a uma reflexão mais crítica sobre a violência que invade os estádios e o racismo presente no futebol. Duas pesquisas foram realizadas para melhor abordagem do tema na escola: uma bibliográfica e outra através de questionários junto aos alunos. Portanto, o professor de educação física e a escola devem desempenhar um papel importante na abordagem dos problemas recorrentes na sociedade, despertando no aluno a reflexão,  motivando-o e favorecendo oportunidades de inclusão na comunidade através do esporte.

2 . Educação e reprodução social

Durkheim mostra que na busca pela afirmação de sua identidade “cada tipo de povo tem um tipo de educação que lhe é próprio e que pode servir para defini-lo” (DURKHEIM, 1972, p.79). Esta mesma educação muda conforme mudam as necessidades e que estas necessidades mudam porque mudam as condições sociais das quais dependem as necessidades humanas. Há a compreensão que as múltiplas aptidões e necessidades que a vida social exige não podem se reproduzir simplesmente de maneira natural e hereditária. O sistema educacional pode criar no indivíduo um novo ser social, é no sistema educacional que o sujeito vai ser inserido num modelo de vida em sociedade, desenvolvendo formas de consenso ou pacto social, tendo oportunidades de experimentar e exercer certos padrões de sociabilidade, ou seja, a internalização da moral social e do grupo. Neste entendimento somente uma educação e uma cultura voltadas amplamente para o aspecto humanístico pode dar às sociedades modernas os cidadãos de que elas têm necessidade. De tal forma a sociedade, através da educação, forja em cada indivíduo o tipo humano adequado para sua conservação e sua sobrevivência. Não apenas idealiza o modelo que o educador deve formar como o constrói, “e o constrói segundo as suas necessidades” (DURKHEIM, 1972, p.81).

Assim a reprodução age como uma necessidade de garantir e renovar qualquer modelo de sociedade, e  esta tarefa  é atribuída à educação. A reprodução transforma o ser individual em ser social através de uma ação civilizatória da conduta humana, pelo processo de socialização, preparando o indivíduo para responder às necessidades da sociedade. Assim se reproduzem na sociedade os ideais, os valores, a cultura, a educação e o esporte que são próprios da classe dominante. A perpetuação e a transmissão são funções latentes que as classes cultas atribuem à instituição escolar, a saber, organizar o culto de uma cultura que pode ser proposta a todos (BOURDIEU, 1998, p.56).

Esses valores e ideais variam numa hierarquia que não se repete em momentos diversos da história. Houve um tempo, na Grécia Antiga, em que a coragem estava em primeiro lugar, aspirando todas as qualidades que a virtude militar implica no cidadão; hoje é o pensamento crítico e a reflexão, amanhã quem sabe que qualidade exaltará a virtude humana? O espírito crítico que hoje aspiramos foi durante muito tempo considerado perigoso para a ordem social. A educação é, portanto, o instrumento através do qual a sociedade renova perpetuamente as condições de sua própria existência (DURKHEIM, 1971, p.42).

Bourdieu (1998), ao falar sobre as desigualdades sociais, destaca que os mecanismos de eliminação e exclusão ocorrem durante toda a carreira escolar, por meio de democráticas oportunidades de acesso que nada mais são do que resultado de um processo de seleção discriminatório, cujo peso é exercido com rigor desigual sobre os indivíduos de diferentes classes sociais . Atribui uma grande responsabilidade à “escola” pela reprodução e pela legitimação das desigualdades sociais:

É provável por um efeito de inércia cultural que continuamos tomando o sistema escolar como um fator de mobilidade social, segundo a ideologia da “escola libertadora”, quando, ao contrário, tudo tende a mostrar que ele é um dos fatores mais eficazes de conservação social, pois fornece a aparência de legitimidade às desigualdades sociais, e sanciona a herança cultural e o dom social tratado como dom natural (BOURDIEU, 1998, p.41).

A reprodução da desigualdade torna-se tão eficaz que os objetivos das famílias reproduzem a estratificação social e os membros das classes populares tomam a realidade por desejos, baseando-se nas condições objetivas de vida e excluindo qualquer possibilidade de desejar o impossível  (BOURDIEU, 1998, p.47). É necessário que a escola e o esporte ofereçam oportunidades objetivas de êxito para que possa existir algum desejo razoável de ascensão, com esperanças mais objetivas, despertando nos sujeitos um ethos positivo de ascensão (BOURDIEU, 1998, p.49).

