MARCO ANTONIO FACIONE BERBEL

Acadêmico do 4º ano de graduação do curso de Filosofia da Universidade Estadual de Maringá - UEM

 

O Príncipe Novo e o Poder Político-Militar n’O Príncipe de Maquiavel

Marco Antonio Facione Berbel

 

Resumo:

O presente trabalho tem por objetivo apresentar a importância do poder político-militar, tendo como foco de atenção os capítulos XII, XIII e XIV do príncipe.

Quando Maquiavel insere a questão do poder militar em suas reflexões, procura evidenciar sua necessidade, pois, tanto na conquista, como na manutenção de um Estado, o príncipe necessita fazer com que suas determinações e leis prevaleçam. Então, a partir desse momento, em que o príncipe deve colocar-se como sujeito de ação política, ele deve atentamente observar os melhores meios de fundar e conservar um Estado. Para tanto Maquiavel ressalta dizendo: “As fundações principais para todos os Estados, sejam novos, velhos ou mistos, são as boas leis e um bom exército”[1]. Dessa forma, procuraremos analisar como Maquiavel discute a importância do poder militar para efetivar essa conservação.

Palavras chave: Maquiavel - Poder político-militar - Exército

Abstract:

The present work has for objective to present the importance of the power politician-military man, having as focus of attention chapters XI, XIII and XIV of the prince.

When Maquiavel inserts the question of could militate in your reflections, it tries to evidence your need, because so much in the conquest, as in the maintenance of a State, the prince needs to do with that your determinations and laws prevail. Then, to leave of that moment, in that the prince should be placed as subject of political action, he sincerely should observe the best means of to found and to conserve a State. For so much Maquiavel it points out saying: "The main foundations for all the States, be new, old or mixed, they are the good laws and a good army". In that way, we will try to analyze like Maquiavel it discusses the importance of could militate to that execute.

 

Retrato de Maquiavel (detalhe), por Santi di Tito (séc. XVI)Nos primeiros onze capítulos d’ O Príncipe, Maquiavel se detém na apresentação das formas pelas quais os principados podem ser conquistados e fundados, devotando especial atenção para os principados novos, segundo ele, “as verdadeiras dificuldades estão no principado novo”[2], pois neste o príncipe necessita passar dos primeiros passos negativos da conquista e fundação, nos quais, ele “é apenas um destruidor que quer impor sua lei” (Bignotto, 1994),  para a positividade da conservação do poder. Seguindo esse itinerário, verificasse que em um primeiro momento o príncipe é um objeto estranho para o Estado, identificado como um usurpador, destruidor da ordem vigente, isso se deve ao fato do príncipe ter que destruir todas as antigas instituições do Estado, para estabelecer suas próprias. Para retirar de si esta imagem, ele necessita se fundir com o Estado através do estabelecimento de uma nova ordem, da qual ele seja o agente, efetivando com isso sua conquista. Entendendo que essa nova ordem (nuovi ordini), são as novas instituições que o príncipe deve determinar para regular o Estado, são elas: uma instituição que regule os humores do povo (populo) e dos nobres (grandi) como também possibilite a defesa do Estado, outra que estabeleça leis e impostos e por último uma que julgue a desavenças dentro do Estado.

Como foi dito acima, os problemas relativos a conquista e fundação do Estado são trabalhados, nos primeiros onze capítulos d' O Príncipe. Cabe então, efetuar uma pergunta: por que Maquiavel opta por trabalhar o que ele denomina como os principais alicerces de todos os Estados nos capítulos XII, XIII e XIV? Ora, nos primeiros capítulos ele procurou estabelecer os meios pelos quais os príncipes podem obter um Estado, sem com isso demonstrar de que forma esses podem atacar ou defender-se, assim o objetivo nos capítulos referidos será o de demonstrar como o príncipe deve proceder para oferecer ao Estado os melhores alicerces possíveis.

