Livros VI e
VII da República:
Formas e Fenômenos em
Platão*
Leandro
Anésio Coelho
Resumo
A
República de Platão trata do diálogo ocorrido na casa do velho
Céfalo com Sócrates e diversos outros, alguns que participam do
diálogo e outros que permanecem anônimos. A investigação na
obra é sobre o significado de justiça e como é a vida do homem
e da cidade justos. Os livros intermediários da República, V a
VII, são uma digressão do problema principal, que começa com a
observação de como vivem as mulheres e crianças na cidade
perfeita. Para este trabalho, interessa-nos a exposição da
teoria platônica das Formas [idéias] e aparências ou sombras
[Fenômenos] através da metáfora do Sol e alegorias da linha e
da caverna nos livros VI e VII. Deseja-se saber a condição do
homem que vive na esfera das aparências, sua permanência ou não
neste estágio, sua possibilidade de conhecer o inteligível e por
que é bom que isso ocorra.
Palavras-chaves:
Platão, Formas, Aparências
Abstract
Plato's
Republic is set at the old Cephalus' house who invites Socrates to
be with him and his friends. The subject of the dialoge isan
inquiry about the meaning of justice the kind of man's life and
citymay be said both just. This text deals with the platonic
theory of Forms, and the sensible world, as it is developed in the
allegoriesof the sun, the line and the cave (Books VI and VII).
The question in focus here is about the condition of man as stated
by the theory. What does it mean to man to live in the sensible
world although with the possibility of reaching the inteligible
world of the Forms? Why shouldthis be worthwhile?
Keys-words:
Plato, Forms, Sensible |
Introdução
Como
conhecemos e o que conhecemos? O que é a realidade para nós e tudo cessa
nela?
A
República, uma investigação
a respeito do conceito de justiça e de como essa se manifesta no homem e
na cidade e suas conseqüências, sofrem uma digressão a partir do livro
V que se estende até ao livro VII. Interessa-nos nesse trabalho a teoria
platônica sobre o inteligível e o sensível, ou seja, naquele as Idéias
e as Formas e nesse as aparências e as sombras. Essa teoria surge, de
maneira evidente, na analogia da linha e alegoria da caverna.
Antes
de analisar a exposição dessa teoria faz-se necessário acompanhar a
investigação de Sócrates e dos participantes do diálogo sobre as
características da alma filosófica e da importância desta na cidade
perfeita, idealizada por Sócrates, assim como a exposição sobre o bem.
O
homem filósofo tem uma alma estável e próxima do Ser e da verdade. Esse
homem é o que a cidade precisa ter no seu comando, no seu governo, pois
ele a livrará de todas as calamidades. Esse homem é o que tem o saber
real, o que conhece a Forma unificadora de tudo o que existe, ou seja, que
conhece o bem. A analogia da linha, final do livro VI, coloca de um lado
os graus do Ser e de outro as operações da alma. Bem e filosofia estão
no topo desta linha, no inteligível. Nesta mesma esfera, um pouco abaixo,
estão os entes matemáticos e a razão. No sensível os seres naturais e
a crença; um pouco abaixo imagens e suposição.
A
alma filosófica é a que perpassa todas as operações em todos os graus
do Ser e atinge o ponto mais alto: o bem, aquilo que é supremo em Platão,
divino e único a estar acima da justiça. Sócrates usa a metáfora do
sol para explicitar a importância do bem no inteligível assim como a
importância do sol no sensível.
A
alegoria da caverna, apresentada logo no início do livro VII, é, de
certa forma, uma retomada da analogia da linha. Agora são homens
algemados no interior da caverna a apreciarem sombras na parede e a tê-las
como a única realidade. Aqui o homem filósofo é o único a se soltar e
a encontrar o mundo externo à caverna, ou seja, passa do sensível para o
inteligível, esfera das Formas e idéias.
Essa
alegoria propicia uma longa exposição de Sócrates a respeito da educação
e da constituição da alma filosófica, além de ressaltar a utilidade da
dialética e da formação do cidadão através da música, ginástica e
ciências matemáticas. Assim a analogia da linha explicita a teoria platônica
das Formas e dos Fenômenos e se apresenta como uma Paidéia.
1.
Idéias e Ascensão: Analogia da Linha
1.1.
