Por VITOR PAULO PEREIRA JUNIOR

Graduando em Ciências Sociais na Universidade Estadual de Maringá

 

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Crianças e Adolescentes de Rua Abrigados: Uma Etnografia

Vitor Paulo Pereira Junior

 

Resumo:

O presente artigo consiste em uma etnografia, baseada no método da antropologia participante, realizada em trabalho de campo. Meu locus foi o Abrigo Municipal de Maringá, no qual trabalhei como Educador de Base, pela Prefeitura, de agosto de 2002 a setembro de 2003.

Unitermos: Abrigo, Criança, Adolescente, História de Vida, Rua.

Abstract:

The present article consists in ethnography, based on participant anthropology method, achieved on field work. My locus was the Maringá Municipal Shelter, in which I worked as Basic Educator, for the town hall, from August of 2002 to September of 2003.

Keywords: Shelter, Child, Teenager, Life History, Street.

 

Fonte: http://www.planetaeducacao.com.br/imagens/crianca.jpgIntrodução

O Abrigo Provisório Municipal da Prefeitura de Maringá é uma instituição de regime aberto[1] que serve para acolher crianças e adolescentes de até 17 anos de idade que se encontrem em “situação de risco” [2], por tempo determinado, até serem tomadas as medidas políticas e legais cabíveis no que se refere ao retorno do menor a sua família de origem, e, quando isso não é possível após todas as tentativas dos órgãos competentes[3], o menor pode ser encaminhado para uma família substituta.

Na prática, a realidade é outra. Devido à lentidão e a falta de pessoal e recursos necessários – sem contar com a diferença de direção entre uma gestão municipal e outra - o menor pode permanecer no Abrigo por muito tempo, mesmo até completar 18 anos, quando é hora de ser encaminhado para uma instituição para maiores de idade.

O Abrigo de Maringá consiste em uma casa, com capacidade máxima para 20 internos, de ambos os sexos, e funciona vinte e quatro horas por dia, uma vez que os internos temporariamente residem lá. Os quartos são divididos por sexo, e entre os do mesmo sexo, pela idade, pela opção sexual, pelo comportamento ou o que a direção melhor considerar. Para tanto, os funcionários loteados para cuidar desses internos revezam-se em escalas, chamadas de plantão, de 12 horas de trabalho por 36 de descanso, ininterruptamente, incluindo fins-de-semana e feriados. Esses são os Educadores de Base, cargo público próprio para funções desse tipo. Atualmente, o Abrigo também conta com uma Psicóloga e com uma Pedagoga, sendo dirigidas por uma Assistente Social. Também fazem parte integrante da manutenção do Abrigo os Auxiliares de Serviços Gerais, divididos nas áreas de limpeza e de cozinha, também com escala de revezamento, e por um Auxiliar Administrativo, que cuida da parte burocrática da instituição. Tudo no abrigo é mantido pela Prefeitura, que também é o tutor temporário desses internos. O regime de abrigo foi criado por lei específica, e segue o Estatuto da Criança e do Adolescente.[4]

Definido o abrigo, ou seja, o local deste meu trabalho de campo, de minha etnografia, prosseguirei agora com minha primeira experiência lá.

Como já mencionei, o abrigo acolhe crianças e adolescentes de até 18 anos de idade. O município já chegou a acolher até um bebê sozinho de apenas oito meses de idade. Em contrapartida, abriu também exceções para a estadia e permanência de maiores de 18 anos.

Antes de eu ir trabalhar no abrigo, educadores amigos meus já haviam falado dele para mim, tanto positiva como negativamente, mas nada supera a experiência real. E lá chegou a hora de ir conhecer meu novo local de trabalho.

Um dia antes de começar, eu e uma recém-contratada educadora fomos chamados pela diretora da época para conversarmos antes com ela. Seria a primeira vez que entraria em um abrigo. Como seriam os menores de lá? Aliás, menores que não podem ser chamados de “menores”, pois era um termo inadequado, gerava discriminação; eles eram apenas as crianças e os adolescentes. Mas, como eram eles? “Criminosos”, “mal-encarados”, “cheios de ódio pela sociedade”? Como deveria eu me vestir? Como deveria agir para ser aceito? E, o principal, como não demonstrar medo?

