Crianças
e Adolescentes de Rua Abrigados: Uma Etnografia
Vitor
Paulo Pereira Junior
Resumo:
O
presente artigo consiste em uma etnografia, baseada no método da
antropologia participante, realizada em trabalho de campo. Meu locus
foi o Abrigo Municipal de Maringá, no qual trabalhei como
Educador de Base, pela Prefeitura, de agosto de 2002 a setembro de
2003.
Unitermos:
Abrigo, Criança, Adolescente, História de Vida, Rua.
Abstract:
The
present article consists in ethnography, based on participant
anthropology method, achieved on field work. My locus was
the Maringá Municipal Shelter, in which I worked as Basic
Educator, for the town hall, from August of 2002 to September of
2003.
Keywords:
Shelter, Child, Teenager, Life History, Street.
|
Introdução
O
Abrigo Provisório Municipal da Prefeitura de Maringá é uma instituição
de regime aberto
que serve para acolher crianças e adolescentes de até 17 anos de idade
que se encontrem em “situação de risco” ,
por tempo determinado, até serem tomadas as medidas políticas e legais
cabíveis no que se refere ao retorno do menor a sua família de origem,
e, quando isso não é possível após todas as
tentativas dos órgãos competentes, o menor pode ser
encaminhado para uma família substituta.
Na
prática, a realidade é outra. Devido à lentidão e a falta de pessoal e
recursos necessários – sem contar com a diferença de direção entre
uma gestão municipal e outra - o menor pode permanecer no Abrigo por
muito tempo, mesmo até completar 18 anos, quando é hora de ser
encaminhado para uma instituição para maiores de idade.
O
Abrigo de Maringá consiste em uma casa, com capacidade máxima para 20
internos, de ambos os sexos, e funciona vinte e quatro horas por dia, uma
vez que os internos temporariamente residem lá. Os quartos são divididos
por sexo, e entre os do mesmo sexo, pela idade, pela opção sexual, pelo
comportamento ou o que a direção melhor considerar. Para tanto, os
funcionários loteados para cuidar desses internos revezam-se em escalas,
chamadas de plantão, de 12 horas de trabalho por 36 de descanso,
ininterruptamente, incluindo fins-de-semana e feriados. Esses são os
Educadores de Base, cargo público próprio para funções desse tipo.
Atualmente, o Abrigo também conta com uma Psicóloga e com uma Pedagoga,
sendo dirigidas por uma Assistente Social. Também fazem parte integrante
da manutenção do Abrigo os Auxiliares de Serviços Gerais, divididos nas
áreas de limpeza e de cozinha, também com escala de revezamento, e por
um Auxiliar Administrativo, que cuida da parte burocrática da instituição.
Tudo no abrigo é mantido pela Prefeitura, que também é o tutor temporário
desses internos. O regime de abrigo foi criado por lei específica, e segue
o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Definido
o abrigo, ou seja, o local deste meu trabalho de campo, de minha
etnografia, prosseguirei agora com minha primeira experiência lá.
Como
já mencionei, o abrigo acolhe crianças e adolescentes de até 18 anos de
idade. O município já chegou a acolher até um bebê sozinho de apenas
oito meses de idade. Em contrapartida, abriu também exceções para a
estadia e permanência de maiores de 18 anos.
Antes
de eu ir trabalhar no abrigo, educadores amigos meus já haviam falado
dele para mim, tanto positiva como negativamente, mas nada supera a experiência
real. E lá chegou a hora de ir conhecer meu novo local de trabalho.
Um
dia antes de começar, eu e uma recém-contratada educadora fomos chamados
pela diretora da época para conversarmos antes com ela. Seria a primeira
vez que entraria em um abrigo. Como seriam os menores de lá? Aliás,
menores que não podem ser chamados de “menores”, pois era um termo
inadequado, gerava discriminação; eles eram apenas as crianças e
os adolescentes. Mas, como eram eles? “Criminosos”,
“mal-encarados”, “cheios de ódio pela sociedade”? Como deveria eu
me vestir? Como deveria agir para ser aceito? E, o principal, como não
demonstrar medo?