Preliminares da Analogia da Linha
A
digressão existente na República
presente nos seus livros intermediários tem por finalidade fazer uma
minuciosa análise de como se constitui, ou pelo menos deve se constituir,
a cidade perfeita. No início da digressão, livro V, observa-se à
comunidade de mulheres e crianças neste tipo de cidade, a função delas
e sua educação.
A
analogia presente no livro VI e a alegoria no livro VII da República
se faz marcante para o leitor. Uma dessas digressões, a da linha,
investiga a existência do bem, algo supremo, como se verá.
Os
participantes do diálogo na República
querem saber, momentos antes de se atingir a analogia da linha, qual é a
natureza do filósofo, quem o é e quem não o é; o que faz dele um filósofo.
Essa busca pela natureza do filósofo revelará ao final da discussão o
seu caráter nobre, o que o aproxima do bem, caracteristicamente supremo.
O filósofo, nos diz Sócrates, tem aversão à mentira, à falsidade, ama
a verdade, distancia-se da mesquinhez e é dotado de memória. As características
básicas da alma filosófica revelam o quanto esse tipo de homem é necessário
para o governo da cidade para livrá-la das calamidades. Por isso, para o
bem da cidade e dos cidadãos, tem-se duas opções: ou o filósofo seja
colocado no governo ou o governante se torne filósofo (473d).
Sócrates
aponta para o fato de, embora ter todas essas qualidades, o filósofo ser
tido como inútil nas cidades, enquanto os sofistas, quem Sócrates muito
combate, são estimados. Os sofistas são acusados no diálogo de
ensinarem a “doutrina da maioria”, ou seja, ensinarem aquilo que alguém
quer que seja ensinado; falam o que o ouvinte quer ouvir. Lembra-nos
acomodação e um ensino voltado para o desejo dos mais fortes, sem
compromisso com a verdade.
O
desejo de Sócrates é que o filósofo ocupe o lugar de destaque e importância
até então ocupado pelo sofista, além do governo da cidade. O caráter
de sabedoria e ‘estabilidade’ da alma filosófica faz essas mesmas
qualidades atingirem a cidade.
Com
base na constituição da alma filosófica, Sócrates diz que na sua época
não existia nenhum governo de caráter filosófico, por isso mesmo eles
eram instáveis e se dissolviam. Alguns estudiosos de Platão vêem aí
uma grande colaboração para a condenação de Sócrates em 399 a.C.: os
governantes podiam ver em Sócrates uma ameaça aos seus cargos, governo e
poder. Quem é aquele homem que os acusa de instáveis e inadequados para
o governo da cidade? Pior, o que deseja esse homem?
Sobre
a relação da filosofia com a cidade, Sócrates revela no diálogo que
Não
há Estado, nem governo nem sequer um indivíduo que do mesmo modo possa
jamais se tornar perfeito, antes que a esses filósofos pouco numerosos a
que agora chamam, não perversos, mas inúteis, a necessidade, saída das
circunstâncias, os force, quer queiram quer não, a ocupar-se do Estado,
e que este lhes obedeça; ou antes que um verdadeiro amor da filosofia
verdadeira, por qualquer inspiração divina, se apodere dos filhos ou dos
próprios homens que estão atualmente no poder ou ocupam o sólio real.
Dizer que uma ou outra destas hipóteses é impossível de se dar, ou
nenhuma delas, acho que não há razão para tal. Se assim fosse, seria
justo que troçasse de nós, por não passarmos, nas nossas conversas, de
meras fantasias. (PLATÃO, 1993: 291)
A
caracterização do filósofo que se dá neste livro VI é essencial para
desembocar na metáfora do sol e analogia da linha neste mesmo livro, o
que acarretará a alegoria da caverna no livro seguinte e a exposição da
teoria de Platão a respeito das idéias [Formas] e das aparências [Fenômenos].
Nos
diz Sócrates que o filósofo é ordenado, convive com o que é divino, se
dedica ao Ser e à verdade:
Ora
certamente o filósofo, convivendo com o que é divino e ordenado,
tornar-se-á ordenado e divino até onde é possível a um ser humano.
Embora em toda à parte se multipliquem os detratores. (PLATÃO, 1993:
294)
Afirmar
que o filósofo é apaixonado pelo Ser e pela verdade é reafirmar a
necessidade que a cidade tem de ter alguém com esta configuração no
poder, na administração da vida dos cidadãos. Se não bastasse ser
dessa forma, o filósofo é aquele que revela estar em proximidade com o
que há de mais divino, pleno. Mas que divindade é essa à qual o filósofo
tem acesso?