Segundo nosso autor, “os mais importantes alicerces de qualquer Estado, seja ele novo, velho ou ainda misto, são as boas leis e os bons exércitos”[3], são esses os sustentáculos dos Estados, a falta dos mesmos pode causar uma instabilidade, privando o príncipe de agir conforme a sua própria vontade. Isso porque, são esses dois pontos, as boas leis e o bom exército, que dá ao príncipe possibilidade de agir politicamente, sendo esses os fatores que oferecem a ele uma ação direta na esfera social, com os exércitos, que oferecem a base por meio da coerção às leis, e essas que devem ser cumpridas em nome da ordem. Sendo esses as principais bases de todos Estados, por que Maquiavel se abstém em falar das leis, dando preferência a argumentação com relação aos exércitos? Convém explicar esse raciocínio detalhadamente.

Maquiavel apresenta o seguinte raciocínio: “como não podem viger boas leis lá onde não existem bons exércitos, e porque onde há bons exércitos convém que vigorem boas leis (...)”[4]. Pode-se dividir esse argumento em duas partes: primeiro, em que é demonstrado que existe uma necessidade de antecipar a implantação do exército, deixando para instituir a lei em um momento posterior, isso porque o poder político-militar que apresenta o exército como exteriorização, demonstra-se como um fator do poder político, sendo ele que dá ao príncipe a capacidade de agir politicamente dentro do Estado. A falta do poder político-militar impossibilita o príncipe de fazer com que suas leis sejam cumpridas, sendo possível somente nos Estado onde a institucionalização dos exércitos é antecipada, antes desse momento o príncipe não tem a sua disposição uma base na qual ele possa se fundamentar, falta-lhe o alicerce para instituir algo realmente durável. Assim o estabelecimento das boas leis está atrelado de uma forma condicional ao poder político-militar, pois, enquanto não há exército, não há lei. Segundo ele, o caráter de necessidade para a determinação inicial do poder militar nasce da natureza mutável dos homens, que facilmente atentam contra o príncipe quando estão descontentes com ele. Moisés, Ciro, Rômulo e Teseu são apontados como exemplos de ação política, por conseguirem pelo intermédio do poder político-militar, fazer com que suas leis fossem  cumpridas.

Quando Maquiavel expõe a importância dos exércitos, configurado como um poder político-militar, oferece-lhe o estatuto de principal alicerce do novo Estado. Podemos ver essa importância, nos exemplos referidos no capítulo VI d’ O Príncipe, após a apresentação de grandes personagens históricos, que utilizaram o poder político-militar para fincarem seus domínios em bases sólidas, cita Hierão de Siracusa. A princípio, para um leitor descuidado, isto pode representar apenas um recurso estilístico, contudo, está sendo descrito algo muito mais importante. Nosso autor procura demonstrar ao leitor quão importante é a institucionalização do exército, porque não apenas repercutiu na história dos grandes homens, como também está presente em príncipes mais comuns como no caso de Hierão. Embora esses príncipes mais comuns não tenham a notoriedade dos grandes personagens históricos, fizeram o mais alto uso de sua virtù, assim sendo, é possível igualá-lo àqueles grandes exemplos, pois da mesma forma dependendo apenas de si, estabeleceram reinos.

As ações de Hierão de Siracusa devem ser vistas também como exemplo de virtù, sendo necessário analisá-las com cuidado. Quando ele assumiu o reino de Siracusa, extinguiu os exércitos antigos e procurou criar um novo que lhe fosse totalmente fiel. Assim, logo que um príncipe assume o Estado e não tem ao seu lado um exército que lhe seja fiel, nunca consegue edificar as bases do novo Estado, ficando a mercê da fortuna.Além do mais, como o exército corresponde ao poder político-militar, quem o detém está habilitado a requerer para si o poder do Estado, sendo capaz de subjugar até mesmo o príncipe, quando ele não tem o domínio total sobre o exército. Deste modo, é necessário ao príncipe comandar o exército pessoalmente, pois está é a melhor forma de proceder na instituição de uma base sólida, sobre a qual se levantará o edifício do novo Estado. Procedendo desse modo, não somente consegue se estabelecer como única autoridade dentro do Estado, como também torna-se admirado pelo povo por conseguir defendê-lo na adversidade.

