Crise
no Modelo de Justiça:
Paradigma
Procedimental da Construção Normativa e o Novo Papel dos Operadores do
Direito
RESUMO
O
objetivo do presente trabalho é analisar o novo papel dos
operadores do direito em face das mudanças sofridas nos sistemas
jurídicos contemporâneos, em especial no campo constitucional.
Foram abordadas as repercussões do avanço de um paradigma
procedimental de construção da normatividade sobre a prática
judicial e seus reflexos sobre a democracia, buscando criar uma
ponte entre a análise sociológica e as teorias jurídicas.
PALAVRAS-CHAVE:
Justiça; Direito; Liberalismo e Direito; Reforma do Judiciário.
ABSTRACT
The
scope of the present work is to analyze the new role of the
lawyers and judges in face of the changes in the contemporary
juridical systems, especially in the constitutional field. I
intended to discuss the repercussions of the progress of a
procedural paradigm of normative construction on the judicial
practice and your reflexes on the democracy, seeking to create a
bridge between the sociological analysis and the juridical
theories.
KEY-WORDS:
Justice;
Law; Liberalism and Law; Judiciary Reform
|
INTRODUÇÃO
Muito
se debate sobre as novas formas de compreensão dos sistemas jurídicos
nacionais, sua fundamentação e produção, contudo essa reflexão
pouco se faz acompanhar de uma análise das exigências teóricas e
argumentativas postas aos agentes responsáveis pela concretização das
mudanças. O direito ganha atualmente um caráter eminentemente
prospectivo, voltado para o futuro, menos fechado num esquema de
tipificação elaborado segundo eventos ocorridos no passado (GUERRA
FILHO, 2000, p.11). Em outras palavras, não há mais como atuar com a
simples repetição de fórmulas, do mero enquadramento dos fatos dentro
da legislação. Numa realidade mutável, muito mais complexa e em
acelerado processo de transformação, parece patente a
incompatibilidade entre o ritmo de produção e de aplicação das
normas com as expectativas criadas em torno do sistema de justiça.
Trata-se de um fenômeno marcante em países ligados a tradição do Civil
Law e que no Brasil ganha contornos mais graves por força dos
conhecidos problemas associados ao Judiciário, ao sistema policial e,
genericamente, aos organismos estatais.
As
soluções apresentadas a um universo cada vez mais amplo de demandas
trazidas ao Judiciário não se encontram de modo explícito nas leis.
Cresce a exigência de se buscar respostas em fontes constitucionais, em
princípios amplos cuja aplicação prática envolve um verdadeiro ofício
legislativo. Ao definir a interpretação e os limites de um princípio
constitucional aplicado num caso prático, investe-se o jurista de uma
função criadora, responsável pela inovação dentro do sistema e da
atualização do direito. Essa posição representa algo extremamente
importante e leva a graves repercussões políticas, sociais e teóricas.
Se de um lado ela surge como uma resposta a certos pleitos, de outro ela
se contrapõe à tradição jurídica brasileira.
O
modo de análise desse fenômeno desdobra-se em diversos campos, com múltiplas
abordagens. Por uma questão metodológica, restringirei o escopo desse
estudo à discussão sobre os possíveis reflexos das mudanças sobre os
operadores do direito, buscando criar uma ponte entre a análise sociológica
e as teorias jurídicas.
A
formação do sistema jurídico Brasil sofreu influência direta do ideário
liberal e de uma concepção positivista e civilista do direito. Desde a
Independência, inúmeras reformas na legislação, na organização
judiciária, nas atribuições das autoridades, entre outros aspectos,
ocorreram sob o manto dos projetos liberais para o país. Figuras como
Joaquim Nabuco e Rui Barbosa dedicaram-se intensamente a esses ideais,
em especial ao processo de formação do Poder Judiciário. Sob tal
inspiração, nasceram gradativamente garantias como a vitaliciedade,
irredutibilidade de vencimentos e inamovibilidade.
O
positivismo jurídico representou a outra face da construção da elite
de bacharéis e do próprio Judiciário. Essa corrente do pensamento não
corresponde a uma simples adaptação para o direito do pensamento de
Augusto Comte. Apesar da forte presença do positivismo comtiano entre
os militares, o juspositivismo, na realidade, remete a uma oposição em
relação ao jusnaturalismo. No seu cerne, encontra-se a idéia de um
direito nascido da razão humana, fundado na autoridade do Estado, com
primazia absoluta da norma jurídica sobre qualquer outra fonte do
direito. Em consonância com a tradição civilista francesa e com a Escola
de Exegese, defendia a limitação do ato de julgar a uma aplicação
das normas existentes aos casos concretos. O esforço interpretativo não
poderia resultar em criação ou inovação, pois se presumia a
plenitude do ordenamento jurídico. Postura diferente traria o risco de
uma invasão nas atribuições do Poder Legislativo e um poder
desmesurado nas mãos dos juristas.