Então coloquei minha camisa regata, vesti minha bermuda, coloquei um boné, não fiz a barba, e fui. Quando eu cheguei no escritório, as educadoras de plantão me olharam estranho. Tudo bem que ninguém me conhecia, mas me olharam muito estranho. A copeira passou por mim, deu um bom-dia e entrou na cozinha: “Dona Zilda, bota mais água no feijão aí, que chegou mais um moleque”. Acharam que eu era mais um interno que acabara de chegar! Mas não, era apenas mais um educador, quem diria. Tive que me apresentar para todos, a fim de que não restasse nenhuma dúvida quanto a isso.

Iniciei no turno da noite por dois meses, e depois passei a trabalhar de dia, o que é muito mais cansativo, uma vez que os internos estão acordados, e bem acordados.

Os Abrigados

Foi no abrigo que muitos preconceitos me caíram. Uma coisa é você dizer que não é contra homossexuais e “prostitutas”, contra traficantes e “viciados”, contra assaltantes, enfim, e outra coisa é você passar praticamente todo o seu dia ao lado de pessoas que optam pelo mesmo sexo, de pessoas que são as chamadas profissionais do sexo, e com dependentes químicos, conversando, ouvindo, separando brigas, convencendo-os a não saírem para se drogar, ou para se prostituir. Muitas máscaras caem quando você participa do mundo deles, encara-o frente a frente, conhece seu passado, palpita seu futuro, imagina se não faria o mesmo se estivesse no lugar deles, mas você não é um deles, não é aceito por eles. É apenas mais um ouvinte, mais um a passar pela vida deles.

A história de vida de cada um deles é especial, mas sua origem segue um certo padrão. Primeiramente, não é segredo que todos fazem parte de famílias de baixa renda. Uma boa parte são filhos de profissionais do sexo, vulgarmente conhecidas como prostitutas. Elas, algum dia, tiveram uma relação mais afetiva com algum homem, e acabaram engravidando dele. Ao darem a luz a seus filhos, continuam com seu trabalho, ou deixando a criação da criança nas mãos de uma amiga, ou deixando com o pai, que, geralmente não consegue nem quer assumir esse encargo. Outro caso, mais comum que esse, é o de pais que se separam. A criança fica com a mãe, que rapidamente arranja um companheiro, o qual, em geral, rejeita o enteado. A mãe prefere se submeter ao seu amasiado a dar razão ao filho, pois precisa de sustento e carinho. Um terceiro caso bastante comum também é o de pais alcoólatras, e pais que abusam sexualmente de seus filhos, ou os dois. E há os filhos de pais traficantes de drogas.[5]

Em todos os casos, a criança fica sem parâmetros, e busca satisfação nas ruas. Por viverem mais na rua do que na própria casa, usamos o termo “de rua”, ou melhor, “em situação de rua” [6] para distinguir a criança ou o adolescente que não mora mais com seus responsáveis, ou nem é aceito por eles. Vivem, portanto, na rua, ou em situação de rua.

Todos os adolescentes e crianças que passam pelo abrigo já cometeram pequenos delitos, chamados de Atos Infracionais[7] e já experimentaram algum tipo de droga. Se isso ainda não aconteceu, é no abrigo, sob influência dos demais, que o interno pode chegar a experimentar algum tipo de droga. É muito difícil alguém usar algum tipo de droga dentro do abrigo, mas não é impossível, no entanto, se algum deles quer se drogar, simplesmente se evade da casa e retorna após ter se drogado. A droga mais popular de todas é o thinner. É geralmente a primeira que experimentam, e é muito barata, chegando a quatro reais a lata. Podem iniciar seu uso até com cinco anos de idade. Em seguida vem a maconha. Aqueles que têm mais desenvoltura para cometer furtos, evoluem para drogas mais caras como a cocaína e o crack. Mas não conheço nenhum caso de alguém ser usuário de injetáveis. E o cigarro comum, em si, não é hábito de todos.