Podemos usar o futebol como analogia para os outros esportes, pois suas características apresentam uma fonte inesgotável de estudos e pesquisas de cunho sociológico, histórico e antropológico. Dentre as possibilidades que se destacam algumas despertam interesse social relevante, como a questão da ascensão social, a violência do atleta e do torcedor e o racismo emergente, todas conseqüências da exclusão.

O grito de guerra das torcidas organizadas ultrapassa os degraus das arquibancadas e os alambrados dos estádios de futebol, trazendo disfarçado apelo ideológico formado por razões e intenções que vão muito além do gosto pela prática do futebol, carregado de conteúdos preconceituosos e racistas. Apelo ideológico que nada tem que o identifique com as cores do clube ao qual faz alusão de identidade. Ideologia exacerbada que faz apologia à intolerância, que ao invés de reunir os iguais é eficaz exatamente por unir aqueles que são desiguais.

3 . Racismo no futebol

O futebol criou uma nova e intensa onda migratória mundial. Embora a quantidade de jogadores que são enviados ao exterior seja grande, proporcionalmente à população do país ela é muito irrisória, manifestando a exclusão existente no esporte. As oportunidades não alcançam a todos na mesma condição de igualdade. O futebol pode servir como estratégia para fortalecer as relações de classe entre os participantes, mas não significa que jogando futebol o indivíduo alcançará a ascensão social (SADI, 2004, p.27). E a educação física escolar tem contribuído para o desenvolvimento e perpetuação da desigualdade ao reduzir as chances dos excluídos de duas formas: ao privilegiar o esporte de alto rendimento voltado para as competições escolares ensinado, ainda hoje, nas práticas de ensino das Faculdades de Educação Física, e através de professores que simplesmente deixam uma bola de futebol com os alunos,  voltando as costas para a quadra, deixando-os ao lassez-faire sob o pretexto de uma suposta pedagogia de autonomia, um mero “fazer por fazer” (SADI, 2004, p.25) .

A presença de descendentes afros e jogadores originários das regiões periféricas tem sido cada vez menor, nos dias atuais, em clubes de maior expressão. Considerando que a maioria de nossos jogadores que vão para o exterior tem como destino a Europa, Ásia e Oriente, torna-se muito mais fácil para os clubes realizar suas transferências se eles forem brancos ou apresentarem traços culturais que facilitem a sua adaptação, se o jogador tiver ascendência é ainda mais fácil para o clube de destino naturaliza-lo no país, abrindo vagas para outros estrangeiros em seus quadros. Neste cenário em que o futebol é puramente negócio a inclusão da mulher é mais uma ilusão, pois o futebol feminino não tem futuro neste cenário voltado para o consumo.E mais: não bastasse a crescente exclusão, e ela é maior devido à ilusão da ascensão social através do futebol, surgem indícios das mais variadas formas de manifestações racistas e de intolerância (SADI, 2004, p.27).

O racismo tem se manifestado no futebol mundial de maneira cada vez mais explícita, através de atos de torcedores ou de jogadores. Em 1917, somente o Andaraí e o Bangu eram times multirraciais no Rio de Janeiro, porque havia um dilema para a elite dirigente do futebol carioca: manter a eugenia e perder para os paulistas ou reforçar o time e perder a pureza racial da organização de futebol do Rio. Era  aceitável um jogador “de cor” num clube de futebol, mas na seleção, que representava a fina flor da sociedade, era discutível (Agora São Paulo, 21 mar. 2005, caderno Vencer, p. B12). Em 1923 o Clube de Futebol e Regatas Vasco da Gama venceu o campeonato estadual do Rio de Janeiro com uma equipe composta por negros e mulatos, todos de origem pobre. Isto trouxe grandes preocupações e incomodou dirigentes e amantes do futebol de elite daquele tempo (AZEVEDO, SUASSUNA e DAOLIO, 2004, p.86).

Em 1938, após a vitória da Itália sobre o Brasil na semifinal da Copa do Mundo, os italianos manifestavam “saudamos o triunfo da inteligência itálica contra a força bruta dos negros”  (AGOSTINO, 2002, p.65). Outra manifestação, mais recente, foi em 2001, quando torcedores da Lazio exibiam faixas, slogans e hinos visando atacar aos jogadores Cafu, Aldair, Antonio Carlos Zago e Jonathan Zebina, com os dizeres “equipe de negros, corja de judeus” (AGOSTINO, 2002, p.249). Em 2004 várias situações mostravam o crescimento do racismo nos estádios europeus, entre elas o momento em que o técnico da seleção espanhola se dirige para seu jogador, o francês Thierry Henry, “fale para o negro: eu sou melhor do que você, negro di merda” (Agora São Paulo, 18 mar. 2005, caderno Vencer, p. B6).

