FABIANA MORTOSA FARIA

Bacharel em Artes Plásticas - Universidade Federal de Uberlândia e graduanda em História - UFU

 

Arthur Bispo do Rosário e seu universo representativo

Fabiana Mortosa Faria

 

Resumo:

Arthur Bispo do Rosario era esquizofrênico paranóide e viveu internado 50 anos em um hospital psiquiátrico (Colônia Juliano Moreira – Rio de Janeiro). Em seu surto, recebeu a missão de recriar o universo para apresentar a Deus no dia do Juízo Final.

Recolheu objetos dos restos da sociedade de consumo como forma de registrar o cotidiano dos indivíduos, preparou esses objetos com preocupações estéticas, onde percebemos características dos conceitos das vanguardas artísticas e das produções elaboradas a partir de 1960.

Utiliza a palavra como elemento pulsante. Ao recorrer a essa linguagem manipula signos e brinca com a construção de discursos, fragmenta a comunicação em códigos privados. Inserido em um contexto excludente, Bispo dribla as instituições todo tempo. A instituição manicomial se recusando a receber tratamentos médicos e dela retirando subsídios para elaborar sua obra, e Museus, quando sendo marginalizado e excluído é consagrado como referência da Arte Contemporânea brasileira.

Palavras-Chave: Representação - resignificação - escrita - arte

Abstract:

Arthur Bispo do Rosario was paranoid esquizofrenique and lived internated 50 years in a psiquiatre hospital (Colônia Juliano Moreira – Rio de Janeiro). In his paranoid, received the mission to recried the universe to introduce for God in the Final Day.

He catch objects of the rests of goods like a form of registering the hole day of the people, fixed these objects about static concern, where we noticed form of the artistcs vanguard objects and the elaboratade productions done since 1960.

The word is used like a pulsation element. To make use of this language it manipulate signs and plays with the construction of speechs, breaks over the communication into private codes. Into an excludent contexct, Bispo face the institution all the time. The manicomial instituction denying to medical treatment and taking out subsides of her to elaborate its art, and Museums, when discriminates and excluded is consagrade like a Brazilian Contempone Art. 

Key Words: Representation - resignification - writing - art

Arthur Bispo do Rosario era um homem misterioso cuja biografia pode ser descrita em poucas palavras. Segundo Frederico Morais[1], Bispo era...

... preto, solteiro, de naturalidade desconhecida, sem parentes, sem profissão, alfabetizado, com antecedentes policiais. Foi internado no dia 25 de janeiro de 1939. Diagnóstico: esquizofrenia paranóide. Na ficha de Bispo estão anotadas mais duas entradas na Colônia Juliano Moreira – RJ, em 23/08/1944 e 14/04/1948...

Bispo nasceu no ano de 1911, no estado de Sergipe. Em sua ficha na Colônia observa-se indicações de internações em outros hospitais psiquiátricos como o da Praia Vermelha e do Engenho de Dentro.

A produção artística de Bispo do Rosario teve início em 1939 e se encerrou 50 anos depois com seu falecimento de infarto do miocárdio, durante esse tempo viveu na Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, onde se dedicou fervorosamente à sua produção. De acordo com seu surto recebeu a missão de recriar o mundo para ser apresentado a Deus no dia do Juízo Final.

Seu trabalho não pode ser separado por fases - é contínuo - mas pode ser organizado segundo características que tornam semelhantes algumas obras. Frederico Morais organizou a obra e a dividiu toda em segmentos: 1- o texto: nos estandartes bordados; 2- as roupas: o Manto da Apresentação e os fardões; 3- os objetos: ready-made mumificados (enrolados por linhas muitas vezes conseguidas ao desfiar seu uniforme hospitalar) e construídos (barcos, miniaturas); 4- as assemblagens (ou vitrines, como dizia Bispo)[2].

As relações entre as obras de Bispo e as produções artísticas contemporâneas, podem ser observadas nos trabalhos de artistas de vanguarda, e principalmente nas produções da década de 60 em diante. As repetições incansáveis, executadas durante anos, com produtos retirados do universo comercial e de cunho industrial representam as principais características minimalistas. Os aspectos da industria cultural são assimilados na produção artística de Bispo do Rosario, assim como na Pop Art cujas imagens trabalhadas já se encontravam amplamente difundidas na sociedade de consumo. Produtos, embalagens, vasilhames, tudo que nossa imaginação possa captar e que pode ser encontrado jogado por aí, pelas ruas e esquinas, faz parte da obra de Bispo.

A esquizofrenia é incorporada no processo artístico que analisamos, uma vez que Arthur Bispo do Rosario utiliza a palavra como ferramenta de trabalho para expressar imagens e códigos a que os loucos têm acesso, no inconsciente.  Esse mecanismo o torna também altamente revolucionário num contexto em que precisa o tempo todo driblar os tratamentos médicos, e consegue fazê-lo. Bispo não se retraía diante da loucura, dentro dela encontrava subsídios para desenvolver sua obra. Seu processo de criação tem na doença toda sua potência que faz com que a obra seja intensa, capaz de ser apresentada a qualquer público, inclusive para quem realmente foi concebida: “Deus”.