Então
coloquei minha camisa regata, vesti minha bermuda, coloquei um boné, não
fiz a barba, e fui. Quando eu cheguei no
escritório, as educadoras de plantão me olharam estranho. Tudo bem que
ninguém me conhecia, mas me olharam muito estranho. A copeira passou por
mim, deu um bom-dia e entrou na cozinha: “Dona Zilda, bota mais água no
feijão aí, que chegou mais um moleque”. Acharam que eu era mais um
interno que acabara de chegar! Mas não, era apenas mais um educador, quem
diria. Tive que me apresentar para todos, a fim de que não restasse
nenhuma dúvida quanto a isso.
Iniciei
no turno da noite por dois meses, e depois passei a trabalhar de dia, o
que é muito mais cansativo, uma vez que os internos estão acordados, e
bem acordados.
Os
Abrigados
Foi
no abrigo que muitos preconceitos me caíram. Uma coisa é você dizer que
não é contra homossexuais e “prostitutas”, contra traficantes e
“viciados”, contra assaltantes, enfim, e outra coisa é você passar
praticamente todo o seu dia ao lado de pessoas que optam pelo mesmo sexo,
de pessoas que são as chamadas profissionais do sexo, e com dependentes
químicos, conversando, ouvindo, separando brigas, convencendo-os a não
saírem para se drogar, ou para se prostituir. Muitas máscaras caem
quando você participa do mundo deles, encara-o frente a frente, conhece
seu passado, palpita seu futuro, imagina se não faria o mesmo se
estivesse no lugar deles, mas você não é um deles, não é aceito por
eles. É apenas mais um ouvinte, mais um a
passar pela vida deles.
A
história de vida de cada um deles é especial, mas sua origem segue um
certo padrão. Primeiramente, não é segredo que todos fazem parte de famílias
de baixa renda. Uma boa parte são filhos de profissionais do sexo,
vulgarmente conhecidas como prostitutas. Elas, algum dia, tiveram uma relação
mais afetiva com algum homem, e acabaram engravidando dele. Ao darem a luz
a seus filhos, continuam com seu trabalho, ou deixando a criação da
criança nas mãos de uma amiga, ou deixando com o pai, que, geralmente não
consegue nem quer assumir esse encargo. Outro caso, mais comum que esse,
é o de pais que se separam. A criança fica com a mãe, que rapidamente
arranja um companheiro, o qual, em geral, rejeita o enteado. A mãe
prefere se submeter ao seu amasiado a dar razão ao filho, pois precisa de
sustento e carinho. Um terceiro caso bastante comum também é o de pais
alcoólatras, e pais que abusam sexualmente de seus filhos, ou os dois. E
há os filhos de pais traficantes de drogas.
Em
todos os casos, a criança fica sem parâmetros, e busca satisfação nas
ruas. Por viverem mais na rua do que na própria casa, usamos o termo “de
rua”, ou melhor, “em situação de rua”
para distinguir a criança ou o adolescente que não mora mais com seus
responsáveis, ou nem é aceito por eles. Vivem, portanto, na rua, ou em
situação de rua.
Todos
os adolescentes e crianças que passam pelo abrigo já cometeram pequenos delitos,
chamados de Atos Infracionais
e já experimentaram algum tipo de droga. Se
isso ainda não aconteceu, é no abrigo, sob influência dos
demais, que o interno pode chegar a experimentar algum tipo de droga. É
muito difícil alguém usar algum tipo de droga dentro do abrigo, mas não
é impossível, no entanto, se algum deles quer se drogar, simplesmente se
evade da casa e retorna após ter se drogado. A droga mais popular de
todas é o thinner. É geralmente a primeira que experimentam, e é
muito barata, chegando a quatro reais a lata. Podem iniciar seu uso até
com cinco anos de idade. Em seguida vem a maconha. Aqueles que têm mais
desenvoltura para cometer furtos, evoluem para drogas mais caras como a
cocaína e o crack. Mas não conheço nenhum caso de alguém ser
usuário de injetáveis. E o cigarro comum, em si, não é hábito de
todos.