Nas
escolas de direito brasileiras reinou quase absoluta a visão do direito
construída sob a égide do dogmatismo de cunho positivista. Sua influência
se faz sentir ainda hoje na estrutura curricular dos cursos, na prevalência
de disciplinas práticas, na
ênfase no direito privado, entre muitos aspectos (FARIA, 1988).
Década após década, formou-se uma tradição de apego à lei e
de pouca valorização dos princípios constitucionais. Para Joaquim de
Arruda Falcão (1984) a concepção de ordem jurídica enquanto ordem
legal, formulada pela associação entre positivismo dogmático e
liberalismo, apareceria como modelo hegemônico e fundamentaria,
inclusive, o senso comum. Dessa forma, aprisiona-se a idéia de justiça
ao universo legal e consolida-se uma espécie de monopólio estatal da
definição do justo.
Um
Judiciário nesses moldes pouco incomoda os demais poderes, situando-se
numa posição de menor destaque na organização do Estado. A aplicação
de um princípio de justiça não se encontraria, na verdade, nas mãos
dos juízes, meros cumpridores da
lei, aprisionados pelos
ditames das normas elaboradas na esfera legislativa. Associado aos vínculos
políticos e de classe, e a uma cadeia de relações clientelistas, o
dogmatismo compõe o quadro de sustentação de uma postura extremamente
conservadora dos operadores do direito. Fortalece-se um distanciamento e
uma pretensa neutralidade em relação às questões políticas e
sociais do país. Preocupações de ordem valorativa não se inseririam
no rol de elementos necessários para a solução dos conflitos.
Grande
parte da tradição positivista brasileira sofreu a influência da obra
de Hans Kelsen (1994), O mais importante representante do positivismo
jurídico buscava a construção de um direito com status de ciência
moderna, afastada das falsas
questões científicas, baseado em elementos objetivos e de verificação
concreta. Aspectos econômicos, políticos ou axiológicos figurariam
como fatores externos ao
direito, não sujeitos à análise dentro do campo da ciência jurídica.
Em prol da positividade, o jurista deveria afastar-se, dentro de suas análises,
de elementos subjetivos ou estranhos à sua área de estudo.
O
sonho de construção de um Judiciário em moldes liberais, garantidor
da liberdade civil e da certeza jurídica, restringiu-se, ao longo da
República, à conquista gradual de garantias para o exercício da
magistratura. As idéias de composição de um corpo autônomo,
desvinculado dos interesses dos grupos políticos, preso unicamente ao
desejo de aplicação da lei e à realização da justiça não
ultrapassariam a fronteira do discurso. A criação de uma estrutura
judicial respeitaria sempre as ligações com a estrutura de poder local
ou regional. Desde a distribuição de cargos importantes através de
trocas clientelistas, do recrutamento entre os bacharéis oriundos de
escolas elitizadas, aos critérios para ascensão na carreira havia, em
todos os níveis, um processo de harmonização entre o Judiciário e os
grupos políticos dominantes. Na prática, verificava-se pouca independência,
seja no aspecto administrativo e orçamentário, seja na análise dos
processos. O ofício de julgar, na maior parte do século XX, deveria
restringir-se a um pequeno número de litígios privados, solucionados a
partir de parâmetros legais relativamente definidos, e ao limitado número
de delitos cuja repressão merecia apreciação judicial. Tentativas de
desvio dessa expectativa
receberiam correção através dos recursos, das promoções na carreira
ou mesmo de constrangimento direto.
As
interações com o sistema político e as fragilidades institucionais não
impediriam, todavia, a consolidação de uma ideologia capaz de
identificar e orientar os membros do campo jurídico de modo
diferenciado. A relação entre os juízes e os militares durante os
primeiros anos do Regime Militar iniciado em 1964, mostrar-se-ia
reveladora dos efeitos aparentemente contraditórios dessa longa trajetória
de construção ideológica calcada, em grande medida, num formalismo
dogmático. Advogados, promotores e mesmo juízes atuando apenas
nos estreitos limites das determinações normativas poderiam criar
constrangimentos ao sistema repressivo e às suas práticas (MIRANDA
ROSA, 1985). Não se tratava de afrontar ou mesmo discordar das
premissas que orientavam os governos militares, mas um reflexo de uma
visão sobre o direito que se confrontava com a lógica da atuação
militar no combate aos inimigos
do país. Nessa guerra não
haveria espaço para formalismos ou limitações oriundas da aplicação
do próprio ordenamento jurídico, inicialmente recepcionado pelo novo
regime.