Notícias deste ano, 2005, dão conta de manifestações mais evidentes e próximas de nós: em jogo válido pela Taça Libertadores da América de 2005, Quilmes, da Argentina, contra o São Paulo Futebol Clube, do Brasil, jogadores e dirigentes do clube brasileiro foram hostilizados. O jogador Grafite reclamou ter sido vítima de racismo: “O Sanchez me chamou de negro de m... e de macaco”. O fato resultou em manifestações dos dirigentes de clubes brasileiros e numa carta pedido de desculpas pelo clube argentino (Agora São Paulo, 18 mar. 2005, caderno Vencer, p. B1). No segundo jogo entre as duas equipes, desta vez no Estádio Cícero Pompeu de Toledo, Morumbi, em São Paulo, o jogador argentino Leandro Desábato foi detido pela polícia, no final da partida, para prestar depoimento após ser acusado de racismo pelo jogador Grafite, do São Paulo Futebol Clube. Este caso teve repercussão internacional, exigindo uma posição política do governo brasileiro. Em nota à imprensa o ministro do esporte, Agnelo Queiroz, e a secretária especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República, Matilde Ribeiro, repudiaram qualquer manifestação de preconceito, discriminação e xenofobia no esporte, considerando grave o incidente que levou à prisão do jogador argentino (BRASIL, 2005).

4 . O futebol e a violência das torcidas

O futebol tem caráter eminentemente moderno e urbano, cuja evolução está vinculada às condições históricas que marcaram o fim do século XIX e o início do século XX, atingindo  as diferentes classes sociais. Tão urbano é o fenômeno que faz parte do cenário o andar em bando, vestindo a camisa do time, diferenciando-se do todo e construindo para si e para o grupo uma nova forma de sociabilidade e de identidade (BAUDRILLARD, 1992, p.88).

Considerados os aspectos sociológicos e antropológicos, o esporte tem servido de instrumento para desvio de atenção da massa e atenuar as tensões sociais. Não apenas os governantes mas em todos os níveis hierárquicos os superiores têm usado o esporte como instrumento de manipulação e controle social (AZEVEDO, SUASSUNA e DAOLIO,  2004, p.62).

Hoje lucrativos loteamentos residenciais e industriais engolem terrenos onde outrora eram campinhos de futebol e as crianças e jovens passavam parte do dia jogando. Estes campinhos, que já serviram de referências nos bairros e cidades, deram lugar a estacionamentos ou galpões industriais. Uma análise mais aprofundada far-nos-á compreender que no sistema mundial atual, pelas suas características cada vez mais excludentes, o lugar das classes mais baixas da sociedade no âmbito do esporte é na arquibancada, como torcedor, atuando como “elemento passivo” diante do fenômeno do espetáculo esportivo (SADI, 2004, p.19). Mas analisando mais meticulosamente o capitalismo presente no futebol, este espaço também já tem dono: aquele que pode pagar por ele e consumir seus produtos.

Embora o esporte seja para todos, os controladores do futebol buscam um novo tipo de cliente, os “pós-torcedores”, sujeitos críticos, reflexivos e formadores de opinião, com potencial de consumo consciente. Estes por terem ação participativa maior são capazes de romper com a passividade das antigas e românticas torcidas e “abraçam” a cultura popular com mais facilidade ao invés de rejeitá-la, sendo consumidores culturais em potencial. Estão no centro da produção e do consumo presentes na mídia e na cultura do futebol (GIULIANOTTI, 2002, p.190).

Na interpretação de Taylor alienação dos torcedores apresenta uma característica tipicamente mundial: torcedor de classe operária, jovens de grupos subculturais, crescente violência urbana e resistência inicial a mercantilização no futebol. Sendo jovens de classe social baixa e excluída do acesso às melhores oportunidades sociais, formam em geral mão de obra não qualificada, de baixo nível educacional, gerando a cultura de arquibancada dos anos oitenta: racismo violento, sarcasmo cruel e poucas atrações românticas. São jovens fora da influência social de seu grupo familiar que se ligam a grandes grupos de companheiros com seus próprios valores subculturais (Taylor apud GIULIANOTTI, 2002, p.64).