Patrícia Burrowes é uma autora que percorreu os fragmentos da vida de Bispo e em suas análises, afirma que é imprescindível saber discernir esse aspecto de força dos fracos na criação e esse pensamento é crucial para analisar a obra de Bispo. Os fracos que estamos nos referindo são aqueles que as sociedades não dão oportunidades, por considerá-los incapazes de desenvolver e executar suas potencialidades. Poderíamos refletir que estes são também os impossibilitados de consumir. Segundo Burrowes[3]...

... A criação tantas vezes procede por barreiras e impossibilidades. A barreira em alguns casos instrumentaliza e potencializa, quando o afastamento dos centros dominantes gera uma posição revolucionária.

Para Burrowes, Bispo é um contador de histórias. Suas narrações estão presentes nos estandartes bordados e estão de outras formas no conjunto da obra, e essas configurações singulares, segundo a autora “... criam um sistema de signos único, de uma só vez comunicação e experiência de vida”, (BURROWES, 1999, p. 26). Criando novos signos, Bispo está, como diz Burrowes “multiplicando mundos”, ele sobrecarrega no procedimento de fazer signos, a linguagem e as coisas interferem umas nas outras o tempo todo, e a partir do momento em que se observa os procedimentos e a obra do artista, torna imprescindível recorrer a Michel Foulcault principalmente no que se refere às questões sobre palavras, linguagens e coisas.

Segundo Foulcault[4], a linguagem é tanto o fato das palavras acumuladas na história quanto o próprio “sistema da língua”, e o mais importante não é a mudança ou a transformação de uma realidade (de uma língua, de uma sociedade, de uma teoria científica), mas a estrutura, a forma que ela tem no presente. A linguagem utilizada por Bispo do Rosário, além de abranger conteúdos plásticos, se mostra nas posturas do artista.

“De que cor você vê a minha aura? ”

Essa pergunta não foi escrita por Bispo em nenhum de seus trabalhos, ela representa uma postura artística tomada pelo artista. Para alguém entrar no quarto de Bispo e conhecer seu trabalho, antes era preciso responder a pergunta feita por ele que funcionava como um código de acesso. “De que cor você vê a minha aura?” representa uma pequena encenação na qual ele, Bispo, dirige toda a cena. Esta não é apenas uma pergunta cuja reposta depende da percepção de quem a responderá, ela traduz a natureza misteriosa que envolve Bispo. Ela é, em si mesma, uma representação que articula outra, como uma possibilidade que constitui a liberdade do discurso presente em toda obra de Bispo. Desde logo, toda essa obra pode tornar-se discurso que nos faz pressentir a grande potência criadora do artista, seu inesgotável poder de transformação, sua plasticidade e o fluxo no qual a palavra envolve todas as suas produções inclusive nós mesmos.

 Humberto Eco[5], em seu livro A Estrutura Ausente, afirma que...

... a semiologia estuda todos os fenômenos culturais como se fossem sistemas de signos – partindo da hipótese de que na verdade todos os fenômenos de cultura são sistemas de signos, isto é, fenômenos de comunicação.

A fala de Bispo corresponde a um ritual no qual, sabendo ou não a resposta, o outro sujeito envolvido nessa comunicação, participa. A comunicação verbal estabelecida entre quem pergunta e quem responde é analisada como um signo.

A escrita é um código de linguagem freqüentemente usado pelo artista, quando não faz parte direta  da obra - como em rótulos de embalagens dos mais variados produtos - ele mesmo a escreve em seus bordados. Os conteúdos desses escritos são os mais variados possíveis: contam histórias, descrevem lugares, selecionam pessoas.

Mas qual o sentido que a palavra passa a ter em uma obra de arte? Ela será vista com o mesmo valor simbólico que em um livro? Inserida em um outro contexto (na obra de arte), a palavra passa a ter outro significado, agora faz parte dos elementos pictóricos e escultóricos. Não necessita ser lida como freqüentemente é para ter significado, o simples fato de estar exposta nesse contexto dá a ela uma nova condição de existência. A linguagem artística utilizada por Bispo é também uma forma de fazer signos·, uma arte de nomear e, depois por uma reduplicação, ao mesmo tempo demonstrativa e decorativa, de captar nomes, um signo segundo sua figura, segundo sua nova função dentro do contexto.