É na rua também que sua libido sexual se aflora mais cedo. Sem repressões, seus impulsos não seguem muitos critérios. A vida sexual deles pode começar com onze ou até dez anos de idade, isso quando se trata de relações heterossexuais. Como a lei que vigora nas ruas é a lei do mais forte ou o mais malvado, é comum meninos de até seis anos serem explorados pelos mais velhos.[8]

O homossexualismo dos meninos heterossexuais é explicado na seguinte lógica: o ativo não é considerado homossexual, e sua masculinidade permanece, mas é o passivo que é considerado o homossexual, a mulher da relação. Isso também ocorre nos que assumem a sua homossexualidade, mesmo entre os que fazem programas.

Quanto às meninas, elas geralmente sentem atração por homens mais velhos, mas nada impede que elas tenham relações com seus amigos. Uma adolescente é bastante abusada quando está sob efeitos das drogas, pois todo o grupo de meninos ao seu redor poderá fazer literalmente uma fila para ter relações com ela. Não é preciso dizer que, desse jeito, mesmo com toda a informação, muitos acabam contraindo doenças sexualmente transmissíveis. Houve até um caso em que um adolescente contraiu AIDS de uma conhecida, enquanto não estava em situação de abrigo. Quando descobriu, dentro do Abrigo, entrou num estado longo de depressão e tentou se matar várias vezes dentro do abrigo, com talheres. Não obstante, escondeu das novas parceiras que era portador e continuou tendo relações com outras adolescentes.[9]

Passando para a questão da violência,[10], todos eles facilmente passam do estado de controle para o descontrole. Brigam muito entre si e ficam muito nervosos quando suas vontades são barradas pelos educadores. Não há acepção de adversários: os pequenos enfrentam os grandes, os meninos enfrentam as meninas e vice-versa, e até o educador não deixa de ser alvo de um repentino furor, quando surge uma situação.

A maioria deles sofreu violência física em casa, e, se não, na rua, e, se não, no abrigo. Lá vigora a lei do mais forte, do mais “bandidão”, é a esse que os demais irão respeitar. E temer. Vou contar certas situações eventuais de violência. Certa vez, eu não tinha como levar um abrigado de oito anos ao bosque, que insistia copiosamente. Foi explicado a ele que não seria possível, devido a estarmos apenas em número de dois educadores e o outro não poderia ficar sozinho com os demais abrigados. Ele se sentiu tão rejeitado que sua resposta foi vir para cima de mim com uma faca para carne na mão, que havia pegado na cozinha, a fim de convencer-me. Depois de muita conversa, ele deixou a faca. Só então minhas pernas começaram a tremer. Mas há casos em que não dá tempo de uma negociação.

Em outra Ocasião, durante o almoço, uma adolescente começou a brigar com um outro adolescente e ela achou que resolveria a situação arremessando os pratos na parede. Ele achou que seria conveniente devolver os elogios arremessando as cadeiras contra ela, e nessa troca de presentes, a retribuição de mana acabou só com a chegada da polícia. É, a polícia só pode ser acionada nesses casos extremos. A última vez que tive ciência da abordagem da polícia no abrigo foi há alguns meses, quando quatro meninos ameaçaram uma adolescente de morte. Eles tentaram “apavorar o setor” e passaram a noite na 9ª S.D.P.

Além da violência por retaliação, há a brincadeira violenta. De tempos em tempos alguém ressuscita uma brincadeira chamada Tereza. Consiste em enrolar um papel higiênico nos pés de alguém que está dormindo e atear fogo. A queima é instantânea. Esse ato é comum nas cadeias, como punição de um companheiro de cela que vacila em alguma situação. No abrigo, os internos que o praticaram o viam como motivo de brincadeira.

Os abrigados, em geral, oferecem muita resistência aos estudos e a freqüentar escolas. Não se sentem estimulados a se emanciparem e mudarem de vida, pois além de toda essa bagagem de sofrimento, estão passando pelo período turbulento da adolescência mesmo. A maioria não consegue terminar cursos profissionalizantes oferecidos pelo município, não consegue realmente ficar parada em um único lugar nem que seja por 40 minutos. São muito ansiosos e inquietos.