O “hooliganismo”, surgido na Inglaterra, desenvolveu diferenças perdidas entre os trabalhadores, estabelecendo novas formas de sociabilidade e acirrando as desigualdades e hostilidades entre torcidas de agremiações diferentes, demonstrando uma visão de mundo expressa através de gestos, slogans e cantos transformando-se numa das mais extraordinárias experiências coletivas vivenciadas no universo dos estádios, momento privilegiado na projeção da sensação de pertencimento a um grupo (AGOSTINO, 2002, p.235).

A prática esportiva e mesmo de torcida constitui momento de expansão das pulsões primárias reprimidas pelo meio social cotidiano. É no coletivo da torcida que o indivíduo encontra a oportunidade de extravasar seus sentimentos e instintos reprimidos pela sociedade (AGOSTINO, 2002, p.20). E é na escola, instrumento da sociedade para moldagem do indivíduo, que esta repressão tem início e se manifesta com maior evidência.

Neste coletivo ele encontra identidade e afinidade para manifestar suas repulsas e fazer coisas que não faria isoladamente no seio da sociedade, seja por necessidade de tomar atitudes que o habilitem a pertencer ao grupo, seja por motivo de ritual de passagem (AGOSTINO, 2002, p.236). É a manifestação do sentimento de impotência e da frustração pessoal diluídas no coletivo das arquibancadas.

Na verdade a violência é inerente ao futebol desde seu período primitivo. O futebol é recheado de eventos legendários e históricos que apontam para o lado violento e agressivo de seus praticantes, nasceu como disputa dual, onde as equipes representavam grupos ou identidades coletivas, nações, localidades geográficas e culturas específicas. Até hoje predomina a oposição binária em que cada jogador está comprometido com uma batalha pessoal com o seu número oposto, o seu marcador, e seu desempenho num jogo e sucesso na equipe dependerá de sua capacidade de superar seu rival. Também em cada cidade estão presentes, geralmente, dois clubes de futebol, representando classes ou grupos diferentes. Neste antagonismo estão embutidas velhas questões de etnia e classe, expressando a animosidade entre a classe dominante (GIULIANOTTI, 2002, p. 189).

Há relatos históricos em que os jogadores participavam de partidas de futebol portando punhais que causavam ferimentos acidentais e intencionais não só nos adversários como em seus companheiros de equipe. Eram comuns socos, pontapés e golpes de lutas, ossos quebrados, ferimentos graves e morte (GIULIANOTTI, 2002, p. 17). O mais surpreendente é que o futebol era praticado nas festas religiosas representando ritual simbólico e figuras da elite dominante.

Numa perspectiva sociológica de Durkheim os aspectos primitivos do futebol servem para integrar o indivíduo no âmbito local e manter a ordem social. A integração do indivíduo funciona como um rito de passagem celebrado publicamente, confirmando a maturidade de jovens e adultos, aumentando o sentimento de solidariedade e de responsabilidade sociais, por exemplo: jogos entre casados e solteiros, cidade versus campo, cidade versus cidade, paróquia versus paróquia, escola versus escola (GIULIANOTTI, 2002, p.17). Não é sem propósito que as tabelas de jogos dos campeonatos esportivos prevêem jogos de “ida e volta”, em casa e fora de casa.

Numa análise taylorista, de perspectiva marxista, as causas da violência das torcidas de futebol estão relacionadas às “mudanças econômicas e sociais mais amplas” ocorridas no pós-guerra (Taylor apud GIULIANOTTI, 2002, p.63). A influência inglesa dominante na expansão da economia mundial e do futebol colaborou para a globalização da violência das torcidas. O futebol praticado enquanto classe operária, lá pelos românticos e históricos anos finais do século XIX e primeiras décadas do século XX, de âmbito local, envolvendo comunidades locais ou vizinhas, criava no torcedor-operário a falsa idéia de que ele exercia influência nas decisões do clube e considerava a agremiação como uma “democracia participativa”. Para a elite dominante que administra os clubes o espetáculo visa atrair expectadores consumistas e não satisfazer os torcedores apaixonados. A perda da influência direta sobre o clube marca o início da marginalização do torcedor (AGOSTINO, 2002, p.235). No mercado capitalista do esporte os clubes perdem a afetividade, porém ganham a fidelidade consumista do torcedor.  E o mesmo interesse opera nas ideologias das torcidas organizadas. 