1.2.
Analogia da Linha
O
livro VI da República revela o que há de mais divino e supremo para Sócrates,
o que está no ponto mais alto, o único a estar além da justiça: o bem.
O
bem platônico é algo inteligível e desperta curiosidade já entre os
antigos:
Já
entre os antigos, a obscuridade do “Bem de Platão” era proverbial e
fornecia matéria para zombarias, abundantemente explorada pelos poetas cômicos.
E, no entanto, esse “Bem” inteligível é o que toda alma busca, e do
qual ela faz o fim de todos os seus atos, porque adivinha seu valor,
embora sendo impotente para apreender claramente sua essência. O Bem de
Platão é, na verdade, o bem de todo o mundo. (GOLDSCHMIDT, 1970: 33)
O
bem para Platão é para onde direciona todas as almas, todos os homens.
É aquilo que todos nós almejamos e buscamos alcançar. Para Sócrates,
quem atinge essa espécie de bem é filósofo, pois está no ponto mais
alto das operações da alma.
O
bem é o único a estar acima da justiça, o que tanto se investiga na República.
O bem, como dito, possui caráter unificador, é supremo e alcançado pelo
filósofo. Mas, de acordo com Platão, o que pode ser tão supremo?
Não
resta ao bem, senão, incorporar um caráter divino. O bem platônico é a
própria divindade, ordenadora e uma espécie de Forma suprema. Por isso
ela é essencial para o homem e para deixar sua alma em ordem. Para
explicitar a tamanha importância do bem na esfera inteligível, Platão
metaforiza-o com o sol na esfera sensível.
Todas
as coisas que estão no sensível aparecem-nos na penumbra quando
iluminado por uma luz derivada. Mas essa mesma coisa aparece claramente
quando iluminada pelo sol; aí se pode ver objetivamente o que a coisa é
e todas as suas características. Da mesma forma, pode-se conhecer sem
margem de erros algo quando à luz do bem. Para Platão, então, o sol está
para a esfera sensível assim como o bem está para a esfera inteligível.
Podes,
portanto, dizer que é o Sol, que eu considero filho do bem, que o bem
gerou a sua semelhança, o qual bem é, no mundo inteligível, em relação
à inteligência e ao inteligível, o mesmo que o Sol no mundo visível em
relação à vista e ao visível. (PLATÃO, 1993: 307)
Pappas
estabelece a seguinte dinâmica entre o bem e o sol:
Pretendendo,
embora, falar apenas da educação dos filósofos, Sócrates diz que vai
submetê-los ao “estudo máximo”. Pressionado a explicitar isto, usa
uma série de imagens para sugerir a Forma do Bem, o pináculo da inquirição
filosófica. A Forma do Bem é como o sol; as relações entre a Forma do
Bem, todas as outras Formas e os objetos da palavra visível podem traçar-se
ao longo de uma linha divisória; a relação dos seres humanos com a
Forma do Bem se assemelha à relação entre os prisioneiros de uma
caverna e o sol. (PAPPAS, 1995: 146)
As
características do bem e suas relações com as pessoas justificam o
governo do filósofo: quão ordenadas será a cidade que possua no seu
comando um governante filósofo, de acesso ao bem e que contagiará a
cidade com todo essa ordem!