É
na rua também que sua libido sexual se aflora mais cedo. Sem repressões,
seus impulsos não seguem muitos critérios. A vida sexual deles pode começar
com onze ou até dez anos de idade, isso quando se trata de relações
heterossexuais. Como a lei que vigora nas ruas é a lei do mais forte ou o
mais malvado, é comum meninos de até seis anos
serem explorados pelos mais velhos.
O
homossexualismo dos meninos heterossexuais é explicado na seguinte lógica:
o ativo não é considerado homossexual, e sua masculinidade permanece,
mas é o passivo que é considerado o homossexual, a mulher da relação. Isso
também ocorre nos que assumem a sua homossexualidade, mesmo entre os que
fazem programas.
Quanto
às meninas, elas geralmente sentem atração por homens mais velhos, mas
nada impede que elas tenham relações com seus amigos. Uma adolescente é
bastante abusada quando está sob efeitos das drogas, pois todo o grupo de
meninos ao seu redor poderá fazer literalmente uma fila para ter relações
com ela. Não é preciso dizer que, desse jeito, mesmo com toda a informação,
muitos acabam contraindo doenças sexualmente transmissíveis. Houve até
um caso em que um adolescente contraiu AIDS de uma conhecida, enquanto não
estava em situação de abrigo. Quando descobriu, dentro do Abrigo, entrou
num estado longo de depressão e tentou se matar várias vezes dentro do
abrigo, com talheres. Não obstante, escondeu das novas parceiras que era
portador e continuou tendo relações com outras adolescentes.
Passando
para a questão da violência,,
todos eles facilmente passam do estado de controle para o descontrole.
Brigam muito entre si e ficam muito nervosos quando suas vontades são
barradas pelos educadores. Não há acepção de adversários: os pequenos
enfrentam os grandes, os meninos enfrentam as meninas e vice-versa, e até
o educador não deixa de ser alvo de um repentino furor, quando surge uma
situação.
A
maioria deles sofreu violência física em casa, e, se não, na rua, e, se
não, no abrigo. Lá vigora a lei do mais forte, do mais “bandidão”,
é a esse que os demais irão respeitar. E temer. Vou contar certas situações
eventuais de violência. Certa vez, eu não
tinha como levar um abrigado de oito anos ao bosque, que insistia
copiosamente. Foi explicado a ele que não seria possível, devido a
estarmos apenas em número de dois educadores e o outro não poderia ficar
sozinho com os demais abrigados. Ele se sentiu tão rejeitado que sua
resposta foi vir para cima de mim com uma faca para carne na mão, que
havia pegado na cozinha, a fim de convencer-me. Depois de muita
conversa, ele deixou a faca. Só então minhas pernas começaram a tremer.
Mas há casos em que não dá tempo de uma negociação.
Em
outra Ocasião, durante o almoço, uma adolescente começou a brigar com
um outro adolescente e ela achou que resolveria a situação arremessando
os pratos na parede. Ele achou que seria conveniente devolver os elogios
arremessando as cadeiras contra ela, e nessa troca de presentes, a
retribuição de mana acabou só com a chegada da polícia. É, a
polícia só pode ser acionada nesses casos extremos. A última vez que
tive ciência da abordagem da polícia no abrigo foi há alguns meses,
quando quatro meninos ameaçaram uma adolescente de morte. Eles tentaram
“apavorar o setor” e passaram a noite na 9ª S.D.P.
Além
da violência por retaliação, há a brincadeira violenta. De tempos em
tempos alguém ressuscita uma brincadeira chamada Tereza.
Consiste em enrolar um papel higiênico nos pés de alguém que está
dormindo e atear fogo. A queima é instantânea. Esse ato é comum nas
cadeias, como punição de um companheiro de cela que vacila em alguma
situação. No abrigo, os internos que o praticaram o viam como motivo de
brincadeira.