O aparecimento da televisão contribuiu para difundir os gritos de guerra, os cantos, os símbolos, os emblemas e os slogans das torcidas, fazendo acirrar ainda mais os antagonismos ocultos, ampliando a “arena” de confronto (AGOSTINO, 2002, p.235).

No Brasil a história  das torcidas mostra-se culturalmente complexa e ilusória. Tendo origem na década de 40, era composta de indivíduos socialmente estabelecidos que foram substituídos ao longo dos anos pela cultura jovem, partidária e agressiva. Primeiro a torcida do Clube de Regatas Flamengo, no Rio de Janeiro, depois a torcida do Sport Club Corinthians Paulista, em São Paulo, constituíram-se em grupos que cresceram muito ao longo das décadas e estavam fortemente ligados ao hooliganismo europeu nos anos 80 e 90 (GIULIANOTTI, 2002, p. 85). A participação dos torcedores no futebol tornou-se mais “problemática em razão de um contexto mais complexo e dinâmico que aquele vivido pelos torcedores símbolos desde a década de 40” (TOLEDO, 1996, p.30). As torcidas latinas, do Brasil e do norte da Europa principalmente, são consideradas “carnavalescas” pelos estudiosos em sociologia do futebol por isso vale lembrar Bakhtin: “Os risos do carnaval sempre carregam consigo a possibilidade de violência” (Bakhtin apud GIULIANOTTI, 2002, p. 87).

5 . O que a escola tem com isto?

Que visão podemos ter sobre o esporte escolar neste processo de reprodução, uma vez que a Educação Física é um componente curricular desta educação que aí se efetiva? Muitas vezes somos surpreendidos seguindo à risca certos elementos tradicionais da prática esportiva e da educação física. A escola é o lugar na sociedade que deve permitir ao indivíduo o acesso às manifestações culturais e participação na construção de uma cidadania democrática. Dentro da escola, o esporte deve ser ensinado para todos, em igualdade de condições de participação, sem qualquer forma de discriminação. Na escola os comportamentos e as regras da sociedade são largamente difundidos e onde também podem ser contestados, e construídas as alternativas através dos valores educativos encontrados no esporte (Bento apud SOUZA & SCAGLIA, 2004, p.10).

A violência no futebol não se limita aos torcedores: envolve jogadores (profissionais que são, contra outros seus iguais), alunos contra alunos e professores contra professores. Nos jogos entre escolares as observações têm demonstrado que as menores ocorrências de agressão e violência são os casos envolvendo aluno-atleta contra aluno-atleta devido ao respeito entre iguais e quando perdura após os eventos revela outras origens como gangues e outras rivalidades mais antigas; aluno-atleta contra professor-árbitro pela dupla autoridade deste e técnico-professor contra árbitro pelo reconhecimento do domínio técnico deste e neutralidade nas relações diárias.

Os casos de média ocorrência são entre aluno-atleta contra árbitro por este ser, em geral,  externo à comunidade envolvida, portanto desconhecido e apresentar neutralidade. Os casos de maior ocorrência são aqueles que envolvem o técnico-professor contra o árbitro-professor, manifestando desrespeito entre iguais, deixando seqüelas graves após os eventos e influenciando negativamente os alunos.

A educação física e o esporte na escola devem ser experiências significativas e desejáveis, envolvendo o aluno no seu contexto social. Dentro desta perspectiva, em 2004 as aulas de educação física numa Escola Estadual da periferia da Grande São Paulo tiveram sua realização voltada para os projetos interdisciplinares da escola. Diante das ocorrências de violência na escola e a repercussão da morte de jovens torcedores em confrontos de torcidas após os jogos de seus times, no segundo semestre foi desenvolvida uma pesquisa entre os alunos das quintas e sextas séries, concluindo com momentos de discussão e reflexão sobre o assunto.

Inicialmente a curiosidade era para saber para quais times os alunos da escola torciam e, num primeiro momento, os alunos saíram em grupos pela escola, de sala em sala, e aplicaram um questionário a seus colegas, após explicarem os procedimentos para o preenchimento. Depois surgiu a necessidade de ampliarmos as informações, por isso esta pesquisa constou de um questionário com um total de dez perguntas. Numa delas:   Quantas vezes você já foi a um estádio de futebol assistir a um jogo profissional?  Nunca, uma vez, duas vezes, três vezes ou mais, o resultado mostrou que 84,5% dos 374 alunos pesquisados, na faixa de 11 a 14 anos, nunca foram a um estádio assistir uma partida de futebol profissional oficial. Apenas 9% estiveram num estádio de futebol uma vez e 2% três vezes.