O
bem é o que unifica a alma do homem, coloca em ordem as Formas a que ele
tem acesso da esfera inteligível. O bem é
o
liame que impede as coisas de se perderem no fluxo universal, é o Atlas
poderoso e imortal que sustém todas as coisas para o melhor; o bem, isto
é, o obrigatório, liga e contém tudo. Se as Formas são ser, o bem é a
parte mais luminosa do ser, o melhor dos seres, ou ainda o que é
perfeitamente ser, o que pode ser entendido – seja como Ser na sua
extensão total (o Universo inteligível e o Universo visível) seja como
o Ser na sua acepção plena, o Ser por excelência (fórmula que opõe,
conjuntamente, o ser das Formas ao devir das coisas sensíveis, e o Ser
melhor ao ser derivado das Formas). (GOLDSCHMIDT, 1970: 44)
Esse
mesmo autor escreve sobre a luz que o bem lança na pesquisa dialética em
Platão e da diferença da investigação do bem na República:
Nenhum
diálogo tenta o conhecimento do Bem. Todos eles não se aventuram a isso
senão a tão longe quanto disso têm necessidade para conhecer tal Forma
particular. Eles o conseguem chegando ao princípio an-hipotético, o
qual, sem dúvida, nunca é definido em todo seu brilho, mas
suficientemente, entretanto, para terminar o estudo da Forma particular
que era a única a constituir o objeto da pesquisa. O bem ilumina toda
pesquisa dialética; ele não é visado, diretamente, por nenhuma. (GOLDSCHMIDT,
1970: 49)
Sócrates
evidencia através dos seus argumentos no livro VI que enquanto o sol
“reina” na esfera sensível, o bem “reina” na esfera inteligível:
cada um desses possui o seu grau de importância onde ilumina. O paralelo
entre as duas esferas, sensível e inteligível, gera a comparação entre
os seguintes elementos, sendo os da esquerda pertencentes à esfera sensível
e os da direita esfera inteligível:
A
discussão a respeito do bem segue passo a passo, em conformidade com o
que os participantes do diálogo haviam pedido no início, de que ela
transcorresse da mesma forma que sobre a justiça, gradativamente, para não
se esquecer de observar nenhum detalhe. É certo que Sócrates disse aos
seus interlocutores que talvez não desse conta de não deixar escapar
nenhum por menor, mas que todos ficassem atentos a isso e o ajudassem na
busca do bem.
E
é dessa forma a investigação sobre o bem: do mesmo modo que quando se
discutia a justiça, Sócrates incita seus interlocutores a buscarem
qualquer erro no diálogo e a buscarem o entendimento do que é o bem, seu
papel e importância para a vida do homem.
Falou-se
aqui que o bem é divino. Reale, na sua obra Para
uma nova interpretação de Platão, expõe a possibilidade de se
interpretar inadequadamente o bem: ele é divino, mas não é um deus.
Aquele e este se confundem em Platão numa leitura corriqueira. A diferença
essencial é que o divino é insuperável, é a Forma suprema e ordenadora
de todas as demais. Deus é um ente constituído, uma “pessoa” que
possui o bem, experimenta dessa forma suprema e deseja que ela atinja os
homens. Fica indubitável a posição do bem: aquilo que não é superado,
pois é supremo.
Deus
não deve ser confundido [...] com o divino, e portanto com o Princípio
primeiro (o Bem, ou seja, o Uno e a Medida suprema), que é a regra e
aquilo a que se refere à Inteligência. E menos ainda deve ser confundido
com o todo do ser. Platão concebe o seu Deus em dimensão pessoal,
atribuindo-lhe, além da suprema “inteligência”, também a
“vontade”. A atividade do Deus platônico não é um simples agir da
Inteligência em função do inteligível. É um querer a realização
desse inteligível. (REALE, 1991: 527)
Só
depois de muita discussão sobre o bem e todas as suas características,
levando o diálogo gradativamente e analisando por menores, como havia
sido acertando previamente com os participantes do diálogo, é que se tem
a analogia da linha, já nos últimos momentos do sexto livro da República.
Não poderia ser de outra forma: se a analogia da linha proposta
aparecesse nos primeiros momentos desse livro, não se entenderiam alguns
dos elementos que ladeiam a linha dividida, ou não seriam compreensíveis
a importância e posição dos respectivos elementos.
Mas,
já se tendo exposto e entendido o bem como algo supremo e divino, segue Sócrates
com a proposta de analogia para explicar a relação existente entre as
esferas sensível e inteligível, de como se dá o conhecimento e a ascensão
da alma.


J.
E. Raven considera que o Bem é acessível somente às operações mais
desenvolvidas da alma e quem o atinge é filósofo:
O
Bem, para Platão, é, [i] em primeiro lugar, e com mais evidência, a
finalidade ou alvo da vida, o objeto supremo de todo o designo e toda a
aspiração. [ii] Em segundo lugar, e mais surpreendentemente, é a condição
do conhecimento, o que torna o mundo inteligível e o espírito
inteligente. E [iii] em terceiro, último e mais importante lugar, é a
causa criadora que sustenta todo o mundo e tudo o que ele contém, aquilo
que dá a tudo o mais a sua própria existência. (PLATÃO, 1993: XXVII)
A
analogia da linha constitui-se de uma linha dividida em duas partes
inicialmente, separando esfera sensível abaixo e esfera inteligível
acima. De um lado da linha, graus do Ser; do outro lado, operações da
alma no sentido de ascensão, indo de encontro ao conhecimento real.
