No
início do artigo “Os excluídos existem? Notas para a elaboração
de um novo conceito”, Luciano de Oliveira chama a atenção para o
fato de que a problemática da exclusão há tempos está presente nas
discussões sobre a situação social do Brasil e que passou a prestar
aos mais diversos usos. Essa constatação o leva a discorrer sobre a
natureza epistemológica do conceito e sua aplicação no cenário
nacional e internacional. Para o autor, chamar todos e quaisquer
grupos sociais desfavorecidos de excluídos pode levar a
contra-sensos, sendo necessário assimilarmos as suas origens e
naturezas distintas, assim como tratarmos a questão com estratégias
diferentes (1997, p. 50).
Até
o decênio de 1980, os “excluídos” eram vistos como resíduos
esquecidos pela prosperidade dos trinta anos que se seguiram ao pós-guerra.
Já em meados de 1980 começaram a ser considerados como algo
estrutural, ao mesmo tempo em que o desemprego se mostrava
essencialmente como subproduto do desenvolvimento tecnológico e científico,
“por sua capacidade de liberar mão-de-obra e, no caso dos que
conseguem emprego, de precarizar a relação empregatícia clássica,
que era a do contrato de trabalho por tempo indeterminado” (1997, p.
49). Quanto ao uso atual do conceito “exclusão”, Luciano de
Oliveira distingue dois traços característicos: o primeiro se
relaciona com o chamado desemprego estrutural e reporta-nos aos
“excluídos” que se tornaram “desnecessários” economicamente;
o segundo traço diz respeito aos “excluídos” desnecessários não
apenas econômica, mas, sobretudo, socialmente: mais do que isso,
tornaram-se “socialmente ameaçantes e, por isso, passíveis de
serem eliminados” (1997, p. 52).
No
tocante ao primeiro traço, Robert Castel considera que o uso
impreciso do conceito exclusão oculta e, ao mesmo tempo, traduz o
estado atual da questão social, pois se detém nos efeitos mais visíveis
e imediatos da crise, reduzindo-a erroneamente a aspectos pontuais e não
a “um processo geral de desestabilização da condição salarial”
(1997b, pp. 32 e 33). Na França, por exemplo, a fragilização das
proteções historicamente conquistadas no mundo do trabalho
explicaria a vulnerabilidade das massas e, no limite, a chamada
“exclusão”
(1997b, p. 33).
Podemos
dizer que o uso desse conceito rotula a “exclusão” sem analisar
de onde provém, autonomizando situações-limite que só fazem
sentido quando colocadas num continuum. Como conseqüência,
usualmente percebemos que a luta contra essa mesma “exclusão” se
reduz a um pronto-socorro social, fomentando propostas reparadoras e
pontuais ao invés de políticas preventivas e que de fato se
proponham à transformação. “Economiza-se a necessidade de se
interrogar sobre as dinâmicas sociais globais que são responsáveis
pelos desequilíbrios atuais”. Dessa forma, seria um absurdo
falarmos em situações fora do social, visto que de fato há os in
e os out, mas estes fazem parte de um mesmo universo social. O
que está em jogo, portanto, “é reconstruir o continuum de
posições que ligam os in e os out, e compreender a lógica
a partir da qual os in produzem os out” (CASTEL,
1997b, p. 23).
O
sociólogo José de Souza Martins considera que o conceito exclusão (inconceituável,
impróprio, vago e indefinido) veio substituir a idéia sociológica
de “processo de exclusão”, atribuindo-se mecanicamente todos os
problemas sociais e distorcendo a questão que pretende explicar.
Assim, talvez pudéssemos negar a existência da exclusão: o que
existem são vítimas de processos sociais, políticos e econômicos
excludentes. Quando concebida como um estado fixo fatal e incorrigível
e não como expressão de contradição do desenvolvimento da
sociedade capitalista, a exclusão cai sobre o destino dos pobres como
uma condenação irremediável (1997, pp. 14-16).
Essa
mesma “exclusão” fala de “situações objetivas de privação,
mas não nos fala tudo nem nos fala o essencial” (MARTINS, 2002, p.
43); a partir dela não se luta por transformações sociais, mas sim
“em favor de relações sociais existentes, mas inacessíveis a uma
parte da sociedade” (2002, p. 47). E, mais do que isso, discutindo a
“exclusão” “deixamos de discutir as formas pobres,
insuficientes e, às vezes, até indecentes de inclusão”
(1997, p. 21).