No
bloqueio às interferências judiciais sobre as políticas
de segurança, os militares usaram em larga escala instrumentos
legais para mudança de competência, criação de organismos
controlados diretamente pela cúpula do Exército, centralização das
instâncias decisórias e interferência na composição dos tribunais.
Em outras palavras, uma luta que, em parte, acabou seguindo as regras do
próprio campo jurídico para implementar de modo mais livre as estratégias
de combate à subversão.
A
democratização marcou profundamente o processo de transformação do
Judiciário brasileiro. Na esteira das modificações ocorridas no país,
fixaram-se novos parâmetros para atuação dos magistrados,
consolidou-se o processo de conquista das garantias ao exercício da função,
desenhou-se um novo papel para o Ministério Público, além de se
introduzirem elementos novos no ordenamento do país capazes de
modificar a relação do cidadão com a Justiça. A Constituição
Federal de 1988 abarcou um grande número de propostas geradas em meio
à distensão e ainda algumas anteriores ao Regime Militar, cuja
implementação abriu espaço para desdobramentos muitas vezes
inesperados. Mais do que um corpo de caráter meramente formal, a
Constituição trouxe ao Judiciário o germe de um processo de
transformação.
PARADIGMAS
DO DIREITO E AS MUDANÇAS NO JUDICIÁRIO
As
transformações sofridas no Judiciário no século XX podem ser
analisadas sob diversos enfoques. Ao lado de mudanças políticas,
culturais, econômicas e institucionais, o direito viveu (e vive) um
intenso debate teórico sobre sua estrutura e fundamentos. Importante
perceber a natureza dinâmica do fenômeno jurídico e da necessária
fermentação intelectual que o acompanha. Os acontecimentos vividos no
Brasil e no mundo forçaram a construção de novos modelos para criação
e interpretação do direito. Eventos como as grandes guerras, a guerra
fria ou a aceleração dos processos de globalização interferiram
profundamente na aparente solidez das formas jurídicas. Estudar as
mudanças no Judiciário envolve a investigação sobre o próprio
direito e vice-versa.
As
discussões sobre essas transformações mobilizam autores de destaque
como Habermas (1997), Luhmann (1980; 1983; 1985), Cappelletti (1993) e
Garapon (2001), com direito a grandes divergências quanto à origem e
os desdobramentos para o futuro. Como ponto de convergência, surge o
destaque ao Welfare State e
às inovações introduzidas pela legislação a ele atrelada. A ruptura
gradual com os pressupostos do Estado Liberal, movido pela agitação e
mobilização social, acarretaria uma reorganização de forças entre
os poderes, uma nova forma de intervenção estatal na realidade e,
entre muitos aspectos, um papel diferenciado para o Judiciário.
Jürgen
Habermas em Direito e Democracia
– entre Facticidade e Validade (1997) observa a invasão do
direito na sociabilidade e o deslocamento da centralidade dos poderes
Executivo e Legislativo para o poder Judiciário. A constante conversão
de políticas do Executivo em normas, que precisam acompanhar a
velocidade dos processos econômicos, coloca o Judiciário numa posição
de destaque como único intérprete autorizado da legalidade e da
constitucionalidade. O Judiciário aproxima-se das temáticas políticas,
dos projetos governamentais, da ação do Executivo sempre expressada
por normas. Cresce a penetração da ação estatal em esferas antes
relegadas ao domínio do interesse privado, refletindo uma maior presença
do direito e de seus operadores nas relações sociais. Ao mesmo tempo,
infiltra-se o direito com uma carga de considerações sobre ética e
justiça social, fato novo ante a tradição liberal dominante até então.
Outros
aspectos igualmente ampliavam o papel exigido do direito. Cresciam em número
e em complexidade as relações reguladas, aceleravam-se os processos de
transformação social, aumentava a quantidade de lacunas na atividade
legislativa, tudo isso acompanhado de uma crescente busca por soluções
judiciais para os litígios. As garantias liberais asseguradas ao exercício
da magistratura, a composição de um corpo autônomo voltado à solução
de conflitos agora mostrava seus frutos. A relativa independência para
julgar e o amparo em textos constitucionais amplos permitiam decisões
com um espectro cada vez maior. Na ausência de instrumentos legais explícitos,
os juízes passaram a trazer para si a responsabilidade pela aplicação
de princípios constitucionais abstratos aos casos concretos.