Os
abrigados, em geral, oferecem muita resistência aos estudos e a freqüentar
escolas. Não se sentem estimulados a se emanciparem e mudarem de vida,
pois além de toda essa bagagem de sofrimento, estão passando pelo período
turbulento da adolescência mesmo. A maioria não consegue terminar cursos
profissionalizantes oferecidos pelo município, não consegue realmente
ficar parada em um único lugar nem que seja por 40 minutos. São muito
ansiosos e inquietos.
Mas
apesar de tudo, adoram conversar. Eles têm
muito a contar de suas aventuras e de seus sofrimentos. Não têm a
menor vergonha de revelarem seus mais íntimos segredos e fraquezas,
apesar de “durões”, pois, com a abordagem
adequada,
eles despejam confiança no educador e podem revelar qualquer coisa. Até
mesmo os garotos e as garotas de programa, que amam mesmo contar suas
aventuras noturnas, de como escaparam do cliente armado que queria assaltá-los,
de como assaltaram o cliente desarmado; quem são os políticos, advogados
e os donos de clínicas que compram drogas e saem com garotas e garotos de
programa sem a família desconfiar... Enfim, é
muito fácil conhecer esse mundo, e é mais fácil ainda entrar nesse
mundo; ele é mesmo muito acessível, a qualquer camada da população, a
qualquer hora do dia, em qualquer mocó
(casa abandonada que passa a servir de morada para a população de rua).
O difícil é sair dessa vida, porque isso traz uma renda suficiente para
sobreviver, sem precisar passar metade da vida na escola.
Os
abrigados não cansavam de contar como era fácil conseguir dinheiro de
qualquer transeunte, sem precisar pedir dinheiro nos semáforos, o que é
mais fácil só para os pequenos. Os maiores treinavam caras de doente e
faminto, colocavam tipóias no braço, e tremulavam a voz, pedindo apenas
cinqüenta centavos para ajudar a comprar uma passagem de volta para casa.
Consegue-se tirar com isso de vinte a trinta reais por dia, sem esforço.
Quando é que eles vão deixar de viver assim para passar o dia todo
decorando nomes de rio e expressões matemáticas que nunca vão usar na
vida? Com o dinheiro eles compram os lanches que desejam, compram seus
entorpecentes. E uma vida de programas sexuais ainda é mais lucrativa. É
possível comprar um tão sonhado celular em uma única noite de trabalho,
e, sem contar que é preciso dinheiro para freqüentar as boates caras e
beber. Mas o preço por essa exploração, além da humilhação e da violência
psicológica, é muito alto: risco de doenças, risco de calotes seguidos
de assalto, risco até de vida, sem contar na exploração financeira,
pois todos os pontos da cidade pertencem a algum cafetão, geralmente um
poderoso traficante ou um travesti experiente, ou os dois em um. Assim,
todo profissional do sexo paga o seu pedágio, seu dízimo pelo uso do
local.
Quanto
aos furtos, a grande maioria dos abrigados, cedo ou tarde, o praticam,
desde levarem para casa xampus e cremes da instituição, quando voltam
para casa, até o roubo de estranhos, na rua, quando vão passear. Quando
algum interno aparece com dinheiro, dado pela família, por exemplo, mesmo
seus melhores amigos poderão roubá-lo, e, normalmente, o fazem. Eles têm
a noção de que podem ser roubados pelos próprios amigos, e também
sabem que seus amigos têm a noção de que podem ser roubados por ele. É
uma condição “natural” para eles. Vence o
mais ligeiro, na linguagem deles. Se eu descubro que meu amigo pegou
meu dinheiro e vou reclamar com ele, ele se desculpa dizendo que foi mais
ligeiro, e que, da próxima vez, eu deveria ser mais ligeiro também. No
abrigo, os educadores tentam resolver isso convencendo os internos de que
isso é errado. Mas é difícil mudar esse comportamento. Muitas
educadoras e até a diretora já tiveram suas bolsas abertas e seu
dinheiro roubado em alguma ocasião. Os abrigados que cometem esse tipo de
furto são mesmo muito ligeiros, e sabem exatamente os poucos segundos que
precisam para entrar no escritório, pegar o dinheiro e sair sem serem
vistos. Mas há casos de tentativas de furto, legalmente falando, mas que
foram, na verdade, brincadeiras dos internos. E no final, no diálogo,
todos acabam se entendendo. Relatarei duas situações interessantes.