Como o exército é o mais importante componente do poder político-militar, é adequado criar leis que forneçam ao príncipe a regulamentação do exército como também a do Estado, é importante dizer que a lei não se sobrepõe ao exército, mas é instrumento dele, sendo útil ao príncipe na obtenção do controle do exército, como também se demonstra útil ao exército na normalização da esfera pública. A utilização tanto do exército quanto da lei deve ser conduzida pelo príncipe de forma coordenada e uniforme, possibilitando-lhe uma ação política eficaz. Essa ação decorre da conjugação desses dois fatores à vontade dele, o exército demonstra-se como base, porque é dele o poder coercitivo que dá validade à lei por meio da força; quando o príncipe não o possui ou aquele que o possui não está subordinado a ele, instaura-se o caos, porque as leis do príncipe não se demonstraram efetivas, pois não há quem as faça cumprir com autoridade. É nessa medida, que a segunda parte do argumento maquiaveliano pode ser vista.

Diante disso, pode-se perguntar por que o poder político-militar é importante para a conservação e ação política? As principais preocupações do secretário florentino residem sobre a fundação e conquista do Estado, como também sobre sua preservação e defesa. Ora, faz-se necessário demonstrar como deve ocorrer a implantação do exército dentro do Estado, pois cabe a ele a indispensável função de preservação e defesa. Maquiavel procura identificar como os exércitos podem ser constituídos, faz isso procedendo de maneira negativa, ou seja, inicia pela enumeração dos tipos de exército que podem ser prejudiciais aos objetivos de manutenção do Estado, para posteriormente apresentar o exército que deve ser utilizado pelo príncipe. Podem ser indicados alguns pontos que corroboram para este tipo de procedimento. Primeiramente há uma necessidade de mostrar que o modelo comum de proceder nas questões militares se apresenta defasado, sendo essa a ruína da Itália, como também a instabilidade pela qual os príncipes passam em seus territórios. Em segundo lugar, tendo o exército um caráter de poder político-militar é necessário demonstrar as desvantagens que são causadas pelos exércitos que tem a guerra como ofício, para posteriormente mostrar como são vantajosos os exércitos que são formados dentro dos próprios Estados.

As análises efetuadas por Maquiavel com relação à natureza do poder militar advêm de dois fatores: primeiro por causa da influência que recebeu de suas observações, durante o período em que foi chanceler de Florença e posteriormente secretário de guerra do gonfonierre Soderine, onde viu uma Itália entregue a ação de tropas que se preocupavam muito mais com o soldo que era pago pelo príncipe, do que com a proteção desse que lhes pagava.  Segundo alguns historiadores[5] esse problema era agravado ainda mais por causa da displicência dos príncipes no tratamento dos problemas militares. As observações efetuadas por Maquiavel durante esse período foram fundamentais para a formação de suas concepções com relação aos exércitos e como eles devem ser ordenadas. O segundo ponto advém precisamente da importância do poder político-militar, tanto para conquista e fundação como também para a conservação, “a negligência de um príncipe em se prover de defesas próprias mostra-se um erro que repercute não somente sobre as relações de força, como se poderia crer até aqui, como também sobre a política”(Ames, 2002), assim é necessário ao príncipe o máximo de cautela nos tramites desse exercício que é denominado por Maquiavel como a ‘arte da guerra’.