De
fato, um dos dilemas de Luciano de Oliveira é que uma nova dicotomia
surge: os incluídos em oposição aos excluídos. Essa construção,
entretanto, nega o ponto de vista praticamente hegemônico nas Ciências
Sociais que é justamente a perspectiva antidualista de inspiração
marxista: é um disparate nos referirmos a “excluídos” quando
esses mesmos indivíduos não se encontram fora, mas, antes, inseridos,
embora precariamente, no sistema econômico. “Qual o sentido de
falar em duas ordens de realidade, dos “incluídos” e dos “excluídos”,
se ambas são produzidas por um mesmo processo econômico que, de um
lado, produz riqueza e, de outro, miséria?” (1997, p. 53).
Inclusive, nas condições brasileiras, esse “lumpenproletariado”
gerado pelo capitalismo, além de funcional ao sistema enquanto exército
de reserva, é utilizado pelos segmentos integrados ao mercado de
consumo como mão-de-obra barata, realocando cada vez mais recursos
para o setor dinâmico (1997, p. 53). Não nos esqueçamos das classes
médias que, no geral, não titubeiam em contratar empregados domésticos
por salários baixíssimos para cuidar de suas casas, de sua comida e
de sua sujeira, ao mesmo tempo em que não suportam que estes mesmos
empregados utilizem os seus banheiros e o seu elevador.
A
sociedade capitalista “tem como lógica própria tudo desenraizar e
a todos excluir porque tudo deve ser lançado no mercado”. Ela
desenraiza e exclui para depois incluir segundo as suas próprias
regras. É justamente aqui que reside o problema: nessa inclusão precária,
marginal e instável (MARTINS, 1997, pp. 30-32). O período de
passagem do momento da “exclusão” para o momento da “inclusão”
implica certa degradação e, segundo Martins, a sociedade moderna vem
criando uma grande massa de população sobrante que tem poucas
chances de ser novamente incluída nos padrões atuais de
desenvolvimento, ou seja, o período de passagem entre “exclusão”
e “inclusão”, que deveria ser transitório, vem se transformando
num modo de vida permanente e criando uma sociedade paralela que é
includente do ponto de vista econômico e excludente do ponto de vista
social, moral e até político (1997, pp. 33 e 34).
Daí
Martins sugerir a existência de uma sociedade dupla, abrigo de duas
humanidades: uma humanidade constituída de integrados, ou seja, de
uma população de pobres e ricos inseridos nas atividades econômicas
e com lugar garantido no sistema de relações sociais e políticas; e
uma sub-humanidade, incorporada por meio do “trabalho precário no
trambique, no pequeno comércio, no setor de serviços mal pagos ou,
até mesmo, excusos” e que se baseia “em insuficiências e privações
que se desdobram para fora do econômico”. Isso quer dizer que
muitas pessoas estão integradas economicamente, mesmo que de forma
precária, mas que criam um mundo à parte, pois estão separadas por
categorias sociais rígidas que não oferecem alternativa de saída e
que fazem crescer a consciência de que para elas não há justiça
(1997, pp. 35 e 36). Para Martins, a inclusão até acontece no plano
econômico, pois a pessoa ganha algo para sobreviver, mas não ocorre
no plano social e não ocorre sem causar deformações morais. O caso
dramático das crianças que se prostituem em Fortaleza ilustra essa
situação: por um lado, elas estão inseridas “no mercado possível
de uma sociedade excludente”, mas o serviço que prestam compromete
sua dignidade. Ӄ exatamente o caso delas que revela o lado oculto
ou que nós queremos ocultar dessa inclusão: elas se integram
economicamente, mas se desintegram moral e socialmente” (1997, pp.
33 e 34).
Não
se trata, por outro lado, de proscrevermos totalmente o termo exclusão
e sim de nos perguntarmos sob quais condições o seu emprego é legítimo.
Isso porque “se podemos, hoje, duvidar se estamos numa sociedade de
exclusão, é incontestável que existiram sociedades de exclusão”
(1997b, p. 35). Isso é o que diz Castel, que reconhece três
subconjuntos de práticas de exclusão ao longo da história. O
primeiro consistiria na supressão
completa da comunidade e o genocídio seria a sua forma última
– aqui estariam os mouros e os judeus apátridas produzidos pelo
nazismo, além das diferentes categorias de banidos. Para Castel, essa
modalidade de exclusão, a mais radical de todas, parece impossível
hoje em dia, a não ser pela degradação política e social completa.