Certa
vez, a Auxiliar Administrativa, que sempre vinha de carro, estacionou
frente ao abrigo e entrou para trabalhar. Era hora de troca de plantão.
Alguns abrigados estavam brincando de jogar lama em um outro, em comemoração
a ter passado de ano no supletivo, e, aproveitando o portão aberto, por
causa da entrada dos educadores do novo plantão, saíram para a calçada
e acabaram enlameando o carro da administrativa. A diretora, que estava de
saída também, mandou que os responsáveis pelo ato lavassem o carro
dela. Bem, dizem que a ocasião faz o ladrão. Aconteceu que os dois
adolescentes responsáveis já haviam pegado a chave do carro segundos
antes, e aproveitaram o momento em que os educadores entraram no escritório
para assinar o ponto e entraram no carro, deram a partida e saíram com o
veículo pelas ruas da cidade. A administrativa ficou desesperada, um dos
educadores tentou achá-los, com seu carro, mas em vão, e retornou.
Os
dois adolescentes, que, na verdade, eram assaltantes na prática, entre
outras coisas, ficaram rodando pelas ruas da cidade, participando de
rachas, e disseram que só não foram para um bordel porque não tinham
efetivamente dinheiro. Retornaram quase duas horas depois, felizes da
vida, como se nada tivesse acontecido. Acho que as coisas foram ficando de
tal jeito no abrigo, que tudo se naturalizava muito facilmente. Hoje em
dia isso não é mais assim. As orientações, melhores estruturas e a
experiência passaram a evitar tais comportamentos.
O
outro caso aconteceu comigo. Foi mais o que chamam de molecagem. Sempre ia eu para o abrigo, de bicicleta. Um dia minha
tranca escangalhou e comprei uma que abria por senha de cinco números. Não
é que no primeiro dia que a tranquei, um menino a abriu em poucos
segundos e começou a passear com a bicicleta? Perguntei como ele tinha
feito e ele me disse que tinha descoberto a senha, e até me disse qual
era. A princípio me enfureci, mas depois fiquei curioso em como ele tinha
feito isso. Ele me ensinou que era muito fácil, mais fácil que abrir
cadeados com lima. Bastava ser bom de ouvido. Como cada disco tem dez números,
de zero a nove, basta girar cada disco até sentir o encaixe da senha na
tranca. Você prossegue de um em um até abrir a tranca. É realmente
muito fácil. Depois ele até me ensinou. Abro um parêntese para mostrar
a utilidade benéfica desse tipo de conhecimento (Outro dia, minha
namorada deu de presente ao seu pai uma nova maleta de médico, que
justamente fechava com esse sistema de tranca. Quando olhei para a tranca,
pensei: qualquer avisado pode abrir isto. Bem, o médico se empolgou de
tal maneira com a nova maleta que colocou todas as suas coisas de médico
na nova, escolheu uma senha e trancou a maleta. Quem disse que ele depois
se lembrava da senha! Foi um sufoco para os familiares. E, principalmente,
para o médico. Ninguém conseguiu abri-la. Tentaram as senhas que
imaginavam, até que pedi a maleta quando desistissem. Nunca havia feito
isso antes, mas me lembrava do método. E não é que eu abri a maleta, em
poucos segundos? Diria com isso que há males que vêm para bem, e que os
internos produzem conhecimento, apesar de não ser o que a sociedade
deseja).