Acompanhando o percurso de Maquiavel, depara-se no segundo parágrafo do capítulo XII, com a apresentação da tipologia de milícias que podem ser usadas por um príncipe para defender seu Estado, “podem ser próprias ou mercenárias, auxiliares ou mistas”[6]. Mas, logo em seguida, afirma que as mercenárias e auxiliares são inúteis e perigosas, não garantem ao príncipe a estabilidade necessária para a conservação do poder, isso porque essas tropas não tem uma identificação direta com o Estado, visto que elas têm simplesmente como oficio a guerra, não sendo leais nem ao príncipe e nem ao Estado, para o qual são contratadas à defender. Assim, é necessário demonstrar os motivos dessa infidelidade e os prejuízos que essas tropas podem causar.

O autor começa pela elucidação dos problemas que são apresentados pelas tropas mercenárias, as quais são extremamente prejudiciais à estabilidade do príncipe sendo impossível permanecer seguro sob o abrigo dessas tropas. Isso decorre de alguns fatores, tais como a desunião, a ambição a falta de disciplina e a infidelidade perante ao príncipe. Porém, segundo ele, esses riscos podem ser expressos mais claramente com os capitães das tropas mercenárias, os quais podem ser classificados em excelentes homens de armas ou não. Os capitães que comandam exército e são excelentes comandantes, exercem papel de dominância perante os seus soldados, e como o exército representa o poder político-militar, esses capitães têm em mãos um fator de poder preponderante. O capitão de exército mercenário que não tem obrigações para com o seu contratante, ou melhor dizendo para com o príncipe, pode requerer para si o poder dele, assim é impossível confiar a eles a defesa do Estado, pois como aspiram à própria grandeza subjugam tanto o príncipe quanto o Estado. O príncipe acaba sendo oprimido por eles ou estes acabam oprimindo à outra pessoa contra a sua vontade, isto decorre do fato do príncipe ter que depender dessas tropas para sua defesa ou ataque. Caso o comandante do exército mercenário não seja um exímio homem de armas, provocará naturalmente a ruína do príncipe, pois sucumbirá ao primeiro ataque inimigo. Segundo Maquiavel, a única solução para afastar de si os problemas referentes às tropas mercenárias, consiste em o próprio príncipe ser comandante e senhor de suas tropas, pois isso lhe oferece domínio total sobre o exército, não correndo risco de ser surpreendido por ninguém que tente se impor por meio da força. Procedendo assim o príncipe afasta o perigo dos capitães mercenários que podem tentar subjugá-lo, como também as próprias milícias mercenárias que não oferecem a estabilidade ao príncipe, causando apenas danos.

Maquiavel procura identificar a relação que se estabelece entre o poder das armas, que devem ser próprias daquele que governa, com a paz que surge por esse exercício, cita Roma e Esparta como exemplo, pois elas só estiveram livres, porque tinham a seu favor armas próprias. Dessa forma, quando o príncipe detém sobre seu comando exércitos próprios tem a possibilidade de efetuar ações realmente concisas, pois não fica exposto a ambição dos capitães mercenários, muito menos as tropas que são infiéis e vis, isso se deve ao interesse dessas, pois tendo a guerra como ofício estão preocupadas única e exclusivamente com o soldo que é pago pelo príncipe, e tendo interesse apenas no soldo, nunca demonstram a fidelidade necessária para o príncipe implantar as novas instituições, que fornecem ao príncipe a normalização da esfera social, e ao povo a liberdade. Com os exércitos mercenários o príncipe sempre ficará exposto a fortuna, ou melhor dizendo, o príncipe que depende desses exércitos para sua defesa ou ataque não tem virtù, porque não consegue antecipar a infidelidade desses exércitos. A dependência dessas milícias causa não somente uma instabilidade ao príncipe, mas também sua ruína.