Mas apesar de tudo, adoram conversar. Eles têm muito a contar de suas aventuras e de seus sofrimentos. Não têm a menor vergonha de revelarem seus mais íntimos segredos e fraquezas, apesar de “durões”, pois, com a abordagem adequada[11], eles despejam confiança no educador e podem revelar qualquer coisa. Até mesmo os garotos e as garotas de programa, que amam mesmo contar suas aventuras noturnas, de como escaparam do cliente armado que queria assaltá-los, de como assaltaram o cliente desarmado; quem são os políticos, advogados e os donos de clínicas que compram drogas e saem com garotas e garotos de programa sem a família desconfiar... Enfim, é muito fácil conhecer esse mundo, e é mais fácil ainda entrar nesse mundo; ele é mesmo muito acessível, a qualquer camada da população, a qualquer hora do dia, em qualquer mocó (casa abandonada que passa a servir de morada para a população de rua). O difícil é sair dessa vida, porque isso traz uma renda suficiente para sobreviver, sem precisar passar metade da vida na escola.

Os abrigados não cansavam de contar como era fácil conseguir dinheiro de qualquer transeunte, sem precisar pedir dinheiro nos semáforos, o que é mais fácil só para os pequenos. Os maiores treinavam caras de doente e faminto, colocavam tipóias no braço, e tremulavam a voz, pedindo apenas cinqüenta centavos para ajudar a comprar uma passagem de volta para casa. Consegue-se tirar com isso de vinte a trinta reais por dia, sem esforço. Quando é que eles vão deixar de viver assim para passar o dia todo decorando nomes de rio e expressões matemáticas que nunca vão usar na vida? Com o dinheiro eles compram os lanches que desejam, compram seus entorpecentes. E uma vida de programas sexuais ainda é mais lucrativa. É possível comprar um tão sonhado celular em uma única noite de trabalho, e, sem contar que é preciso dinheiro para freqüentar as boates caras e beber. Mas o preço por essa exploração, além da humilhação e da violência psicológica, é muito alto: risco de doenças, risco de calotes seguidos de assalto, risco até de vida, sem contar na exploração financeira, pois todos os pontos da cidade pertencem a algum cafetão, geralmente um poderoso traficante ou um travesti experiente, ou os dois em um. Assim, todo profissional do sexo paga o seu pedágio, seu dízimo pelo uso do local.

Quanto aos furtos, a grande maioria dos abrigados, cedo ou tarde, o praticam, desde levarem para casa xampus e cremes da instituição, quando voltam para casa, até o roubo de estranhos, na rua, quando vão passear. Quando algum interno aparece com dinheiro, dado pela família, por exemplo, mesmo seus melhores amigos poderão roubá-lo, e, normalmente, o fazem. Eles têm a noção de que podem ser roubados pelos próprios amigos, e também sabem que seus amigos têm a noção de que podem ser roubados por ele. É uma condição “natural” para eles. Vence o mais ligeiro, na linguagem deles. Se eu descubro que meu amigo pegou meu dinheiro e vou reclamar com ele, ele se desculpa dizendo que foi mais ligeiro, e que, da próxima vez, eu deveria ser mais ligeiro também. No abrigo, os educadores tentam resolver isso convencendo os internos de que isso é errado. Mas é difícil mudar esse comportamento. Muitas educadoras e até a diretora já tiveram suas bolsas abertas e seu dinheiro roubado em alguma ocasião. Os abrigados que cometem esse tipo de furto são mesmo muito ligeiros, e sabem exatamente os poucos segundos que precisam para entrar no escritório, pegar o dinheiro e sair sem serem vistos. Mas há casos de tentativas de furto, legalmente falando, mas que foram, na verdade, brincadeiras dos internos. E no final, no diálogo, todos acabam se entendendo. Relatarei duas situações interessantes.