Na pergunta Para qual time você torce? para levantar quanto ao time de preferência, 49,5% registrou torcer pelo Sport Club Corinthians Paulista (SP), 23% para o São Paulo Futebol Clube (SP), 12,5% para a Sociedade Esportiva Palmeiras (SP), 5,3% não torce por nenhum time, 3% se abstiveram e o restante foi distribuído entre Santos Futebol Clube (SP), Clube de Regatas Flamengo (RJ), Clube de Regatas Vasco da Gama (RJ) e Grêmio Foot Ball Portoalegrense (RS).

Estas três questões, Você gostaria de participar da torcida organizada do seu time? Você brigaria por causa do seu time? Você brigaria para defender a torcida organizada do seu time?, são analisadas conjuntamente porque apresentam uma relação estreita entre seus resultados. As respostas deveriam ser assinaladas objetivamente SIM ou NÃO e assim analisadas: enquanto 70% dos alunos assinalaram afirmativamente que gostaria de participar da torcida organizada de seu time, cerca de 47% brigaria para defendê-la e apenas 35,5% brigaria pelo próprio time. Não ficou evidenciada qualquer relação entre os números referentes às torcidas de equipes específicas com as ocorrências de violência nos estádios e jogos de futebol. Isto significa dizer que, embora cerca de metade dos alunos tenham o Sport Club Corinthians Paulista como o time de preferência, não seja esta a torcida mais violenta.

Pode-se constatar pela pesquisa escolar realizada que a maioria dos jovens raríssimas vezes tem oportunidade de ir a um estádio assistir um jogo de futebol oficial; poucos não tem preferência em torcer para algum time; embora a maioria gostaria de integrar a torcida organizada de seu time, cerca da metade destes brigaria por ela. Percebe-se que a relação de fidelidade é maior pela torcida organizada do que pelo clube. Outra informação que aparece é a ocorrência de torcida para equipes de outros estados ou regiões longínquas, fora da familiaridade dos alunos.

Vale destacar o caráter pedagógico e que foi o mais importante neste trabalho: ao saírem de classe em classe distribuindo e recolhendo os questionários, os alunos passaram por uma experiência de introdução à metodologia da pesquisa, necessidade fundamental aos estudantes tão carentes de perspectivas e motivação nos dias atuais.

6 . Considerações finais

Confirmando a lógica globalizante mundial, está acontecendo aqui o mesmo que ocorreu na Europa, principalmente na Inglaterra. Os problemas de violência que atingiram seu ápice, nos anos sessenta, despertando a atenção e grandes preocupações na Europa, só foram sentidos no Brasil a partir de 1974, com o advento da transmissão de jogos pela televisão e a profusão de torcidas organizadas, passando nos anos seguintes pelos mesmos aspectos e mesmas tentativas de solução ocorridas na Europa, tanto no âmbito político quanto policial.

No contexto da violência e rivalidade no futebol, entre torcidas e nações, é preocupante o evento em que Carlos Alberto Parreira, técnico da seleção brasileira de futebol, toma água que lhe foi servida  por um comediante argentino. O fator mais relevante foi a revelação, e a televisão mostrou, de que jogadores argentinos cuspiram no galão de água, supostamente o mesmo que fora oferecido ao técnico brasileiro. Encarado no início de forma jocosa por um programa humorístico da televisão argentina, o evento remonta a um episódio antigo de partida válida por Copa do Mundo em que jogadores brasileiros foram dopados após beberem água oferecida pelos argentinos. Também nos faz lembrar uma partida de tênis válida pelas oitavas de final do Aberto da Austrália de 2005, em que o argentino Juan Ignácio Chela, derrotado, deu uma cusparada em seu adversário.