A
vida no abrigo era muito conveniente. Como não havia instrumentos
suficientes para resolver as questões familiares dos adolescentes e crianças,
e como muitos dos pais achavam mesmo que era de responsabilidade do
governo cuidar de seus filhos, já que eles não estavam interessados mais
do que não podiam, era comum que os abrigados, desde a primeira vez que
chegavam ao abrigo, saíssem de lá e retornassem inúmeras vezes. No
abrigo eles têm o que em sua casa não têm. Lá no abrigo, se come à
vontade, quatro vezes por dia. Lá, são eventuais as programações de
lazer, tais como passeios e locação de filmes. Se um interno faz pressão
para não ir à escola, ele pode chegar a tal ponto que nem os
conselheiros tutelares, nem o próprio promotor podem convencê-lo do
contrário, e ele fica sem ir à escola por um bom tempo, apesar de todos
os apelos e orientações dos educadores. Assim, fica muito conveniente
permanecer no abrigo. Sem contar certas adolescentes, abrigadas por um período,
que faziam programa. Elas evadiam-se da instituição pelas oito horas da
noite e retornavam só pelas sete da manhã, dormindo o dia todo e
acordando às quatro da tarde, pedindo café-da-manhã. Havia uma
superiora, na época, que permitia isso e nos dizia que isso fazia parte
de uma política de redução de danos,
e era melhor assim do que elas dormirem na rua, correndo riscos.
Também
enfrentávamos a questão dos dependentes químicos. Eles tentavam parar
por si sós, e alguns passavam até da fase de crise de abstinência para
o delirium tremens. Já acompanhei não poucos adolescentes para
postos de saúde, a fim d’eles tomarem glicose na veia, para aliviar a
abstinência. Enquanto tomavam o soro, me contavam de suas vidas.
Geralmente filhos de pais bandidos se tornam desde cedo bandidos, e filhos
de pais traficantes se tornam desde cedo traficantes. Não que haja
exatamente uma educação bandida, mas é que esses pais, cedo ou tarde,
ou são detidos pela polícia ou são mortos por dívidas ou até mesmo
pela polícia. A criança, assim, é
criada pelos parentes ou colegas, também do mesmo ramo que os pais, e é
por isso que a criança segue facilmente pelo mesmo caminho, pois não lhe
dão outra opção. Aos oito, o primeiro cigarro, aos dez, o primeiro
baseado, aos onze, a primeira arma, e por aí vai. Eles me contavam como
é fácil conseguir uma arma. Simplesmente se vai a uma casa de traficante
e pede-se uma arma! Você pagará por ela com serviços ao traficante, mas
aí, você tem mais dívidas do que imagina, e já está preso a
compromissos, cujo vacilo é pago com a morte. Os adolescentes mais frios
e com mais passagens pela polícia contam que testemunharam o pai,
alcoolizado ou drogado, matar a mãe, geralmente a facadas. E se
perguntamos onde está o pai agora, contam que “mataram ele também” .
Houve
raros casos também da promotoria encaminhar ao abrigo doentes mentais, até
o encaminhamento a instituições apropriadas. Teve um em particular que
vivia tirando a roupa e vestindo maiôs, dizendo que era o homem-aranha, e
outra vez chegou até a arremessar o rádio do abrigo pelo muro, quase
atingindo a vizinha, uma senhora que vivia reclamando das bagunças e dos
barulhos das crianças. Depois desses incidentes, a promotoria viu o que
os educadores já concluíam há tempo: que não havia estrutura nem
pessoal para sustentar abrigo a menores com doença mental.
Quanto
às crianças que permanecem no abrigo, a maioria é freqüentadora de
rua. As que não são, por medo ou louvor aos mais fortes, passam a
adquirir modos semelhantes aos que são.
Mas
há exceção no abrigo. Nem todos estão em
situação de rua. Alguns que são encaminhados para a instituição
sempre viveram com alguém da família, e permanecem no Abrigo até serem
encaminhados de volta para suas famílias, após o risco de supressão de
seus direitos ser sanado.
A
pobreza é o fator mais determinante para que uma criança ou adolescente
sofra a privação de seus direitos. O sistema de Abrigo faz parte da rede
de proteção especial, na área da Assistência Social. Porém, a solução
não está aí, mas sim em uma nova postura política que encare o
problema das desigualdades sociais de frente e zele por uma justiça
eficaz contra a violência e o abuso contra a criança e adolescente, seja
em Maringá, seja no Brasil.
__________
Bibliografia
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JUSTO,
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