Mais amplamente Foulcault diria que a experiência partilhada – nesse caso a pergunta e as respostas – não ocorre hoje apenas na esfera lingüística, mas também nas relações entre línguas[6], textos e literaturas (realizados a partir de códigos escritos). Na obra artística em questão há diversas construções de discursos em que as mais diversas relações (entre línguas, textos e literaturas) estruturam a partilha das experiências. Escritas, desenhos figurativos, fala, fios coloridos, objetos vulgares – as mais diversas linguagens se fecundam. Na pergunta que Bispo fazia (“De que cor você vê a minha aura?”), o “candidato” deveria então, quer visse ou fingisse, dizer o nome de uma cor. Um tipo de relação em que não apenas uma pessoa determina o discurso. Na esfera das relações estabelecidas entre Arthur Bispo do Rosario e seu interlocutor, é importante ressaltar que a situação aqui exposta é incomum, visto que dificilmente alguém faz esse tipo de pergunta a quem expresse o desejo de entrar em seu quarto. O interlocutor é convidado a participar com Bispo de seu delírio.

A “descoberta” de Bispo Rosario ocorreu no início da década de 80, quando Frederico Morais[7] ao assistir a matéria de Samuel Wainer Filho – sobre maus tratos em hospitais psiquiátricos - no programa Fantástico onde se mencionou o trabalho de Bispo do Rosario, ficou interessado em conhecer e se surpreendeu ao ver a obra pessoalmente.  As comparações com os trabalhos de Marcel Duchamp demonstram o esforço de inserir Bispo no sistema de arte. 

Ao contemplar a obra de Bispo, a linguagem oficial e o discurso característico se desfazem diante da fragmentação da comunicação em códigos privados. Por mais festejado que seu trabalho se tenha tornado, ele teve que ser reflexivo e, principalmente, refletido.

Trabalhos como o de Arthur Bispo do Rosario abrem portas misteriosas para as discussões da Arte Contemporânea. Como um turbilhão a contemporaneidade ferve, com seus novos padrões. Um cipoal de novos significados invade o jardim bem cuidado das tradições abrindo caminho para o surgimento de uma nova vegetação. Diante disso, a experiência de construção de um novo universo, como a realizada por Bispo, aparece como referencial criativo frente à necessidade de reconstrução. Não podemos nos esquecer que o ato de transformar carrega consigo a beleza da criação.

Somos convidados a observar na sua obra a força da criação de um homem que supostamente seria considerado um fraco. Porém ao analisá-la não nos deparamos com um homem frágil, muito pelo contrário, o que se observa é um homem determinado e consciente de si, ainda que para muitos essa consciência pareça indissociável de uma personalidade desajustada. A visão do fraco influenciou profundamente o início da pesquisa, não deixa de ser uma maneira poética e romântica de se analisar os fatos, tendo em vista que estamos falando de um homem que passou a maior parte de sua vida trancafiado em um sanatório, convivendo com a pobreza e com os horrores da medicina psiquiátrica.

Ouvindo vozes do inconsciente, Bispo inicia a construção de um universo e em suas viagens, em suas lutas o seu cotidiano é retomado com tal intensidade que transborda e dissipa a esfera pessoal. Da vida faz uma imprevista experiência, produzindo com ela, a partir de seus fragmentos, uma obra que inaugura discursos para realidades de que nos faz co-participantes. Produto de sua produção, torna-se artista.

Contrariando a tendência racionalista age movido exclusivamente pela fé. E age sozinho, apenas respeitando a voz do além que dita ordens de trabalho. Encarnando o conflito extremo do dualismo que marca as relações humanas, faz surgir um mundo novo com novos significados apoiando-se principalmente nas palavras Inserido em uma sociedade que criou o discurso de internação ao qual ela mesma se submete, Bispo retrata os conflitos desse tempo e dessa sociedade. Em um ato de extrema sensibilidade escolhe um manicômio como morada. E a partir de então um mundo se criou!....

Frente às perplexidades e desencontros da realidade contemporânea, a chave pode ser a palavra Azul. Enclausurados em um momento de confusões, vemos surgir a partir das fileiras da loucura um novo universo onde, como um espelho de nosso tempo, Bispo nos apresenta imagens da sociedade de consumo que são reaproveitadas dos restos e que em alguns momentos possuem registros que nos remetem a lembranças do interior de Sergipe onde, se credita, sua crença se formou. Azul por se tratar da resposta esperada para a pergunta de Bispo do Rosario.

 

[1] Texto escrito para a Coordenação de Ressocialização da antiga Colônia Juliano Moreira e para a Mostra “À Margem da Vida”, no MAM – RJ em 1989, organizada por Frederico Morais.

[2] BURROWES. 1999,  p. 15.

[3] BURROWES,1999,  p. 10.

[4] FOULCAULT, 1995,  p. 63.

[5] ECO. 1971,  p. 01.

[6] Linguagens verbais e não verbais.

[7] MORAIS. 1989.

 

Referências bibliográficas:

BURROWES, P. O universo segundo Arthur Bispo do Rosário. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999.

ECO, H. A estrutura ausente. São Paulo: Ática S. A., 1995.

FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

Artigo de Periódico

MORAIS, F. Arthur Bispo do Rosario: Uma biografia em curso. MAM, Rio de Janeiro, 1989. 

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Publicada em 03.12.04 - Última atualização: 08 dezembro, 2004.