Trata-se
de uma confluência de diversos elementos refletindo-se num Judiciário
maior, mais atuante e com mais poder. Para que isso ocorresse, foi
necessária, num primeiro momento, a consolidação do arcabouço de
proteção à atividade judicante e a formação de um corpo
especializado, com uma lógica e linguagem própria para esse trabalho.
Numa segunda fase, o desenvolvimento do Welfare State, com as
novas formas de intervenção na realidade, a ampliação da produção
legislativa, a dificuldade em dar soluções na qualidade e quantidade
necessária, além da ampliação das vias de acesso à justiça geraram
um maior demanda por seus serviços. A resposta a essa demanda ocorreu pari
passu ao fortalecimento do direito constitucional e do
desenvolvimento de novos fundamentos teóricos capazes de sustentar uma
hermenêutica voltada à aplicação imediata das normas
constitucionais.
Um
dos grandes desafios, nesse aspecto, consiste em conciliar as formas de
representação política e de divisão de poderes com as exigências de
regulação e produção legislativa atual. Habermas (1997) considera
que um direito em expansão e em constante mudança passa a incorporar
um caráter provisório e indeterminado, contrastante com a certeza
jurídica e com a mera exegese legal. O centro do poder para elaboração
do direito deslocar-se-ia para os cidadãos, envolvidos pela descoberta
da sua autonomia e da capacidade de participar da soberania popular
através de processos comunicacionais e da democracia. A verdadeira função
das constituições seria na proteção de um processo legislativo
democrático e não a guarda de uma suposta
ordem suprapositiva de valores substanciais (HABERMAS apud
VIANNA, 1999, p.29).
A
composição de uma concepção procedimental para a criação do
direito não constitui privilégio de Habermas. A peculiaridade da última
fase de sua obra advém da defesa de uma democracia
radical, mais participativa e confiante da capacidade de
desenvolvimento da autonomia dos cidadãos. Reflete a filiação à
teoria crítica, mas se insere dentro de um conjunto de obras em que o processo
aparece como resposta para as dificuldades encontradas para a produção
do direito. As teorias de Habermas e Luhmann, não obstante as posições
conflitantes sob muitos aspectos, compartilham, cada um a seu modo, da
defesa de um paradigma processual de formação do direito.
Para
Luhmann (1983), o direito constitui um sistema autônomo, dotado de códigos
próprios e de uma capacidade de auto-reprodução
(autopoiesis). Não haveria a
necessidade de encontrar em outros sistemas os elementos necessários ao
seu funcionamento. Em meio ao caos
e à contingência de um universo muito complexo, o sistema
representaria uma redução das infinitas possibilidades encontradas e a
seleção de algumas variáveis. Um sistema permaneceria vivo na medida
em que fosse capaz de delimitar suas fronteiras com mundo
circundante e restringir a complexidade das variantes presentes em
seus limites. Para lutar contra a entropia, o sistema precisaria ser
capaz de reproduzir-se e manter uma estrutura
que garantisse sua sobrevivência.
No entanto, o maior fechamento ao contato com o ambiente, não poderia
impedir a adaptação, a transformação e evolução desse sistema.
As
respostas às mudanças e ao contato com o mundo circundante passariam a
seguir uma dinâmica própria.
Com o aumento da complexidade e a redução da influência do ambiente,
a modificação do sistema passaria a representar antes de tudo uma
recriação ou uma autotransformação (autopoiesis).
Essa reprodução nunca seria repetição e sim recriação. Ou seja, a
produção do direito ocorreria segundo um conjunto de regras internas,
mas não representaria um fechamento ao contato com outros sistemas. Na
realidade, o contato introduziria elementos inovadores e contingentes
responsáveis pela produção de novas variáveis. Economia, política,
moral formariam sistemas autônomos que, em relação ao direito,
constituiriam meio ambiente, mundo
circundante.
No
centro da teoria luhmasiana sobre o direito, encontram-se os juízes e
os tribunais e na periferia o contato
com os demais sistemas. A mediação desse contato com os sistemas político
e econômico ocorreria, respectivamente, através da legislação e dos
contratos. Em última análise, caberia aos tribunais, no centro do
sistema, interpretar e definir a validade das leis e dos contratos (Luhmann,
1994). A ampliação inegável do poder dos magistrados, não
significaria presença do arbítrio ou o fim da democracia. Essas
manifestações judiciais partem do pressuposto processual da presença
de partes em conflito, em debate de posições, ou seja, as decisões
judiciais são precedidas pelo pedido de grupos ou indivíduos que
desejam a regulação de seus problemas. Nesse contexto, a Constituição
revela-se como grande responsável pelo acoplamento estrutural entre os
(sub) sistemas jurídico e político (...) (NEVES apud
GUERRA FILHO, 1997, p. 71).