O mais preocupante é sabermos que, mesmo em tom humorístico, certos jargões, práticas e atitudes do futebol ganham o cotidiano do povo e invadem a escola. Uma cusparada no chão, no adversário ou num galão de água, e outros gestos de desagravo demonstram sinais de incivilidade e que beiram à barbárie. São atitudes e comportamentos que deseducam a sociedade. Torna-se, portanto, imprescindível “educar o soberano”, preocupação manifestada por Tamarit (1996) ao referir-se à educação como “uma série de práticas dirigidas à formação integral do homem, à sua plena humanização” (TAMARIT, 1996, p.58 e 64) e referindo-se à inquietude de Sarmiento, compartilhada também por Mitre, sobre a necessidade de “educar o maior número possível de ignorantes para que a barbárie não vença” (Mitre apud Tamarit, 1996, p.58).

Portanto o professor de educação física e a escola devem desempenhar um papel importante na abordagem dos problemas recorrentes na sociedade, despertando no aluno a reflexão,  motivando-o e favorecendo oportunidades de inclusão na sociedade através do esporte. Devem, portanto, estar bem preparados não apenas nas especificidades do esporte mas também nas questões sociais emergentes que caracterizam a comunidade onde atuam. Assim poderão integrar a atividade física e o esporte ao cotidiano  da escola e da população com a qual se relaciona. A preocupação da Escola deve ser contribuir com a formação do homem enquanto cidadão, através de um processo pedagógico humanizante. Assim o cidadão será formado e capaz de organizar e praticar o lazer com maior aproveitamento, difundindo-o na comunidade. Num mundo em que a  violência é barata e, às vezes, gratuita, a paz custa vidas.

7 . Referências Bibliográficas:

AGOSTINO, Gilberto. Vencer ou morrer: futebol, geopolítica e identidade nacional. Rio de Janeiro: FAPERJ-Mauad, 2002.

AZEVEDO, Aldo Antonio de; SUASSUNA, Dulce; DAOLIO, Jocimar. Aspectos Socioantropológicos do Esporte. In: BRASIL, Ministério do Esporte. Esporte e Sociedade. Brasília: Universidade de Brasília/CEAD, 2004.

BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal: ensaio sobre fenômenos extremos. Campinas: Papirus, 1992.

BOURDIEU, Pierre. A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura. In: NOGUEIRA, Maria Alice e CATANI, Afrânio. Escritos de Educação. Petrópolis,RJ: Vozes, 1998.

BRASIL, Ministério do Esporte e Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da república. Nota à imprensa. Brasília, 14 abr. 2005.

DURKHEIM, Emile. A educação como processo socializador: função homogeneizadora e função diferenciadora. In: PEREIRA, Luiz e FORACCHI, Marialice Mencarini (orgs.). Educação e sociedade – leituras de sociologia da educação. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971.

___________. Educação e sociologia. São Paulo: Melhoramentos, 1972.

GIULIANOTTI, Richard. Sociologia do futebol – dimensões históricas e socioculturais do esporte das multidões. São Paulo: Nova Alexandria, 2002.

SADI, Renato Sampaio. Esporte, política e sociedade. In: BRASIL, Ministério do Esporte. Esporte e Sociedade. Brasília: Universidade de Brasília/CEAD, 2004.

SOUZA, Adriano de e SCAGLIA, Alcides José. Pedagogia do esporte. In: BRASIL, Ministério do Esporte. Dimensões Pedagógicas do Esporte. Brasília: Universidade de Brasília/CEAD, 2004.

TAMARIT, Jose. Educar o soberano: crítica ao iluminismo pedagógico de ontem e de hoje. São Paulo: Cortez – Instituto Paulo Freire, 1996.

TOLEDO, Luiz Henrique. Identidades e conflitos em campo: a guerra do Pacaembu. São Paulo: USP, 1996, Revista USP, n. 32, p.30.

Jornais

ESPANHA inaugura pacote inédito contra o racismo. Agora São Paulo, São Paulo, 18 mar. 2005, caderno Vencer, p. B6.

RACISMO. Agora São Paulo, São Paulo, 21 mar. 2005, caderno Vencer, p. B12.

SÃO PAULO sofreu na Argentina. Agora São Paulo, São Paulo, 18 mar. 2005, caderno Vencer, p. B1 e B9.

 

©Copyright 2001/2005 - Revista Urutágua - revista acadêmica multidisciplinar
 Centro de Estudos Sobre Intolerância - Maurício Tragtenberg

Departamento de Ciências Sociais
Universidade Estadual de Maringá (UEM)
Av. Colombo, 5790 - Campus Universitário
87020-900 - Maringá/PR - Brasil - Email: rev-urutagua@uem.br 

Publicada em 03.12.04 - Última atualização: 13 agosto, 2005.