Nas análises de Maquiavel, insere-se também outro tipo de exército, os auxiliares. Embora esses exércitos sejam tão prejudiciais quanto os exércitos mercenários, eles apresentam algumas outras características que comprometem ainda mais as ações dos príncipes. Pode-se observar a preocupação do secretário florentino com esse tipo de exército já no capítulo III d’ O Príncipe, onde ele procura alertar o príncipe com relação à entrada de um estrangeiro tão forte quanto ele em seus domínios[7].  Disso decorre o seguinte fato: quando um príncipe chama a seu auxílio uma força exterior, que seja mais forte que a sua, ocorre que essa força auxiliar pode tentar subjugá-lo, requerendo para si o poder do príncipe. Esse gênero de exército auxiliar, além de não fornecer ao príncipe conquistas seguras, porque sempre requereram essas para si, pode ocasionar desastres ainda maiores, visto que esses exércitos por terem grandes poderes, podem galgar não só o território para o qual foram chamados a auxiliar, como também aos demais pertencentes ao príncipe, podendo com isso causar-lhe uma ruína muito maior. Conquanto esses problemas são apenas enunciados, a investigação pormenorizada deles  é efetuada no capítulo XIII d’ O Príncipe.

Diz Maquiavel, “quem decidir que não quer vencer, valha-se dessas tropas [auxiliares]. São muito mais perigosas do que as mercenárias, pois, com elas a ruína é certa”[8]. Quando ele expôs o problema das milícias mercenárias, o principal foco de atenção residia na infidelidade, na desunião e na falta de vigor que elas demonstravam, isso impossibilitava o príncipe de efetuar ações que tivessem eficácia garantida. Com os exércitos auxiliares, o grande perigo é a virtù que eles demonstram, pois são extremamente unidos e fortes, sendo prejudiciais porque representam os interesses de outro soberano que não aquele pelo qual estão combatendo. Assim a partir do momento que conquistam uma vitória, o príncipe que as chamou se encontra em uma situação extremamente delicada, porque não tendo força suficiente para dissipar esses exércitos, acaba ficando prisioneiro da vontade daqueles que o comandam. Deste modo, como o exército representa o poder político-militar, essa atitude de chamar outros exércitos para atuarem em nome de um príncipe, pode lhe custar o comando soberano de seu território, ficando exposto ao domínio dessas tropas, pois eles obtêm o poder político-militar facilmente desalojam o príncipe e instituem o seu próprio governo. Conseqüentemente, qualquer vitória que se obtenha com exércitos auxiliares rapidamente se transforma em derrotas, porque as vitórias que se conquistam com armas de outros não são realmente vitórias e sim derrotas, porque sempre dependeram desses que o ajudaram a vencer.

A um terceiro caso de exército, os mistos. Estes exércitos são conjugados ao exército próprio, que não sendo forte o bastante para combater, tem necessidade de angariar mais força, embora o príncipe detenha o poder sobre parte do exército isso não é suficiente, pois sempre terá que partilhar o domínio do território com os que chamou, e como geralmente esses exércitos são mercenários, fica-se exposto a ambição dos mesmos. Dessa forma, o príncipe não detendo o comando total dos exércitos, não obtém o poder político-militar, pois precisa se submeter a outros para desempenhá-lo.

Segundo Maquiavel, a única medida que pode garantir ao príncipe domínio total do exército é fundá-lo no próprio Estado, não dependendo de mais ninguém além de si mesmo. Assim, o príncipe como líder político, deve ter segurança e domínio total da ação que empreende. Aqueles que a todo o momento recorrem a terceiros para fortalecer a própria ação política, não se demonstram dotados de virtù, pois não observam o mal ao nascer. O príncipe que é dotado de virtù ao contrário antecipa o mal, procura agir sozinho com suas próprias forças, pois esperando manter-se à frente do poder, cria seus próprios exércitos que são a base de todo Estado, através do qual o príncipe age com o poder político-militar. Dessa forma, “um príncipe não deve ter outro objetivo nem outro pensamento, nem praticar arte alguma fora a guerra”[9], pois é essa arte que dá ao príncipe não só o poder político-militar dentro do seu próprio Estado, como também a autonomia na sua ação, porque não depende de mais ninguém além de si mesmo. Quando um príncipe está desarmado, ele não pode obter respeito daqueles que se apresentam armados, ficando fragilizado a qualquer ação externa; um príncipe só obtém respeito tanto dentro quanto fora de seus domínios quando está munido de exércitos seus e atua no exercício da guerra. Como o príncipe pode agir na excussão da arte da guerra? Ora, o exercício da guerra depende muito mais dos tempos de paz, do que dos tempos de guerra.