Tanto
Habermas como Luhmann fundam suas observações na realidade européia,
principalmente, alemã. Para compreender melhor a inserção de suas
teorias vale abordar brevemente alguns aspectos das transformações
recentes ocorridas na atuação do Judiciário Alemão.
O
ponto central para qualquer análise se encontra na sua Corte
Constitucional e no modelo teórico aplicado predominantemente nos casos
de sua alçada. A presença pacífica e reiterada de uma orientação
para a chamada jurisprudência de
valoração (ou jurisprudência
dos valores) expressa um tipo de caminho adotado dentro da atividade
judicial responsável pela maior interação dos tribunais com as
grandes questões sociais e éticas de seu país.
Os
primeiros passos da mudança originaram-se no pensamento de Rudolf von
Ihering e desenvolveram-se fortemente com a obra de Philipp Heck. Sob
forte influência de Ihering, Heck criticava a limitação do trabalho
do juiz à mera subsunção de fatos aos conceitos jurídicos e a idéia
de direito como um sistema fechado, hermético. Defendia a apreciação
da ação do direito sobre a
vida, tal como ela se realiza nas decisões judiciais. Em sua
teoria, conhecida como jurisprudência
dos interesses, afirmava que as leis resultariam dos
interesses de ordem material, nacional, religiosa e ética, que, em cada
comunidade jurídica, se contrapõem uns aos outros e lutam pelo seu
reconhecimento (HECK apud LARENZ,
1997, pp. 64-65). Para proferir uma decisão haveria a necessidade
fundamental de se conhecer os interesses reais motivadores da criação
daquela lei. Esses interesses expressariam na verdade, forças sociais
de onde adviria a causa da ação legislativa. A ordenação dos
interesses em luta entre si exigiria a concepção de uma ordem
a promover pelo legislador e determinada por juízos valorativos.
Para
Karl Larenz “[a jurisprudência dos interesses] revolucionou
efectivamente a aplicação do Direito, pois veio a substituir
progressivamente o método de uma subsunção nos rígidos conceitos
legislativos, fundamentada tão-somente em termos lógico-formais, pelo
juízo de ponderação de uma situação de facto complexa, bem como de
uma avaliação dos interesses em jogo, de harmonia com os critérios de
valoração próprios da ordem jurídica (...) A
jurisprudência dos tribunais veio-se abrindo progressivamente aos
eventos da vida, tornando-se metodicamente mais consciente, mais livre e
mais diferenciada (grifo
meu) (1997, p. 77).”
A
obra de Heck, infiltrada na formação acadêmica do pensamento jurídico
alemão, permitiu um novo horizonte ao Judiciário. Serviu de fundamentação,
dentro do corpo de juristas, para uma orientação mais permeável a
fatores externos ao direito,
aos aspectos econômicos, aos valores em jogo nas demandas judiciais e,
fundamentalmente, ao próprio questionamento da abrangência e validade
das normas produzidas pelo Legislativo. Com a responsabilidade de
sopesar juízos de valor e investigar as causas determinantes na criação
de normas, em meio a forças sociais em litígio, expandiu o poder dos
juízes, que, no entanto, nem sempre conseguiam perceber claramente o
conjunto de condicionantes dos eventos sob seu julgamento. Pouca coisa
separava a compreensão dos interesses em jogo, da aplicação de juízos
de valor próprios do julgador.
Os
desdobramentos da jurisprudência
dos interesses de Heck formaram o modelo hoje predominante na Corte
Constitucional alemã chamado de jurisprudência
dos valores. A crítica ao legalismo e às abstrações conceituais
progrediu para consolidação de uma compreensão
da norma jurídica como prescrição de um padrão avaliativo para
apreciação de casos concretos, o qual se pode fazer remontar a juízos
de valor esclarecedores do sentido normativo (GUERRA FILHO, 2000, p.
107). Nesse paradigma, caberia aos tribunais concretizar, resguardar e
mesmo revelar o sentido de valores positivados no texto constitucional.
As
Constituições, por sua generalidade e abrangência, permaneceriam em
constante atualização, num processo de adaptação à realidade
realizado pelos magistrados. Esse papel não se restringe à Alemanha
sob a influência da Corte Constitucional e da jurisprudência
dos valores. O crescimento da importância das constituições e de
seus intérpretes autorizados propaga-se como um fenômeno bastante
amplo no mundo ocidental. O Brasil, a partir da democratização e da
Constituição de 1988, acompanha um processo de embate entre poderes,
em que o Judiciário surge com um papel diferente daquele historicamente
registrado. As discussões em torno das decisões do Supremo Tribunal
Federal, ou mesmo de juízes de primeiro grau, acerca da aplicação de
princípios constitucionais ganham relevo ao transparecer a capacidade
de definir a aplicação ou não de leis e projetos do Legislativo e do
Executivo.