O segundo subconjunto de práticas da exclusão, que parece bem menos
improvável na atualidade, resultaria na construção de espaços
fechados e isolados dentro da própria comunidade – seriam os
guetos, os leprosários, os asilos para loucos e as prisões para os
criminosos. Finalmente, o status especial atribuído a certas
categorias da população para que possam coexistir na comunidade, com
a privação, porém, de certos direitos e da participação em
determinadas atividades, seria um outro subconjunto de práticas de
exclusão e talvez a principal ameaça nos nossos dias, pois a
discriminação positiva pode facilmente se tornar negativa,
categorizando determinados grupos como cidadãos de segunda classe
(1997b, pp. 35-44).
Castel
sugere que falemos em precarização, vulnerabilidade, marginalização,
mas não em exclusão. No seu artigo “A dinâmica dos processos de
marginalização: da vulnerabilidade à desfiliação”, o autor
adverte que essas situações marginais têm origem no processo de
desligamento em relação ao trabalho e à inserção social. Nesse
duplo processo de desligamento podemos distinguir três formas de
degradação que, agrupadas, originam três zonas: zona de integração
(trabalho estável e forte inserção relacional), zona de
vulnerabilidade (trabalho precário e fragilidade dos apoios
relacionais) e zona de desfiliação (ausência de trabalho e
isolamento relacional). O sociólogo francês ainda distingue uma
quarta: a zona de assistência, na qual se insere o tratamento
dado aos indigentes inválidos (1997a, p.23). Assim, talvez não seja
incoerente nos referirmos a
categorias da população que sofrem de um déficit de integração
e, portanto, estão “ameaçadas de exclusão”. Tais processos de
marginalização podem resultar em exclusão propriamente dita, ou
seja, num tratamento explicitamente discriminatório (1997b, p. 41).
Nesse
aspecto, e sem negar a visão antidualista, Luciano de Oliveira
visualiza um perigo crescente que começa a tomar conta da sociedade
brasileira: “concomitantemente à produção de seres humanos sem
lugar no mundo, as pessoas “normais” começam a desenvolver em
relação a estes um sentimento de hostilidade, o que pode levar ao
aparecimento de uma mentalidade exterminatória” (1997, p. 58). O
autor fala num processo de extermínio dos excedentes: as chacinas e
execuções crescentes no cenário brasileiro contemporâneo, cujo
mais recente retrato está no assassinato em série de moradores de
rua da cidade de São Paulo, são o limite do processo de exclusão,
“na mais insuperável radicalidade do termo” (1997, p. 60).
Este
seria o segundo traço característico do uso atual do conceito
“exclusão” e nos remete a um processo que pode levar a uma
mentalidade de extermínio de indivíduos que, sem possuírem um lugar
determinado no mundo (do consumo) e “levando muitas vezes uma vida
considerada subumana em relação aos padrões normais de
sociabilidade“, são percebidos como socialmente perigosos e, por
isso, indesejáveis (1997, pp. 51, 52 e 57). Em outras palavras, por não
estarem integrados ao mercado considera-se que esses indivíduos
estejam excluídos da sociedade e da própria órbita da humanidade.
Martins
não deixa de acenar para o desenvolvimento dessa “mentalidade
exterminatória” ou para os indivíduos que se tornam “socialmente
desnecessários”.
É
preciso, sobretudo, compreender a nossa incompreensão, a nossa resistência
em compreender o outro como agente de reprodução da iniqüidade que
o vitima e ao vitimá-lo nos vitima também. Porque no fim, na prepotência
de querer libertá-lo, o que queremos é nos libertar, num certo
sentido, nos libertar dele. Porque não estamos propondo a construção
do novo – apenas a extensão a ele do que já é velho, dos
mecanismos de reprodução das relações sociais e não de produção
de novas relações (2002, p. 45).
A
exclusão emana de uma ordem de razões proclamadas, ou seja, ela não
é arbitrária e sim legitimamente reconhecida, produto de
procedimentos oficiais que representam um verdadeiro status (CASTEL,
1997b, p. 40). Talvez a utilização desse conceito nos reporte a uma
mentalidade conservadora, para não dizer arrogante, que julga o modo
de vida dos integrados na sociedade de consumo como o ideal e
considera aqueles que não têm acesso a ele como excluídos. “Falar
de exclusão ao “excluído” é humilhá-lo, um gesto de prepotência
interpretativa próprio de quem pertence ao mundo do mando e não ao
mundo do nós e da partilha” (MARTINS, 2002, pp. 44 e 45). O que se
coloca em questão, assim, não é o sistema que gera processos de
exclusão, mas as vítimas desse sistema.