Para nosso autor, existem dois tipos de exercícios que devem ser efetuados em tempos de paz para garantir ao príncipe, domínio total da arte da guerra e de suas tropas, são elas: os exercícios de campo, que são práticos e os exercícios com a mente, que dependem do estudo do príncipe. Convém analisar detalhadamente cada um desses exercícios, primeiramente o exercício de campo, serve tanto para manter os soldados do exército em forma e exercitados, como também se tem a possibilidade de conhecer o próprio território. Esse exercício aparentemente simples desempenha funções fundamentais na relação do príncipe com seus exércitos. A partir do momento que o príncipe está à frente dos exercícios de campo do exército, comprova sua perícia no trato da guerra, demonstrando aos seus soldados que ele é o único detentor do poder dentro do Estado, evitando que qualquer outro tente assumir o seu posto, reivindicando o poder para si. Como o exército é formado por cidadãos do próprio Estado, demonstra ao povo sua força, pois é ele que comanda pessoalmente o poder político-militar do exército. Com o próprio povo armado, ocorre uma identificação dele com o príncipe e com o Estado, promovendo com isso conquistas realmente concisas.

O príncipe que não observa essa relação de identificação entre povo e Estado, dificilmente matem-se à frente do poder. O príncipe quando fica instalado somente em seu palácio, e não se desloca por todo o seu território não se demonstra prudente, pois afasta de si algo que lhe é muito importante, a identificação do povo com o seu governante. O povo é peça fundamental na manutenção do poder do príncipe, “a um príncipe é necessário a amizade do povo, do contrário, não terá salvação na adversidade”[10], sendo somente o povo que pode dar ao príncipe a materialidade necessária para a manutenção do poder.

O exercício da arte militar com a mente deve se focar na leitura de livros de história e na reflexão da atitude dos grandes homens. Quando o príncipe se detém no exame detalhado dos procedimentos nos quais grandes personagens históricos obtiveram sucesso ou derrotas em sua empreitada na arte da guerra, pode procurar evitar os erros já cometidos e tomar como modelo àqueles que obtiveram sucesso. Maquiavel cita grandes personagens históricos que agiram tendo outros como exemplo, como é o caso de Alexandre o Grande que imitava Aquiles, César imitava Alexandre, Cipião imitava Ciro, etc., assim a melhor forma de proceder é procurar usar como espelho os que obtiveram vitórias, e agiam bem professando a arte da guerra.

Então, o príncipe que não observa a necessidade do exército que é o poder político-militar, bem como o encaminhamento da arte militar, pensando antes nos prazeres da vida, dificilmente se manterá à frente do poder, pois falta-lhe a base de ação política. Como Maquiavel disse, os Estados que não se apóiam em bases firmes, dificilmente se manterão em pé, pois como tudo na natureza que não tem raízes firmes perece, sendo a base do Estado o poder político-militar não se atentar ao seu desenvolvimento significa não construir aquilo que o sustenta, ficando exposto a fortuna.

Conclusão

Para concluir queria lançar uma pergunta: o poder militar é realmente importante para formação e manutenção de um Estado? Ora, pelo percurso aqui apresentado, parece pouco improvável que ele não desempenhe um papel de destaque na formação e manutenção de um Estado, visto que é dele que emana a base que dá sustentação ao governo. Sendo somente com a formação de um exército forte, que o príncipe tem a possibilidade de determinar o andamento da esfera social.