Para
Garapon (2001) um novo modelo de direito e de democracia estaria
nascendo, superando o direito formal do Estado Liberal e o material do
estado provedor. A democracia transformar-se-ia pelas mãos do direito.
O juiz teria uma nova possibilidade de julgar com base em princípios
superiores, como os da Constituição e dos tratados internacionais. O
caráter incompleto e amplo desses textos impõe a exigência de se
explicitar o verdadeiro sentido de suas disposições. O ofício desses
magistrados não se restringe a aplicação da lei, mas, acima de tudo,
verificar sua conformidade com um direito superior. Garapon cita
Rousseau para expressar a dimensão desse poder sintetizada na idéia de
que o juiz pode tudo impedir
(2001, p. 180).
A
discórdia, a discussão e a multiplicidade de opiniões comporiam uma
dinâmica inerente ao funcionamento da Justiça e da democracia, na visão
de Garapon (2001). Esse Judiciário não poderia ser visto como um corpo
monolítico, homogêneo, coeso o suficiente para oferecer um simples espetáculo
da discussão. O direito, por sua vez, não se resumiria a um corpo
de regras, mas, sobretudo, deveria ser encarado como um conjunto de
princípios. Dessa forma, sobressai no autor a concepção de um direito
aberto e em construção permanente através do debate mediado pelos juízes,
ou por outros foros de jurisdição do Estado. “Não
se trata apenas de uma nova maneira de secretar o direito: é o próprio
critério de justiça que evoluiu para uma forma mais procedimental
(...) Não se trata mais de uma injunção abstrata imposta de fora, mas
da homologação, pelo juiz, de uma decisão cujo conteúdo moral foi
ditado pelas próprias partes (GARAPON, 2000, p. 237)”.
Nesse
novo processo de construção do direito destaca-se, de um lado, o poder
dos juízes e, de outro, a exigência de formação do direito dentro de
um ambiente de debate entre múltiplas visões. O Judiciário continua
preso à provocação das partes, proibido de tomar a iniciativa para
agir, o que vincula seu poder a uma essencial participação de grupos,
de indivíduos, de posições diversas no processo de elaboração da
decisão. A dinâmica dessas relações faz do paradigma processual
quase uma conseqüência necessária do conjunto de transformações
vividas pelo Estado Moderno. Não se trata apenas de uma usurpação de
poderes pelos juízes, mas da gestação de um direito necessariamente
mais aberto à realidade e às condicionantes econômicas, políticas e
sociais.
As
múltiplas abordagens sobre as transformações do direito e do Judiciário
encontram como ponto de convergência a crise do modelo positivista
legalista e da orientação liberal dos sistemas jurídicos. O apego ao
formalismo e a aplicação da lei por mera subsunção dos fatos às
normas parecem destinadas a um papel cada vez mais secundário no
panorama internacional. Esse tipo de formação, responsável pela
construção das estruturas jurídicas no ocidente e que guiou diversas
gerações de bacharéis, cria hoje um conflito com as expectativas
projetadas sobre a Justiça e mesmo com as práticas empreendida pelos
operadores do direito.
Fenômenos
como a crise no Welfare State,
a explosão da litigiosidade,
a aceleração dos processos sociais, a constitucionalização dos
direitos, entre muitos outros, levam a transformação das estruturas do
sistema jurídico e de suas práticas. Como portadores do monopólio da
interpretação constitucional, os magistrados ganham uma nova posição
em que há intensa interação entre os processos políticos, as mudanças
sociais e a tomada de decisão. Ao mesmo tempo, precisam atuar como legisladores
diante da infiltração do direito em áreas mais amplas da
sociabilidade, da exigência de respostas às questões ainda não
reguladas explicitamente e dos conteúdos incertos e provisórios dados
às normas.
O
Judiciário acaba por atrair para si as expectativas em torno da
concretização de direitos consagrados constitucionalmente, da
implementação de políticas públicas, do reconhecimento de garantias
dos mais diversos grupos de interesses. “A
progressão da justiça autoriza a ‘transposição de todas as
reivindicações e de todos os problemas perante uma jurisdição em
termos jurídicos (GARAPON, 2001, p. 47).”