Certa vez, a Auxiliar Administrativa, que sempre vinha de carro, estacionou frente ao abrigo e entrou para trabalhar. Era hora de troca de plantão. Alguns abrigados estavam brincando de jogar lama em um outro, em comemoração a ter passado de ano no supletivo, e, aproveitando o portão aberto, por causa da entrada dos educadores do novo plantão, saíram para a calçada e acabaram enlameando o carro da administrativa. A diretora, que estava de saída também, mandou que os responsáveis pelo ato lavassem o carro dela. Bem, dizem que a ocasião faz o ladrão. Aconteceu que os dois adolescentes responsáveis já haviam pegado a chave do carro segundos antes, e aproveitaram o momento em que os educadores entraram no escritório para assinar o ponto e entraram no carro, deram a partida e saíram com o veículo pelas ruas da cidade. A administrativa ficou desesperada, um dos educadores tentou achá-los, com seu carro, mas em vão, e retornou.

Os dois adolescentes, que, na verdade, eram assaltantes na prática, entre outras coisas, ficaram rodando pelas ruas da cidade, participando de rachas, e disseram que só não foram para um bordel porque não tinham efetivamente dinheiro. Retornaram quase duas horas depois, felizes da vida, como se nada tivesse acontecido. Acho que as coisas foram ficando de tal jeito no abrigo, que tudo se naturalizava muito facilmente. Hoje em dia isso não é mais assim. As orientações, melhores estruturas e a experiência passaram a evitar tais comportamentos.

O outro caso aconteceu comigo. Foi mais o que chamam de molecagem. Sempre ia eu para o abrigo, de bicicleta. Um dia minha tranca escangalhou e comprei uma que abria por senha de cinco números. Não é que no primeiro dia que a tranquei, um menino a abriu em poucos segundos e começou a passear com a bicicleta? Perguntei como ele tinha feito e ele me disse que tinha descoberto a senha, e até me disse qual era. A princípio me enfureci, mas depois fiquei curioso em como ele tinha feito isso. Ele me ensinou que era muito fácil, mais fácil que abrir cadeados com lima. Bastava ser bom de ouvido. Como cada disco tem dez números, de zero a nove, basta girar cada disco até sentir o encaixe da senha na tranca. Você prossegue de um em um até abrir a tranca. É realmente muito fácil. Depois ele até me ensinou. Abro um parêntese para mostrar a utilidade benéfica desse tipo de conhecimento (Outro dia, minha namorada deu de presente ao seu pai uma nova maleta de médico, que justamente fechava com esse sistema de tranca. Quando olhei para a tranca, pensei: qualquer avisado pode abrir isto. Bem, o médico se empolgou de tal maneira com a nova maleta que colocou todas as suas coisas de médico na nova, escolheu uma senha e trancou a maleta. Quem disse que ele depois se lembrava da senha! Foi um sufoco para os familiares. E, principalmente, para o médico. Ninguém conseguiu abri-la. Tentaram as senhas que imaginavam, até que pedi a maleta quando desistissem. Nunca havia feito isso antes, mas me lembrava do método. E não é que eu abri a maleta, em poucos segundos? Diria com isso que há males que vêm para bem, e que os internos produzem conhecimento, apesar de não ser o que a sociedade deseja).

A vida no abrigo era muito conveniente. Como não havia instrumentos suficientes para resolver as questões familiares dos adolescentes e crianças, e como muitos dos pais achavam mesmo que era de responsabilidade do governo cuidar de seus filhos, já que eles não estavam interessados mais do que não podiam, era comum que os abrigados, desde a primeira vez que chegavam ao abrigo, saíssem de lá e retornassem inúmeras vezes. No abrigo eles têm o que em sua casa não têm. Lá no abrigo, se come à vontade, quatro vezes por dia. Lá, são eventuais as programações de lazer, tais como passeios e locação de filmes. Se um interno faz pressão para não ir à escola, ele pode chegar a tal ponto que nem os conselheiros tutelares, nem o próprio promotor podem convencê-lo do contrário, e ele fica sem ir à escola por um bom tempo, apesar de todos os apelos e orientações dos educadores. Assim, fica muito conveniente permanecer no abrigo. Sem contar certas adolescentes, abrigadas por um período, que faziam programa. Elas evadiam-se da instituição pelas oito horas da noite e retornavam só pelas sete da manhã, dormindo o dia todo e acordando às quatro da tarde, pedindo café-da-manhã. Havia uma superiora, na época, que permitia isso e nos dizia que isso fazia parte de uma política de redução de danos[12], e era melhor assim do que elas dormirem na rua, correndo riscos.