Depois
de separadas as duas esferas, as mesmas são divididas em duas partes
desiguais. Na esfera sensível: na parte mais baixa, as imagens, alcançadas
através da suposição ou ilusão; na parte superior, os seres naturais
alcançados pela crença. Na esfera inteligível: na parte mais baixa, os
entes matemáticos acessados através do entendimento ou razão; na parte
mais elevada, as formas e idéias às quais se tem acesso através da
filosofia, ou seja, o que é de supremo, o bem.
A
didática platônica sintetiza todo o discurso do livro VI na analogia da
linha e não deixa escapar nenhum elemento, mostrando a importância do
bem, sua posição e papel na vida do homem. Não só isso, explicita o
quanto à filosofia, assim como o bem, é única e suprema, o que
demonstra a importância do filósofo para a cidade, para que essa se
livre das calamidades e se torne perfeita.
Sócrates
ainda ressalta, após a exposição da analogia da linha, a importância
da esfera inteligível, na qual estão o bem e a filosofia:
Aprende
então o que quero dizer com o outro segmento do inteligível, daquele que
o raciocínio atinge pelo poder da dialética, fazendo das hipóteses não
princípios, mas hipótese de fato, uma espécie de degraus e de pontos de
apoio, para ir até àquilo que não admite hipóteses, que é o princípio
de tudo, atingido o qual desce, fixando-se em todas as conseqüências que
daí decorrem, até chegar à conclusão, sem se servir em nada de
qualquer dado sensível, mas passando das idéias umas às outras, e
terminando em idéias. (PLATÃO, 1993: 312)
Explicita
assim Platão a importância do bem para a dialética, como que ele, o
bem, a ilumina, assim como a importância da esfera inteligível.
2.
Idéias (Formas) e Conhecimento: Alegoria da Caverna
A
alegoria da caverna faz os livros VI e VII manterem uma conexão direta
entre eles. A analogia da linha é uma etapa essencial para o que ocorre
no livro seguinte; e nesse Platão deixa transparecer de forma muito mais
clara a sua teoria acerca das Formas e das aparências [fenômenos], da
esfera inteligível e sensível.
A
superação de barreiras e o acesso ao conhecimento é o que nos conta a
alegoria da caverna: homens estão no interior de uma caverna, amarrados e
algemados, impossibilitados de saírem e de olharem para trás. A única
coisa que eles vêem é a parede que está à sua frente, na qual ficam
passando diversas sombras produzidas por uma fogueira que existe atrás
desses homens. Ainda atrás deles, junto com a fogueira, existe um muro
impedindo a saída da caverna.
Para
esses homens, tudo o que se passa na parede, as sombras, é o que eles
conhecem, ou seja, é a verdade para eles, o que existe. Um desses homens
se liberta desta prisão, se volta para trás, passa pela fogueira, pula o
muro e chega ao exterior da caverna. Lá está tudo que produz sombras na
parede da caverna e é iluminado pelo sol.
O
homem que se liberta sofre dor; não está acostumado com a forte luz do
sol. Ele começa a olhar as sombras, o reflexo nas águas, até poder
olhar o sol e entender que esse é que produz as estações e ilumina toda
aquela realidade.
Logo
que alguém soltasse um deles [homens algemados no interior da caverna], e
o forçasse a endireitar-se de repente, a voltar o pescoço, a andar e a
olhar para a luz, ao fazer tudo isso, sentiria dor, e o deslumbramento
impedi-lo-ia de fixar os objetos cujas sombras via outrora. (PLATÃO,
1993: 316)
Depois
de observar tudo isso, o prisioneiro que se soltou volta para a caverna:
o
prisioneiro que se escapou da caverna onde só contemplava sombras e que
chegou à clara luz do dia, à visão da realidade, não deve guardar as
suas descobertas só para si, não pode deixar de voltar atrás, deixar de
descer à caverna, deixar de trazer aos outros prisioneiros, menos
favorecidos pela sorte, um reflexo da luz que ele contempla. (KOYRÉ,
1963: 101)
Ao
retornar à caverna e contar para os seus o que viu do lado de fora, o
homem que se libertou seria zombado e pensariam que ele havia estragado a
visão nesse percurso, denotando não valer a pena a ascensão. Assim, os
homens optam por continuarem algemados no interior da caverna, sem ter
acesso ao conhecimento pleno.