Redefine-se o papel desse poder, estruturado sob outras orientações
ideológicas e teóricas, o que repercute necessariamente sobre a ação
de seus próprios membros. Ao juiz destina-se um novo tipo de demanda
pouco compatível com os pressupostos tradicionais de preservação da
autonomia privada, de equilíbrio entre poderes e de apego à lei e ao
formalismo. Mais do que um mero instrumento de classe ou obstáculo às
transformações, o direito também representa um meio de luta pela
inovação e ainda um objeto dessas lutas.
Junto
às mudanças no campo da política e no papel social do Judiciário
nascem novos modelos teóricos para fundamentação do processo de criação
e interpretação do direito. A ação dos juristas não prescinde da
elaboração de um paradigma capaz de dotar de sustentação racional os
argumentos necessários à justificação das decisões.
Para
Habermas (1997) os novos caminhos da democracia e do direito envolveriam
o fortalecimento da busca de soluções a partir dos processos
comunicacionais. O poder da produção normativa deslocar-se-ia, em última
instância, para a autoridade guardiã dos processos discursivos. Não
haveria direito absoluto e imutável ante a defesa dos méritos dessa
processualidade argumentativa.
Supera-se
a crença no caráter metafísico dos direitos fundamentais para se
permitir uma interpretação coerente com a constante atualização dos
limites e contornos das fórmulas jurídicas consagradas. Dentro dessa lógica,
o operador do direito parece ganhar uma enorme dimensão ao tornar-se a
voz autorizada para chancelar o que seria a verdadeira expressão da
soberania popular. Como grandes mediadores das partes em debate, os
juristas se vêem obrigados a mergulhar nos processos sociais para
extrair do conflito uma solução com caráter de norma, legitimada não
pela lei ou pela constituição, mas pela natureza dos procedimentos.
Sobre
a mesma realidade se debruça Luhmann, mas segue em outro sentido quanto
a sua leitura do fenômeno da procedimentalização do direito e sobre o
papel dos juristas. Para o autor, o procedimento envolve a reconstrução
do direito a partir das regras do próprio sistema jurídico. A
constante atualização de conteúdos e a abertura a outros sistemas
dependem essencialmente de mediadores situados na fronteira do campo jurídico.
As mudanças trazidas pelas novas demandas seguem o ritmo e a lógica
inerente ao direito. As respostas à infiltração do ambiente não
levam a uma criação de outras estruturas e institutos, mas a uma recriação
ou a uma autocriação (autopoiese).
Essa
concepção fortalece uma idéia de direito em constante transformação,
sob influência dos eventos em outros sistemas e do debate entre as
partes, entretanto reflete uma percepção conservadora e seletiva dos
sistemas jurídicos. Os operadores disporiam de um instrumental especial
para delimitar no ambiente a sua volta caminhos possíveis de transformação
guiados por um desejo de estabilidade social. O direito estaria em
constante construção, fundado numa percepção processual em que os
princípios constitucionais balizariam o debate. Todavia, caberia aos
membros do corpo jurídico filtrar o contato, reagir às interferências
e produzir as mutações necessárias,
como um organismo vivo reagindo às exigências do ambiente. Ao comentar
a teoria luhmasiana, Willis Guerra Filho afirma que “o
sistema jurídico aparece como um dos ‘sistemas funcionais’ do
sistema social global, com a tarefa de reduzir a complexidade do
ambiente, absorvendo contingências do comportamento social (...) (1997,
p. 63).”
A
complexidade da realidade, a velocidade das transformações e a ampliação
dos pleitos trazidos ao Judiciário exigem um esforço intenso para
manter o sistema vivo, em adaptação e ainda resguardar sua unidade e
estrutura própria. Seguindo essa análise, os operadores do direito
superariam um paradigma formalista de apego à lei para reconstruir seus
códigos de acordo com outras expectativas geradas em torno de sua atuação.
Disso não resultaria uma invasão de outros sistemas ao direito, pelo
contrário. A referência às normas, em especial aos textos
constitucionais, condicionaria mais e mais o debate político e econômico,
como um ponto de passagem necessário para se dar um caráter legítimo
a seus projetos. A maior
abertura do direito à realidade social e às mudanças, antes de gerar
uma invasão do direito por fatores
externos, acarreta uma exportação de sua lógica para além de
suas fronteiras. O jurista, orientado pelas preocupações de
realização de justiça social ou de concretização dos programas
constitucionais, não abdica de manter as regras e modelos de seu campo.