Também enfrentávamos a questão dos dependentes químicos. Eles tentavam parar por si sós, e alguns passavam até da fase de crise de abstinência para o delirium tremens. Já acompanhei não poucos adolescentes para postos de saúde, a fim d’eles tomarem glicose na veia, para aliviar a abstinência. Enquanto tomavam o soro, me contavam de suas vidas. Geralmente filhos de pais bandidos se tornam desde cedo bandidos, e filhos de pais traficantes se tornam desde cedo traficantes. Não que haja exatamente uma educação bandida, mas é que esses pais, cedo ou tarde, ou são detidos pela polícia ou são mortos por dívidas ou até mesmo pela polícia. A criança, assim, é criada pelos parentes ou colegas, também do mesmo ramo que os pais, e é por isso que a criança segue facilmente pelo mesmo caminho, pois não lhe dão outra opção. Aos oito, o primeiro cigarro, aos dez, o primeiro baseado, aos onze, a primeira arma, e por aí vai. Eles me contavam como é fácil conseguir uma arma. Simplesmente se vai a uma casa de traficante e pede-se uma arma! Você pagará por ela com serviços ao traficante, mas aí, você tem mais dívidas do que imagina, e já está preso a compromissos, cujo vacilo é pago com a morte. Os adolescentes mais frios e com mais passagens pela polícia contam que testemunharam o pai, alcoolizado ou drogado, matar a mãe, geralmente a facadas. E se perguntamos onde está o pai agora, contam que “mataram ele também” [13].

Houve raros casos também da promotoria encaminhar ao abrigo doentes mentais, até o encaminhamento a instituições apropriadas. Teve um em particular que vivia tirando a roupa e vestindo maiôs, dizendo que era o homem-aranha, e outra vez chegou até a arremessar o rádio do abrigo pelo muro, quase atingindo a vizinha, uma senhora que vivia reclamando das bagunças e dos barulhos das crianças. Depois desses incidentes, a promotoria viu o que os educadores já concluíam há tempo: que não havia estrutura nem pessoal para sustentar abrigo a menores com doença mental.

Quanto às crianças que permanecem no abrigo, a maioria é freqüentadora de rua. As que não são, por medo ou louvor aos mais fortes, passam a adquirir modos semelhantes aos que são.

Mas há exceção no abrigo. Nem todos estão em situação de rua. Alguns que são encaminhados para a instituição sempre viveram com alguém da família, e permanecem no Abrigo até serem encaminhados de volta para suas famílias, após o risco de supressão de seus direitos ser sanado.

A pobreza é o fator mais determinante para que uma criança ou adolescente sofra a privação de seus direitos. O sistema de Abrigo faz parte da rede de proteção especial, na área da Assistência Social. Porém, a solução não está aí, mas sim em uma nova postura política que encare o problema das desigualdades sociais de frente e zele por uma justiça eficaz contra a violência e o abuso contra a criança e adolescente, seja em Maringá, seja no Brasil.

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Bibliografia

AZEVEDO, MARIA A. GUERRA, VIVIANE N. DE A. (ORGANIZADORAS). Infância e violência doméstica. São Paulo: Cortez Editora, 2000.

BRAUN, SUZANA. A violência sexual infantil na família – Do silêncio à revolução. Porto Alegre: Age Editora, 2002.

JUSTO, CARMEM S. SANCHES. Os meninos fotógrafos e os educadores – Viver na rua e no Projeto Casa. São Paulo: Editora UNESP, 2003.

OLIVEIRA, WALTER F. Educação Social de Rua – As bases políticas e pedagógicas para uma educação popular. Porto Alegre: Artmed Editora, 2004.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 1990.

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[1] Cf. Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Livro II, Título II, Capítulo II, Art. 101, Parágrafo Único.

[2] Situação de Risco abrange ameaça e/ou violação dos direitos da criança e do adolescente, conforme a lei, como, entre outros, risco a sua integridade moral e física como exposição a drogas, prostituição e risco de abusos e violências vindos do meio onde vive, além do risco de atentado à própria vida.