Conseqüentemente, sem o exército que representa o poder político-militar, dificilmente o príncipe se manterá à frente do poder. Para Maquiavel não é qualquer exército que representa o poder político-militar, mas apenas o exército que é próprio. Quando se depende de forças externas, tais como tropas mercenárias, auxiliares ou mistas para defender o Estado, dificilmente se evita a ruína, uma vez que se oferece aquilo que deve ser próprio dele - Estado - a outros. Portanto, é somente o exército próprio que representa o poder político-militar e sem ele, nenhum principado está seguro, dependendo exclusivamente da fortuna, visto que não tem a seu favor um exército que o defenda na adversidade. O armamento do povo garante ao príncipe total segurança, pois o povo vê na defesa da liberdade do Estado a sua própria defesa, o povo não sendo ameaçado e sim convocado a respaldar o governante, garante-lhe segurança e estabilidade. Ora, da negligência disso decorre instabilidade e inobservância da arte da guerra, pois de um príncipe só se espera isso.

 

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Bibliografia

Obras de Maquiavel:

MACHIAVELLI, Niccolò. Opere Politiche, cura di Mario Puppo, Firenze, Monnier, 1969.

______________, Nicolau. O Príncipe; [tradução Maria Lucia Cumo]. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

Obras de Referência:

AMES, José Luiz. Maquiavel: a lógica da ação política. Cascavel: Edunioeste, 2002.

BIGNOTTO, Newton, Maquiavel Republicano.São Paulo: Loyola, 1994.

LERIVAILLE, Paul. A Itália no tempo de Maquiavel: Florença e Roma.[tradução Jônatas Batista Neto]. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

 

[1] Maquiavel, Nicolau. O Príncipe; [tradução Maria Lucia Cumo]. Editora: Paz e Terra, 1996. Cap. XII.

[2] Maquiavel, N. O Príncipe. Cap. III. “Ma nel principato nuovo consistono le difficultà.”

[3] Maquiavel, N. O Príncipe. Cap. XII. “E' principali fondamenti che abbino tutti li stati, cosí nuovi come vecchi o misti, sono le buone legge e le buone arme.”

[4] Maquiavel, N. O Príncipe. Cap. XII. “E perché non può essere buone legge dove non sono buone arme, e dove sono buone arme conviene sieno buone legge.”

[5] Segundo Paul Lerivaille em seu livro “A Itália no tempo de Maquiavel: Florença e Roma”,as causas da derrocadas dos exércitos italianos diante das grandes potências européias, após 1494, são imputáveis não aos soldados italianos cujo valor individual permanece inalterado, mas aos príncipes que governavam a península, mais cortesãos do que guerreiros: a sua negligência em relação aos assuntos militares, à presunçosa incapacidade da maioria deles que desarma e condena ao fracasso os poucos chefes dignos desse nome, à ausência de um homem suficientemente afortunado ou talentoso para se impor aos outros e pôr fim às suas divisões. p. 66.

[6] Maquiavel, N. O Príncipe. Cap. XII. “o le sono proprie o le sono mercennarie, o ausiliarie o miste”.

[7] Maquiavel, N. O Príncipe. Cap.III. “guardarsi che per accidente alcuno non vi entri uno forestiere potente quanto lui”.

[8]Maquiavel, N. O Príncipe. Cap. XIII “che vuole non potere vincere, si vaglia di queste arme, perché sono molto più pericolose che le mercennarie: perché in queste è la ruina fatta”

[9] Maquiavel, N. O Príncipe. Cap. XIV. “uno principe non avere altro obietto né altro pensiero, né prendere cosa alcuna per sua arte, fuora della guerra”.

[10] Maquiavel, N. O Príncipe. Cap. IX. “a uno principe è necessario avere el populo amico: altrimenti non ha, nelle avversità, remédio”.

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Última atualização: 03 dezembro, 2004.