Basicamente,
exclusão é uma concepção que nega a História, que nega a práxis
e que nega à vítima a possibilidade de construir historicamente seu
próprio destino, a partir de sua própria vivência e não a partir
da vivência privilegiada de outrem. (...) A idéia de exclusão
pressupõe uma sociedade acabada, cujo acabamento não é por inteiro
acessível a todos. Os que sofrem essa privação seriam os “excluídos”
(MARTINS, 2002, pp. 45 e 46).
As
demandas desses “excluídos” são igualmente capturadas pelo
conservadorismo, cristalizando-se como reivindicações puramente
quantitativas que visam à inclusão precária numa sociedade
perversa. Em outras palavras, valorizando a sociedade existente, o que
se demanda não é a transformação da ordem social, mas, antes e tão
somente, a reafirmação dela. Assim, os pobres adentram no mundo do
consumo e tornam-se cúmplices do mundo responsável pela sua pobreza.
Aderindo à lógica do consumo mascaram a realidade social,
“realizam a sua plena e impotente integração social” e “negam
no imaginário e na vivência a propalada “exclusão social” de
que falam os militantes da classe média incomodada” (2002, p. 37).
“Os pobres, do mesmo modo que as elites e a classe média,
descobriram que na sociedade contemporânea o consumo ostensivo é um
meio manipulável de realização da pessoa” (2002, p. 37). O que
importa é consumir independentemente dos meios ilícitos,
degradantes, precários e violentos que são necessários trilhar para
chegar a tal fim.
Desse
modo, as estratégias utilizadas para tratar da “exclusão”
desenvolvem “técnicas sociais de ocultamento das marcas sociais de
sua degradação”, escondendo a verdadeira condição social e as
contradições do sistema capitalista (2002, p. 39). São orientações
aparentemente generosas que mascaram a face autoritária e intolerante
da preocupação com a exclusão social, que sempre sugere que “os
próprios “excluídos” não sabem o que fazer consigo mesmos”
(2002, p. 40).
Estamos
em face, portanto, de uma carência política, de uma falta de expressão
política dos excluídos para se opor aos “includentes” e ao seu
autoritarismo. Em outras palavras, os que querem ajudar os “excluídos”
dizem, sem dúvida, ao menos uma meia verdade – a necessidade de
ampliar e modificar o modo e a forma de inclusão espontânea. E dizem
outra meia verdade – a de que o modo espontâneo da inclusão é
insatisfatório não para os “excluídos”, mas para o imaginário
da classe média, para os valores que ela proclama e para a sociedade
que ela deseja (2002, p. 41).
Luciano
de Oliveira encerra o artigo indagando sobre o verdadeiro sentido do
conceito exclusão. E é ele mesmo quem responde: em relação às
causas do fenômeno, “o ponto de vista antidualista é o mais
apropriado, sob pena de cairmos no dualismo ingênuo e insuportável
(...) de acharmos que os miseráveis são os responsáveis pela própria
miséria”. Por outro lado, “ocorre que analisar o problema dos
excluídos sob o viés econômico nada nos diz sobre a necessidade –
que não é econômica, mas ética e política – de sua inclusão”
(1997, p. 60).
E
assim como Martins ressalta que devemos nos livrar de estereótipos
que nos enganam e que ao invés de expressar uma prática – a exclusão
– acabam por induzi-la e, mais ainda, que é necessário
modernizarmos a sociedade, revolucionando suas relações arcaicas,
ajustando-as de acordo com as necessidades do homem, e não de acordo
com as conveniências do capital (1997, pp. 37 e 38); e assim como
Castel que apenas visualiza a imposição do livre acesso ao trabalho
ao preço de uma perturbação revolucionária do conjunto das relações
sociais e evidencia que a “luta contra a exclusão” deve ser
conduzida pela via da prevenção;
Oliveira insiste na necessidade de atacarmos as causas dos processos
de exclusão e não somente os seus efeitos. Apesar disso, termina o
seu artigo com uma frase que nos faz temer o futuro, dados os indícios
de desenvolvimento de uma mentalidade de extermínio na sociedade
brasileira: “o conceito de excluídos tem uma razão teórica mas,
sobretudo, ética e política: é ele que nos interpela sobre a
natureza da polis que estamos construindo” (1997, p. 60).