[3] Tentativas tais como vincular o abrigado com um parente próximo enquanto os responsáveis legais são atendidos pelos profissionais do município, buscando uma solução para que o abrigado não venha a sofrer novamente uma situação de risco. Secretarias como a da Saúde, de Serviço Social e de Habitação, mais o Conselho Tutelar acionam seus órgãos e instituições a fim de que cada profissional específico trabalhe com cada caso. Essa rede de atendimento é conhecida também pelo termo “Rede”, entre os funcionários do município.

[4] A Lei Número 8069 de 13 de junho de 1990 é a lei que dispõe sobre o ECA e o regime de abrigamento. Sobre esse regime, cf. artigos 90, IV; 92, I a IX; 92, par. único; 93; 94, par. único; 101, VII; 101, par. único; 92, VI; 101, par. único.

[5] Essas histórias de vida não beiram ao senso-comum, apesar de eu não ter estatísticas sobre as famílias de Maringá. Estatísticas semelhantes estão sendo levantadas, este ano, pela prefeitura. No entanto, os dados acima revelados são baseados em entrevistas familiares e conhecimento de casos através de relatórios e prontuários das crianças e adolescentes.

[6] Em relação ao termo usado a partir de agora, “de rua”, ou até melhor, “em situação de rua”, v. Oliveira, Walter F. “Educação Social de Rua – As bases políticas e pedagógicas para uma educação popular”. Porto Alegre: Artmed Editora, 2004.

[7] Quanto ao Ato Infracional, v. ECA, Artigos: 103; 105; 106 e segs; 230 a 235; 112; 112, par. 2; 122, par. 2; 122; 121; 121, 4., 5.; 126 a 129.

[8] Quanto a esse tipo de comportamento sexual, v. Braun, Suzana. “A violência sexual infantil – Do silêncio à revelação do segredo”. Porto Alegre: Age Editoras, 2002. Só para se ter uma idéia, pesquisas detalhadas nessa obra revelaram que 1 em cada 4 a 6 meninas irão sofrer algum tipo de abuso sexual, até chegarem aos 18 anos de idade, e que 1 em cada 6 a 10 meninos irão sofrer algum tipo de abuso sexual, até chegarem aos 18 anos de idade.

[9] A prefeitura oferece tratamento gratuito a portadores de HIV, conforme lei específica da Saúde, através dos órgãos de saúde municipais, com testes, palestras, atendimento psicológico, remédios, etc. O Abrigo tem a responsabilidade de vincular com a Rede municipal tais cuidados médicos e psicológicos (ECA, Art. 94, X).

[10] A seguir, prossigo relatando experiências sobre alguns comportamentos violentos testemunhados por mim. Como referência à origem da violência, v. Azevedo, Maria A./ Guerra, Viviane N. de A. (organizadoras). “Infância e violência doméstica: Fronteiras do Conhecimento”. São Paulo: Cortez Editora, 2000.

[11] Escrevi um diário sobre meu convívio com os internos do Abrigo. Descobri que posturas de medo e preconceito devem ser abolidas como pré-requisito de ser um profissional da área; resolver questões delicadas com muita conversa e compreensão, sem ameaças, ou promessas; uma conversa informal pode revelar muito mais do que uma sessão de psicologia; uma vez confiando no profissional, o interno pode revelar seus mais escondidos segredos e traumas, e isso é muito importante quando se trabalha com uma equipe multidisciplinar. A ética é fundamental.

[12] Redução de Danos é uma política pública adotada originalmente para tratamento de dependentes químicos, que consiste, entre outras etapas, fazer com que o usuário passe a ter um consumo controlado de drogas em doses cada vez menores até estar apto a um tratamento mais efetivo e menos traumatizante. Tais políticas também consistem em oferecer locais adequados para esse consumo, a fim de retirar, aos poucos, o usuário das ruas e do contato com fornecedores. No entanto, na referida conjuntura, nossa superiora, na época, tentou adaptar o discurso dessa política para o caso da prostituição (infantil), sem, contudo, comprovar sua eficácia, dar estrutura ao Abrigo ou qualquer treinamento aos educadores e apoio às meninas em questão.

[13] Mais uma vez relato sobre histórias de vida.

 

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Publicada em 03.12.04 - Última atualização: 26 abril, 2005.