A
capacidade de reelaborar seus modelos de análise revela-se na consolidação
de orientações teóricas nos diversos tribunais. Através dessas fórmulas,
a comunidade jurídica reconstrói a realidade observada, guia o
processo de decisão e fundamenta a solução final. O exemplo da formação
da jurisprudência dos valores
na Alemanha, como desdobramento da jurisprudência
dos interesses ilustra bem a importância desses parâmetros
cognitivos. “Ao exortar o juiz
a aplicar os juízos de valor contidos na lei com vista ao caso
judicando, a Jurisprudência dos interesses – embora não quebrasse
verdadeiramente os limites do positivismo – teve uma actuação
libertadora e fecunda sobre uma geração de juristas educada no
pensamento formalista e no estrito positivismo legalista. E isto em
medida tanto maior quanto aconselhou idêntico processo para o
preenchimento das lacunas das leis, abrindo desta sorte ao juiz a
possibilidade de ‘desenvolver’ o Direito não apenas ‘na
fidelidade à lei’, mas de harmonia com as exigências da vida (LARENZ,
1997, pp. 69-70).”
Como
reflexo constante de todo esse processo de mudança, destaca-se, nos
diversos contextos nacionais, o aumento do poder dos juízes. Para
Luhmann (1994) essa capacidade de repelir leis elaboradas pelos
legisladores e a ação legiferante dos magistrados revela um recuo da
democracia. De outro modo, Garapon (2001) considera que não se trata de
uma transferência de soberania para o juiz, mas de uma transformação
na democracia em que os juízes, confrontados com novas expectativas políticas,
sagraram-se heróis. Por sua
vez, Habermas (1997) acredita numa concepção de Justiça capaz de
resguardar o processo de deliberação democrática e de afirmar a
soberania popular.
Isso
leva a questionar os riscos desse poder e do excesso de expectativas
depositadas nesses agentes. O fortalecimento do paradigma procedimental,
preso a princípios constitucionais amplos e de conteúdo plástico, dá
uma maior margem de liberdade aos julgamentos, todavia trazem consigo os
perigos de uma legitimação da interferência de fatores individuais e
particulares dos julgadores. A busca pela consagração de valores, pela
consecução de programas constitucionais em situações novas lança ao
juiz a responsabilidade de formular juízos de valor, muitas vezes de
difícil gradação objetiva e pouco explicitados. Ultrapassa-se a
fronteira da previsão legal, dos valores contidos no ordenamento jurídico
para entrar no campo obscuro das opções subjetivas e da insegurança
quanto aos critérios normativos.
O
paradigma procedimental só parece fortalecer a democracia na medida em
que é acompanhado de mecanismos reais de ampliação da presença dos
cidadãos dentro do Judiciário e do fortalecimento de instâncias
capazes de dividir o poder de determinação do conteúdo do texto
constitucional (como uma Corte constitucional não exclusivamente
pertencente ao Judiciário).
Vale ainda observar que esse papel pretendido de guardião
dos ideais republicanos (GARAPON, 2001) encontra-se nas mãos de um
corpo bastante fechado, pouco transparente nos seus procedimentos
internos, distante da participação dos cidadãos, com formas de
recrutamento e ascensão na carreira sujeitas a um filtro ideológico e
a uma análise do perfil de atuação. A juridicização do debate
democrático ou a mediação judicial da expressão da soberania popular
podem acarretar, dependendo do contexto de cada país, um verdadeiro
risco para a democracia.
A
mudança nos paradigmas transforma operadores do direito em agentes políticos
de destaque, colocando esse papel como algo explícito. Se antes havia
uma necessidade de criar uma aura de neutralidade política e afastar do
discurso as referências a uma intervenção em domínios de outros
poderes, há uma tendência à incorporação de novas falas na atuação
judicial. Juízes e promotores vêem-se como construtores da democracia
e defensores de cidadãos desprovidos de participação e preparo para
tal. Repete-se, assim, o discurso liberal da tutela dos cidadãos por
uma elite esclarecida. A defesa desses tutelados
pode gerar um efeito contrário, com a construção de um regime de
passividade e a delegação da administração da vontade popular a
terceiros.
De
fato, os fenômenos diante dos quais se coloca o direito e seus
operadores exigem transformações de diversas ordens. Caminha-se para
um ponto de inflexão em que novos modelos jurídicos passam a orientar
a argumentação e a ação do Judiciário. Não obstante, dentro da
realidade brasileira, essas mudanças se inserem num horizonte maior de
democratização nacional, de reforma do Estado e de luta por direitos.
Agrava-se, sobremaneira, a complexidade do processo, pois não se trata
apenas de rever posturas e modelos jurídicos, mas de (re)construir
verdadeiramente instituições e a própria idéia de democracia.