A
alegoria da caverna é a imagem da educação platônica. Ela tem
correspondência direta com a analogia da linha, como se pretende mostrar.
A
caverna corresponde ao mundo do visível e o Sol é o fogo cuja luz se
projeta dentro dela. A ascensão para o alto e a contemplação do mundo
superior é o símbolo do caminho da alma em direção ao mundo inteligível.
[...] O conhecimento do verdadeiro Ser representa ainda a passagem do
temporal ao eterno. A última coisa que na região do conhecimento puro a
alma aprende a ver, com esforço, é a idéia do Bem. Mas, uma vez que
aprende a vê-la, necessariamente tem de chegar à conclusão de que esta
idéia é a causa de tudo quanto no mundo existe de belo e de justo.
(JAEGER, 1979: 828-9)
Interior
e exterior da caverna correspondem, respectivamente, à esfera sensível e
esfera inteligível. Estar no interior da caverna é permanecer iludido
com as aparências e não ter acesso ao conhecimento. Sair da caverna é
ascender ao conhecimento, atingir a esfera inteligível e acessar as
Formas. O que se vê no exterior da caverna é o que está fora da esfera
sensível e poder contemplar as Formas perfeitas é, através da
filosofia, atingir o cume da linha representada anteriormente por Platão.
De
acordo com essa alegoria [da caverna], estudar filosofia torna-se processo
de se libertar das algemas e, esforçadamente, conseguir ver, primeiro, a
fogueira, depois a boca da caverna e, por fim, o mundo exterior iluminado
pela luz solar. Uma vez fora, os iniciados têm de se acostumar àquela
luz fulgurante, olhando, primeiro, as sombras e reflexos dos humanos e
outras coisas, em seguida as próprias coisas e, finalmente, a fonte de
toda a luz, o sol. Não admira que quem regresse à caverna e tente
desenganar os prisioneiros que lá ficaram das suas ilusórias opiniões
acerca da realidade seja desprezado e escarnecido: ignorantes da grande
luz que atrás deles brilha, os prisioneiros tomam a desorientação de
alguém que caminha da luz para a escuridão pela confusão
superficialmente semelhante de quem passa da escuridão para a luz.
(PAPAS, 1995: 147)
O
homem que sai da caverna alcança o saber real porque ele conhece o que
existe no mundo das Idéias. Platão revoluciona, assim, a concepção de
saber; conhecer passa a ser visitar o mundo das Idéias, conhecer as
Formas no seu lugar de origem, ou seja, aquilo que produz as sombras na
esfera sensível. Quem alcança o inteligível não se preocupa mais com
assuntos dos homens, mas preocupa-se em manter a sua alma nas alturas.
Essa
caracterização da alma que executa todas as operações, que atinge o
ponto mais alto da linha da analogia ou aquela que escapa das amarras da
caverna, ou seja, o verdadeiro filósofo, ratifica a importância de que o
governo da cidade esteja sob os cuidados de um filósofo ou que o
governante se torne filósofo. O caráter nobre de quem conhece o inteligível
e entende tudo isso deve guiar a cidade na sua existência, pois é alguém
que sabe, que conhece como nenhum outro na cidade. Desta forma a alegoria
da caverna se revela uma Paidéia.
A
filosofia, capaz de levar o sujeito ao conhecimento das Formas, não é o
engajamento de todos.
A
filosofia [...] é muito perigosa. Exigem coragem, perseverança, dons
excepcionais. Por isso, a prova pela filosofia é a prova decisiva. E é
entre os que saírem vitoriosos e que, pelo preço de longos e pacientes
esforços, chegarem finalmente à verdade, à contemplação ou
conhecimento intuitivo do Ser e do Bem, que serão escolhidos, mais tarde,
os verdadeiros chefes, os reis-filósofos da Cidade platônica. (KOYRÉ,
1963: 100)
A
segunda metade do livro VII da República
deixa transparecer ainda mais o sentido de Paidéia da alegoria da
caverna. Os participantes do diálogo querem saber que tipo de ciência
poderia levar a alma do que é mutável para o que é seguro, de impedir
que a alma do homem fique a transitar entre as luzes e as trevas e que ela
não permaneça dentro da caverna, como aqueles homens da alegoria.
A
investigação sobre o que torna a alma instável ou não deve proceder
com o olhar atento sobre os diversos tipos de alma. Aqui a preocupação
com a educação do cidadão será tão intensa quanto no livro III desta
mesma obra, quando se falava da educação do guardião da cidade
perfeita, com algumas diferenças: lá ginástica e música educavam as
duas faces da alma; aqui Sócrates acrescenta na educação do cidadão a
matemática, incluindo nestas ciências como a aritmética, geometria e
astronomia.
Sócrates
regressa finalmente à questão original desta digressão dentro de uma
digressão: que passos terão de dar os dirigentes da cidade em direção
aos filósofos atentos não aos aspectos mutáveis do mundo mas às
verdades eternas do reino inteligível? O restante do Livro VII sugere um
currículo para efetuar a conversão. À música e à ginástica, que
garantiriam a educação dos guardiões nos Livros II e III, Sócrates
acrescenta a matemática: esta inclui a aritmética, a geometria, plana e
dos sólidos, a astronomia e a harmonia. (PAPAS,
1995: 149)
A
importância destas ciências na vida do homem é observadas nas diversas
classes, como na dos guardiões, que devem usar a matemática e a
geometria para auxiliá-los na arte da guerra. Mas todas as ciências
mencionadas acima devem atuar, em conjunto, na formação do cidadão, ou
melhor, contribuir para a constituição do melhor cidadão para a cidade
perfeita. Sócrates realça o poder e importância da educação afirmando
que para tudo o que a alma não sabe fazer ela pode ser treinada e se
acostumar, exceto com o pensar. Não funciona desta forma quanto se trata
de pensar, porque isso possui um caráter divino. Não muito neste livro,
mas em outros da República,
aponta-se para o fato de, dado esse ponto especial e divino, o pensar não
poder ocorrer de forma agressiva e sob tortura. Quem não passou por uma
boa educação e formação não deve ser colocado na governança da
cidade, pois será incapaz de bem conduzi-la.
Dado
o ponto de Paidéia da analogia da linha e do movimento de ascensão ao
conhecimento, aqueles homens que participam do diálogo querem saber que
tipo de ensino faz o homem galgar degraus em direção ao conhecimento máximo
e que tipo de estudo o aproxima do Ser, da verdade e do invisível, ou
seja, do inteligível. “Mas eu, por mim, não posso pensar em nenhum
outro estudo que faça a alma olhar para cima, senão o que diz respeito
ao Ser e ao invisível.” (PLATÃO,
1993: 340)
Nobre
ciência que encaminha o sujeito para o Ser e para a verdade é a
filosofia. Há muito Sócrates já havia se preocupado em dizer que o filósofo
é envolvido com o Ser e com ele se preocupa. Por isso também o homem filósofo,
que é o único na cidade a desprezar o poder e honrarias políticas,
estará no governo da cidade e sobre sua tutela estarão todos os demais
cidadãos, quem ele deverá guardar. Sendo ele aquele que “saiu da
caverna”, tem o saber verdadeiro e conhece as Formas, é o melhor para
estar na condução da cidade e dos seus cidadãos, aquele que livrará a
cidade de todas as suas calamidades, sendo um governo consciente. A
filosofia é vista como aquela que conduz a alma para aquilo que não é
mutável. Todas as outras ciências, embora componham a educação dos
guardiões, trabalham com o que é mutável ou elas mesmas variam. Assim
ocorre com a ginástica, que prepara só o corpo; com a música, que
trabalha só o ritmo, harmonia e regularidade; com a arte, que somente
representa o que lhe aparece.
A
filosofia conduz o homem no conhecimento do bem, daquilo que há de mais
supremo, como muito visto na analogia da linha. O homem filosófico
conhece o que realmente é e teve acesso à Forma principal, aquela que é
unificadora. A filosofia é
a
libertação das algemas e o voltar-se das sombras para as figurinhas e
para a luz e a ascensão da caverna para o Sol, uma vez lá chegados, a
incapacidade que ainda têm de olhar para os animais e plantas e para a
luz do Sol, mas, por outro lado, o poder contemplar reflexos divinos na água
e sombras, de coisas reais, e não, como anteriormente, sombras de imagens
lançadas por uma luz que é, ela mesma, apenas uma imagem, comparada com
o Sol – são esses os efeitos produzidos por todo este estudo das ciências
que analisamos; elevam a parte mais nobre da alma à contemplação da visão
do mais excelente dos seres, tal como a pouco a parte mais clarividente do
corpo se elevava à contemplação do objeto mais brilhante na região do
corpóreo e do visível. (PLATÃO,
1993: 345)
Contudo,
Sócrates diz que é preciso ter “agudeza de espírito”
para o estudo e não apresentar dificuldades para tanto. Comumente as
almas [os homens] têm mais receio dos estudos do que dos exercícios e da
ginástica, por isso faz-se necessário descobrir as tendências naturais
de cada alma, diagnosticar para qual lado tende mais cada homem na cidade
perfeita, para que esses possam assumir funções de acordo com o que as
suas habilidades mais apontam; que os tendentes aos estudos se coloquem
neste ramo e os tendentes à ginástica se coloquem a treinar e a ficar
cada vez melhores. Isso deve ocorrer desde quando as pessoas são novas,
para que aproveitem ao máximo as suas capacidades.
Os
cidadãos devem fazer uso das ciências, principalmente daquelas que
auxiliam a dialética, o quanto antes, da mesma forma que se colocam a
descortinar as suas tendências.
Desde
crianças que devem aplicar-se à ciência do calculo, da geometria e a
todos os estudos que hão de preceder o da dialética, fazendo que não
sigam contrafeitos estes planos de aprendizado. [...] Quem é livre não
deve aprender ciência alguma como uma escravatura. E que os esforços físicos,
praticados à força, não causam mal algum ao corpo, ao passo que na alma
não permanece nada que tenha entrado pela violência. (PLATÃO,
1993: 352)
É
evidente a importância dada ao bem por Platão e seu caráter divino:
Em
relação à natureza, a feição socrática leva Platão a uma suprema
filosofia, que é a teoria das idéias, a qual é, em derradeira instância,
teologia, dissociada da física. No campo da política, o conhecimento do
Bem, encarado como meta de todos os atos, conduz ao reinado dos filósofos,
isto é, dos representantes da nova religião do espírito, no Estado da
idéia pura. (JAEGER,
1979: 834)
A
filosofia, assim como o bem, encontra-se na esfera inteligível. Possui
importância tanto quanto aquele; filosofia e bem são indissociáveis no
que diz respeito à suas importâncias para o homem. A filosofia aparece
como um processo daquele que tem acesso ao bem, estado daquele homem que
conhece o bem ou a Forma principal, singular e suprema que ordena toda a
realidade.
Considerações
finais
Tal
e qual no restante da República,
quando os participantes do diálogo se colocam a investigar o significado
de justiça, a exposição sobre a importância do filósofo para a cidade
é cuidadosa e estruturada em argumentos fortes e consistentes.
O
início do livro VI revela-nos aqueles homens preocupados em investigar a
alma filosófica sem fazer grandes afirmações como que o filósofo deve
assumir o governo da cidade. Só a partir do momento que a alma do homem
filósofo passa a ser descortinada e a se mostrar “diferenciada” das
demais é que Sócrates, conduzindo o diálogo, aponta a importância do
filósofo na cidade e de que esse é capaz de livrar aquela das
calamidades.
Todo
“poder” do filósofo fica mais evidente com a analogia da linha,
quando o bem é posto no mais alto ponto da linha e só a alma no seu último
movimento é capaz de alcançá-lo. O filósofo é aquele que possui o
saber real, conhece a Forma unificadora, mas não está neste estágio por
um passe de mágica, mas porque a sua alma passou por todos as operações
e atingiu o cume dos graus do Ser na linha dividida.
A
diferenciação do filósofo acontece ainda na alegoria da caverna, de
certa forma uma volta à analogia anterior. O filósofo é aquele que se
liberta das amarras, sai da caverna e enxerga as Formas reais que provocam
as sombras nas paredes e formam a realidade para aqueles homens que
permanecem alienados e algemados no interior da caverna.
O
homem possuidor de alma filosófica não se contenta em visitar a esfera
inteligível, onde estão as idéias, as Formas. Ele deseja anunciar aos
outros homens que o que eles vêem são apenas fenômenos, aparências,
sombras da realidade que não está naquela esfera sensível, mas na
inteligível. Ao fazer isso, prevê Sócrates, o filósofo é zombado e
morto por duvidar daquilo que os olhos constatam. Qualquer proximidade da
sorte do homem filósofo na República
com a vida de Sócrates e sua condenação em 399 a.C. não é mera
semelhança.
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